04 janeiro 2021

herberto helder / lugar

 
 
VI
 
Às vezes penso: o lugar é tremendo.
É sobre os mortos, além da linguagem.
Lugar que se transforma rodando contra a boca.
Em certos dias, habitado por crianças
de uma infelicidade obscura, sobre
o verão. Por duros e belos
peixes entre as mãos perfurando
o sono de Deus.
E eu trago uma criança com um ombro
mergulhado no sangue, e o outro
ombro metido no sono triste.
Que pensa sempre, dentro de suas águas,
e é ameaçada por uma intraduzível beleza.
Muitas crianças caminham para o silêncio
de uma semana ambígua, quando
o verão anda de um lado para outro
e se desarruma por dentro.
O verão começa pelas partes mortas.
Ao longe, nas fronteiras da ilusão.
Crianças básicas fazem de mim uma rosa
iracunda, e atiram-na
contra a boca de Deus.
Para diante, através das águas estivais.
 
Não queiram viver em mim, quando entram
como espelhos as vozes virgens.
Ou morrer, se as colinas se aproximam
tão perto do rosto, e estremecendo
com muitas vozes.
Tão respirando, as colinas que se toldam
como povos embriagados.
Eu digo: não desejem amar-me, morrer
de mim. Porque destruo com a boca
o beijo transformado.
Morro em todas as pessoas que a delicadeza consome.
Digam-me devagar quais os vocábulos alarmantes.
 
Uma história de crianças com folhas
dispersas é sempre
uma história de morte. Embora a doçura
levede sua alma cega, crianças, eis como digo:
são uma musa devoradora.
Estão ligadas a toda a grande idade,
à terrífica fantasia do tempo.
Porque falam no esgotamento e, enquanto dormem,
sonham com seu ombro fendendo o sangue,
entrando no poder de Deus.
Tenho uma criança profunda em todos os lugares.
 
Desabitai-me a beleza que bati na pedra,
abaixado e louco.
E que a mulher se desabite da solidão que tive,
enquanto falei ao alto, inspirado
pelo assassínio do amor.
Desabitem-me da minha fome e da neve
onde fui brilhante brilhante.
Brilhante como o trigo escorrido nos dedos.
Como os pés sugeridos em volta da cinza.
 
A tristeza do verão é um modo de saber.
Ou ser puro. Ou estar afastado.
É preciso abandonar-se no meio da tarefa,
enquanto o crime é o autor, embebido.
Conheço crianças esgotantes pelo sono
onde acordam.
É preciso que Deus se liberte dos meus dons.
Que se não perca em minha fabulosa
ironia.
 
Também vi crianças empurradas nos meses.
Pela leveza da luz, empurradas
crianças supremas. Vi-as da mais subtil
matéria, com cerejas, com mãos.
Porque Deus é tão leve como a água atravessada.
Água que iracundos peixes rompem em todos os lugares.
Porque um poema alude ao mistério.
E eu ia pelo ar
de um canto de devotamento, eu
amava e amava.
E então levanto de mim próprio, contra
a inspiradora confusão,
as mãos de crianças preciosas caídas em sangue.
Mãos que Deus exerce no sono.
 
Deixai às crianças minhas zonas primitivas.
Minha terna loucura.
Deixai-as virar a alma para o lado,
de cara contra uma fria onda.
Em mim é que nascem e vivem com nomes
castos, e esquecem.
E de repente se lembram, e se esquecem
de tudo.
Porque são delicadíssimas.
E verdadeiras.
 
Abandonai-me no mês de Deus aberto,
com as crianças sorrindo com grãos de sal.
Esse Deus sobre as patas ao lado
de catedrais difusas.
Onde encosto meu rosto cor de neve lilás,
da cor assaltada das lágrimas.
Cor de quando tudo pára.
É a minha voz que se ouve para diante da noite,
voz tremente e limpa.
Voz acocorada depois numa obra obscura,
mais morosa do que a ambiguidade.
Voz bebida em si própria.
 
