14 maio 2021

albano martins / assim são as algas

 
 
Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 




13 maio 2021

josé pascoal / vou tentar sair desta




Vou tentar sair desta
Pelos meus próprios meios,
Um pé à frente do outro
As mãos atrás das costas.
 
Deixarei livros e discos
Se for preciso,
Se não derem pela minha falta,
Se não quiserem saber de mim.
 
Percorrerei vias-sacras,
Vias sinuosas,
Vias subterrâneas,
Vias de facto.
 
Chegarei ao fim da linha
Como uma locomotiva velha
Cansada de puxar carruagens
Vazias.
 
 
 
 
josé pascoal
excertos excertos
editorial minerva
2018




 

12 maio 2021

konstantinos kaváfis / prazer

 
 
Alegria e bálsamo da minha vida, recordar as horas
em que achei e retive o prazer como o qu’ria.
Alegria e bálsamo da minha vida, ter rejeitado
todo o prazer de amores rotineiros.
 
 
1917
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017







11 maio 2021

wislawa szymborska / admiração

 
 
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui?
Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?
Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?
Porquê pessoalmente só uma vez?
E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?
Depois de estar ausente tantas eras?
Para além de todos os tempos e algas?
Para lá do pólipo e da medusa?
E logo agora? Para o sangue e os ossos?
Só comigo em mim? Por que
não mas além ou a cem milhas daqui,
ou ontem ou há um século
sentada e olhando o canto escuro
– tal como de focinho erguido de repente
olha um que rosna e a que chamam cão?
 
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





 

10 maio 2021

katarina frostenson / fogos verdes

 


 

O caminho está limitado por espelhos cobertos
o campo resplandece apagado:
 
Três remendos negros, e um verde
uma pegada fresca na minha alma
 
Paragem de distância O desejo
é o meu pensamento
 
O céu estende o seu lenço cinzento
arde um fogo junto ao meu joelho
 
movimentam-se umas lebres entre as espigas
 
I det gula, 1985
 
 


katarina frostenson
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021




 






09 maio 2021

judith teixeira / maus presagios

 
 
Azas agoirentas, pretas.
veem sobre mim poisar,
de sombrias borboletas
em redor a voltejar…
 
Tristes como violetas!...
Trouxeram-me a soluçar
nas azas negras, inquietas,
um mau presagio, de azar!
 
Meu pobre coração chora
em ânsia que me apavora…
– Que estará p’ra acontecer?...
 
E uma voz entrecortada
Diz-me ao longe desgarrada:
– Adeus!... Partir!... Esquecer!
 
Outono-Hora Inquieta - 1921
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923





 

08 maio 2021

ana paula tavares / somos aquelas antiquíssimas pessoas

 
 
Somos aquelas antiquíssimas pessoas
que ainda movem os lábios em latim
não só para dizer ave maria mas canis canis
ou carpe diem mais desejo que processo
sabemos os tempos dos verbos
 
 
 
ana paula tavares
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019





07 maio 2021

joan margarit / não há milagres

 
 
Chovia desleixadamente.
Dezanove de Outubro, nove da noite.
A Joana chegava assustada à cirurgia
por nós cercada, que ficámos
na sala mal iluminada junto aos elevadores.
Dizem que ela, numa desesperada tentativa
de salvar-se, disse amo-te ao cirurgião.
Esperávamos a fada que nos devolvesse
a Joana tranquila, como sempre,
os seus olhos cintilantes de confiança.
Às onze horas, olhando pela janela,
as gotas da chuva resvalavam
pelo vidro como se fosse pela noite.
A noite era uma lâmina de gadanha.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




06 maio 2021

david lehman / objectivo

 
 
“Qual é o objectivo dos seus poemas?”
Fico contente por me terem perguntado isso
aqui de pé na aula de Inglês do décimo primeiro ano de Mr. Ferry
na Lake Forest High School
tenho pensado muito sobre “objectivo”
Caminhar com ar determinado em Nova Iorque
tem vantagens óbvias no frio da noite ventosa
e é ainda melhor quando não se trata de fingimento
sabe-se para onde se está a ir
de dia para dia
e sabe-se quando termina
é pois como uma história com princípio meio e fim
não podiam contudo dizer-me o objectivo
da humilhação no ensino secundário e eu não podia dizer-lhes
a finalidade deste sonho em que nos levantamos destas carteiras,
vamos para a universidade de onde saímos advogados, fracassos ou
                                                                                               [donas de casa
e quando acordamos não temos recordação alguma
deste encontro às escuras mas todavia persistirá
e trará repouso à nossa alma
 
 
david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




05 maio 2021

maria f. roldão / pequeno sangue

 


Dou sangue ao vestido.
Abro-o com o coração desabotoado
e enfio-me na primeira trégua do linho.
 
Desço o vestido pela cabeça, ombros,
abro-o nas ancas onde fica a levitar
com a pele das fibras e beijar a pele.
 
Fotografo o vestido
e tu transforma-lo em fumo de catarse
e oferece-lo aos deuses do silêncio.
 
Desenhas uma casa com
o meu corpo. Dispo-me.
 
