16 junho 2021

maria alberta menéres / quando o sol não vier

 
 
XLIII
 
Quando o sol não vier
nesse dia diferente do que sei,
quando tudo o que traz a madrugada
for tão sincero e extenso
como esta areia fria,
farei então, da bruma e do silêncio,
todas as mãos que me faltam,
 
 
e nelas repousarei!
 
 
 
maria alberta menéres
meditação
poesia completa
porto editora
2020

 



15 junho 2021

ruy belo / acontecimento

 
 
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou


 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatóra
assírio & alvim
2004





14 junho 2021

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
III
 
Quem diria, vou viver
além do século gasto,
só é pena o calendário
me trocar a identidade
(Venho contigo ao jardim
com dedos vazios de rimas
quem diria, eu que vou ser
presidente dos cantores)
Tenho na boca o aço
do pesadelo real
fiquei preso à voz do eco
é banal! Ao telefone
só, de plástico, etc.,
procura, sigilosa, desejável foto
(enfim, por fax, a cores).
Quem diria, preso à voz
não sei de quem, que me ouvia.
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999

 




13 junho 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
3.
Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.
 
 
 
fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




12 junho 2021

joão miguel fernandes jorge / das nossas mãos que restará fazer?

 
 
Das nossas mãos que restará fazer?
 
Quem há-de lembrar
a cadeira a porta a árvore?
 
O tempo sobre o nosso sangue
o sangue sob o nosso corpo
das nossas mãos que restará fazer?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






11 junho 2021

luís miguel nava / no fogo da memória

 
 
Começa-se o silêncio a desenhar
nos interstícios da carne, a que se prendem
imagens que no fogo
lento da memória se apuraram
de dia para dia e que o passado
nos serve agora como uma iguaria.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




 

10 junho 2021

agustina bessa-luís / portugal


De repente, cada um de nós vê um território banhado de mar agitado e frio, com manhãs verdes de nevoeiro e com os campos onde os nomes das mais pequenas ervas nos fazem humedecer os olhos
 
*
 
Evidentemente que Portugal é Europa. Mas uma Europa de refugiados, um lugar mantido em independência para servir de exílio a vencidos e enganados. Uma Suíça doutro padrão, onde nada se agita e tudo se murmura. Portugal foi mundo de mercadores, pátria para imigrados, delícia dos tímidos e calamidade para santos e perversos. Para o meio termo é boa casa, e não o digo em tom pejorativo, muito pelo contrário. E Alijó, no tempo das cerejas, tem a medida de Wall Street.
 
*
 
Os Portugueses não são pontuais nem respeitadores das praxes. Não têm espírito de corpo, em suma, e aproveitam todas as ocasiões para o demonstrar. Eu creio que Benjamin Constant nunca poderia vislumbrar nos Portugueses algo que se parecesse com a alquimia da perseguição. Pois a unanimidade não lhes parece necessária nas opiniões; a oposição é vista como uma mania curável. Tudo a inteligência remedeia, e por isso a submissão é absolutamente fora de causa.
 
*
 
Quando nomeamos Espanha e Portugal, vemos o palco da História e nós como protagonistas. Isto diminui a nossa iniciativa, ao mesmo tempo que enriquece o nosso sentido de nação.
 
Eu creio que foi Dostoievski quem disse que para fazer um país é preciso a convicção de que ele, país, é o melhor do mundo; doutro modo, não se passa de constituir apenas um material etnográfico. Nós, Portugueses, sempre desenvolvemos uma vaidade expansiva frente ao orgulho caudaloso e sério do povo da Espanha. Às vezes até somos modestos por fora para melhor gozar o nosso vinculado prazer de superioridade. E quando nos louvam a humildade, não pressentem que ela é mais desdém do que caturra virtude de confessionário.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




09 junho 2021

eduardo pitta / hesita bastante

 
 