Meu sangue percorre os mortos
que me beijam no escuro com sua boca
de barro fechado.
O sangue passa por toda a doçura.
Os mortos tremem, luzem com o dom
em mim voltado para a sua solidão.
E criam, em cadeia, a mãe
descida em silêncio, mais remota
por detrás dos dons.
 
Um galho de sangue bate contra seus ouvidos.
Mãe afogada em poeiras interiores.
E chegada, então ao cimo da escada.
Olhando pelos meus dons dentro, olhando
o meu dom.
Olhando toda a minha força, ela
ao cimo de uma escada terrível, olhando
dentro de uma doçura mortal
a solidão dos meus dons. Olhando
inteiramente.
 
Deixai-me em todos os lugares, em cada
mês que principia.
Violinos e campânulas são imagens rarefeitas.
Peixes, casulos, pepitas misturadas.
Sobre o nocturno tema de Deus, despeço-me de todos.
Não me sabem as crianças, e eu sei
todas as crianças num poema prédio em chamas.
Nos meus dons.
 
E então penso: o lugar é terrível.
 
 


herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996





03 janeiro 2021

jesús llorente / desordem

 
 
 
Por então vivi a minha temporada no inferno.
Quando não sabia quem era eu ou quem se empenhava
em desalojar de mim o meu lado mais ingénuo,
aquele tão suicida, tão acidentado e turvo
que corria ao mesmo tempo em todas as direcções,
passava as tardes
debaixo das aiadas sombras das árvores
e pensava que o amor
era um monte de sombras chinesas
entre as pernas dela.
Algumas manhãs tornava-se difícil respirar,
olhar-se ao espelho
com o coração como um papel amarrotado
e manter uma antiga compostura,
sentir o grito do sangue
e saber que a idade nos declarou a guerra
sem conversações prévias nem grandes ameaças
antes de te haver dado tempo
de proclamar a tua desolada independência.
Não há fronteiras entre a infância e a juventude,
apenas um precipício infestado de ramos salvadores
que te rasgam as mãos quando tentas
não cair com o peso dos teus anos e do teu estômago.
Profundo parece o abismo, e milagroso
um choque sem feridas imediatas
nem negras rochas com as tuas impressões digitais.
Crescer revela-se-nos com a tristeza repentina
e o próprio suor frio e pegajoso
dos minutos que sucedem ao pior sonho,
a própria angústia transcendente
dessas manhãs em que perguntas
quem diabo será esta que dorme ao meu lado,
como é possível que tenhamos bebido tanto,
por que não fiquei eu em casa,
e calculas os estragos, e choras em silêncio.
Crescer não parece grande coisa nem pinta a cara
com as cores do vencedor, não tem
cartão de visita, nem as unhas negras e afiadas,
nem se esmera com um fato cinzento nem seus olhos são de areia,
mas a pouco e pouco faz-se com tudo o que é teu:
as páginas amarelas, o teu sistema nervoso,
a caderneta de poupança, as linhas da tua boca,
ocupa-se das tuas coisas e rouba-te as merendas,
conta-te histórias à noite para adormeceres
até que o tempo é O Tempo com maiúsculas
e és como a morte num filme de Bergman.
 
 

jesús llorente
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

 



02 janeiro 2021

wystan hugh auden / gare du midi

 
 
Chega do sul um comboio qualquer;
Muita gente cá fora; um rosto
Que não tem a recebê-lo o presidente acompanhado
De fitas e fanfarra: na sua boca um esgar
Enche o nosso olhar de compaixão e alarme.
Neva. Apertando uma pequena pasta,
Ele sai, decidido, para infectar a cidade,
Cujo terrível futuro pode ter acabado de chegar.
 
 
w. h. auden
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




 

01 janeiro 2021

wislawa szymborska / allegro ma non troppo

  

Tu és bela – digo à vida –
mais esplêndida não podias,
de rouxinóis e de rãs,
de formigas e sementes.
 
E tento ser-lhe agradável,
bajulá-la, olhá-la nos olhos.
Sou sempre a primeira a saudá-la,
de humilde expressão na fronte.
 