Engomas o sangue que despi.
 
 
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021




 




04 maio 2021

sophia de mello breyner andresen / sequência

 
 
I
 
Como esquecida voz de um amor muito antigo
Desgarram-se no ar as pancadas de um sino
A casa onde moro não fica rente às águas da laguna
Mas a parede é branca e vê-se o rio
E embora hydras e fúrias nos desfiem
A diversidade de coisas como Ponge diz
Não constrói
 
 
II
 
A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas tomar em minha voz a veemência das coisas
Fazer do mundo exterior substância da minha mente
Semelhante ao que devora o coração do leão
 
Vê o que viste
Atenta para a caçada no quarto penumbroso
 
 
III
 
Mimesis
E vós Musas filhas da memória
De leves passos no cimo do Parnaso
Suave a brisa a fonte impetuosa
– Princípio fundamento rosto-início
Espelho para sempre os olhos verdes
As longas mãos as azuladas veias
 
1989
  
 
 
sophia de mello breyner andresen
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





03 maio 2021

vicente valero / de um diário de bordo

 
 
Durante muitos anos viajei.
A minha juventude foi o mar, as ilhas
estrangeiras, a noite, os álcoois
amigos na coberta, as lembranças.
Fugia. E encontrava-me no vaivém
cativo dos dias e dos anos.
Conheço o suor frio nas manhãs
nubladas do outono, no naufrágio
perpétuo do desejo e das palavras.
Mas também aquele outro mais frio
na humildade de um porto, ao chegarem
lentamente os barcos e descobrirem,
ao sol, qual uma chaga na memória,
a pátria quebrada, o coração cansado
de povos milenários que não acabam
nunca de derrotar o implacável
monstro da paixão e da pobreza,
senhor das lendas mais antigas.
Depois este mar – ah, quem poderá esgotá-lo –,
lenta herança de sal, de impuros sonhos,
sempre este mar, o mesmo sempre, o único,
abraçando tudo com suas fábulas
belas de facas, fome e deuses.
Fugia. E encontrava-me sempre em cada porto.
Durante muitos anos viajei
e não saí nunca de mim mesmo.
 
 
 
 
vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

 





02 maio 2021

herberto helder / lugar

 
 
VII

Pequenas estrelas que mudam de cor, frias
pêras ao alto
de raízes queimadas, ainda doces, profundamente
cor de turquesa — eu tudo sei.
Como a época leve que entra,
como as crianças que despertam e sorriem
lapidarmente, e morrem
sem que se note, na própria clareira viva
do seu sorriso.
A onda que envolve os peixes, e dos peixes
absorve o rápido estremecimento — eu tudo sei.
Porque mudo, queimo-me.
Porque as ondas me batem na boca.
 
Pequenas estrelas passadas de cor para cor, pêras
que rolam de um degrau
para outro degrau de amadurecimento. Enquanto
estou deitado sob o céu brutal, e a noite
avança terrivelmente plácida.
E por baixo a terra vive, abstracta
e espalhada.
Quero dizer: eu tudo sei.
Junto aos ossos em gelo bate uma veia
que sobe, quente; que em silêncio ascende
e bate na língua: — Eu amo o pão que amadurece
no fogo.
Amo a ideia que a morte alimenta
agora na noite. Cinza sobre pepitas encarnadas.
O açafrão nas pedras.
 
Cerro os olhos para ouvir durante toda a noite,
e todo o mês, e recomeçando no interior
da minha vida — o sangue.
Amarga e difusa loucura do sangue
cercado pelo mundo — eu tudo sei.
Humildade e esgotamento e, quando
a boca estremece, tarefa e depois solidão.
Sei como se pensa obscuramente.
Vejo que a luz se encurva nos campos de urtigas,
e a mão se encurva na luz.
A mão que retém a faca e desliza
sobre a mesa ao encontro do pão maduro.
Porque eu amo a fome.
 
E eis que todo esse puro tempo passado
se levanta, enquanto respiro debaixo da luz.
Com a dor dentro, levanta-se; com
um forte delírio e a luz imensa — e eu sei.
Ouçam: é neste país onde cheiro
um ramo de sal, a terra pútrida.
Amo a penumbra de uma cara, a brancura
parada de um sorriso no meio da água
profundamente esquecida — sei
tudo, tudo.
Que nada existe e as coisas nascem no tocar
de minha mão inundada.
E é preciso esperar enquanto se morre,
e fica o campo sob o céu que se queima
preciosamente.
Tenho agora a idade — e sei tudo.
Digo: minha alegria é tenebrosa.
 
E eu desejaria levantar-me levemente
sobre as paisagens que se enchem de chuva
apaixonada.
Desejaria estar em cima, no meio da alegria.
e abrir os dedos tão devagar que ninguém sentisse
a melancolia da minha inocência.
Tanto desejaria ser destruído
por um lento milagre interior.
 
Cegar com o rosto contra um ramo abrupto
de relâmpagos.
Eu sei. Quero dizer: eu amo
essa morte no meio da luz, entre crisálidas e gotas,
à noite, de dia —
quando o mês se extingue num supremo amadurecimento
 
 
 
herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996