Hesita bastante. O inferno
é uma disciplina como qualquer outra.
Dias de vinho e rosas
pagos a peso de flagelo.
O arrebatado comércio dos sentidos?
Na cidade aberta a dementada
 
 
 
eduardo pitta
arbítrio
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





08 junho 2021

alejandra pizarnik / moradas

 
 
                  para Théodore Praenkel
 
 
Na mão crispada de um morto,
na memória de um louco,
na tristeza de uma criança,
na mão que procura o copo,
no copo inalcançável,
na sede de sempre.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020






 

07 junho 2021

carlos poças falcão / lamenta-te, pois já não é alegre

 
 
Lamenta-te, pois já não é alegre
o vento sobre os campos.
Não há descoberta nem transfiguração
quando o calendário vem com as primícias.
 
Lamenta-te, lamenta-te.
Já não tens a nudez certa
nem a fragrância antiga.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





06 junho 2021

juan vicente piqueras / papoilas


 
 
                                           A Izer Sarajlic
 
 
 
Sobre o antigo campo de batalha
onde morreram milhares de rapazes
volta a crescer o trigo, salpicado
aqui e ali por ardentes papoilas.
 
E dois apaixonados, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que então aqui morreram,
fazem amor entre as searas.
 
Derrubam o trigo. Esmagam as papoilas.
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019





05 junho 2021

marcos foz / vir ao mundo nesta casa sem tecto

 
 
[…]
 
vir ao mundo nesta casa sem tecto
decreto lei súmula
será? Calibrar
nosso papel no arranjo
e só avisam quando a evasão
se ergue no papel vegetal e
a cidade pela noite com as suas mil e
duas patifes donzelias por decifrar
antros vorazmente escondidos
umas horas antes do toque das campainhas
oficiais a marcha das botas com
restos difíceis de cúpula nas reentrâncias
           & vigilantes em cada esquina
 
pouco importa termos um corpo que
falha amavelmente alguém que diz
querer morrer uma memoria apertada
num canto coberto a linho
branco que nenhuma navalha ou carimbo..
 
[…]
 
 
marcos foz
vaca preta
bestiário/snob
2021






 

04 junho 2021

claudio rodríguez / ao ruído do douro

 
 
E como eu reparava
que era tão popular pelas ruas
passei a ponte e, adeus, para trás tudo.
Mas até aqui me chega, apaguem-no, estou sempre
a ouvir aquele ruído e subo e subo,
ando de vila em vila, encosto o ouvido
ao voo do pardal, ao sol, ao ar,
eu sei lá, ao céu, ao peito das moças,
e sempre o mesmo som, igual mudança.
Que sítio é este sem trégua? Que hostes, que altas lides
me saqueiam a alma a toda a hora,
rendem a torre da divisa branca,
abrem aquele portilho, o silencioso,
o nunca falso? E és
tu, músico do rio, meu fundo fôlego,
lhaneza e voz e pulsar dos meus homens.
Seria tão melhor
Esperar! Hoje não posso, hoje estou duro
de ouvido, após tantos anos passados
com os de ruim terra. Mas eu voltei.
Campo da verdade, qual a traição?
Vejam como tanto tempo, tanta empresa
Fazem o mesmo ruído!
Vejam só como temos tido sempre
tanta pureza ao nosso lado, em casa,
e continuamos surdos!
Já nem mais uma tarde! Sê bem-vinda,
manhã. Estou pronto: que testemunhem
por mim os que ainda ouvem. Oh, rio,
fundador de cidades,
soando em tudo menos no teu leito,
faz com que o teu ruído seja canto,
seja o nosso trabalho vida afora.
Se um dia a solidão, o ver o homem
na venda, o vinho, o desamor ou o desânimo
assaltam o que bem fizeste teu,
põe-te como hoje em pé de guerra e guarda
todas as minhas portas e janelas
como sempre fizeste,
tu, que oiço agora como ouvia outrora,
tu, rio da minha terra, Duradouro.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019