Vou-lhe saltando ao caminho,
da esquerda, da direita,
e fascinada me elevo,
e de enlevo me estatelo.
 
Que marinho este cavalo!,
que silvestre é esta amora! –
nunca em tal houvera crido
se não tivesse nascido.
 
– Não encontro – digo à vida –
nada a que possa igualar-te.
Ninguém fará outra pinha,
nem melhor, nem menos bem.
 
Louvo-te a generosidade, a criatividade,
a decisão e o rigor –
e mais ainda – e mais além –
a magia – a negra e a branca.
 
Só para não te ofender,
te irritar, descontrolar.
Eu saltito sorridente
há uns bons cem mil anos.
 
Arranho a vida pela bainha de uma folhita:
Terá parado? Ouviria?
Só uma vez, por um momento,
esqueceu-se de para onde ia?
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





31 dezembro 2020

andre breton / de pedra e cal

 
 
                                                                                             A Paul Eluard
 
 
 
Liberdade cor de homem
Que bocas voarão em estilhas
Telhas
Sob o impulso desta vegetação monstruosa
 
O sol cão poente
Abandona a escadaria dum rico palacete
 
Lento peito arroxeado onde pulsa o coração do tempo
 
Uma jovem nua nos braços dum bailarino belo e couraçado como São Jorge
Mas isto é muito mais tarde
Fracos Atlantes
 
 
Rio de estrelas
Que levas os sinais de pontuação do meu poema e dos poemas dos meus amigos
Nunca se deve esquecer que tu e esta liberdade vos tirei à sorte
Vos ganhei para só tu
Chegares deslizando por uma corda de orvalho
 
Este explorador em luta com as formigas vermelhas do seu próprio sangue
 
É até ao fim o mesmo mês do ano
Perspectiva que permite avaliar se estamos ou não a lidar com almas
19… Um tenente de artilharia confia-se a um rastilho de pólvora
 

                                                            *
 
Assim como o primeiro a chegar
Debruçado sobre a oval do desejo interior
Enumera estas noites seguindo o pirilampo
Conforme estenderes a mão para fazer a árvore ou antes de fazer o amor
 
Como toda a gente sabe
 
No outro mundo que nunca há-de existir
Vejo-te branco e elegante
Os cabelos das mulheres cheiram a folha de acanto
Ó vidros sobrepostos do pensamento
Na terra de vidro movem-se esqueletos de vidro
 

                                                           *
 
Toda a gente ouviu falar da Jangada da Medusa
E pode em rigor conceber um equivalente dessa jangada no céu
 
 
 
 
 
 
andre breton
claire de terre (1923)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994




 

30 dezembro 2020

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
1
 
Pouco hei-de saber dos pássaros e das cores
nestes dias cinzentos de melancolia.
As árvores não repousam sob os olhos
com que as vejo transgredirem para sempre
o plano irreal da eternidade.
Na felicidade do azul perscruto a breve
fragmentação da natureza, os verdes inequívocos.
A sorte dos vermelhos, os amarelos inimagináveis
desta praia em que o mistério flui
para outra treva de mais silentes horas.
Em tudo ignoro e reconheço inviamente
o translúcido poder do infinito.
 
  
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999





29 dezembro 2020

carlos poças falcão / preciso de me dedicar inteiramente

 
 
Preciso de me dedicar inteiramente
à arte de inspirar, levando a atmosfera
a todos os alvéolos, secando-os
por oxigenação e aquecimento, perfumando-me
na ventilação. Não importa expirar.
O que é preciso é ter os ossos prontos a erguer-se
e sobretudo (o principal) entrar no fogo
e só arder.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





28 dezembro 2020

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
2
 
subitamente estou afastado de todas as águas, rei de uma imensa ilha
forçosamente devastada, filas de escravos, camiões, barreiras
de onde balouçam delgados rostos brancos,
e um pouco adiante, entre carris, areia,
chamas de fogo escuro soltam-se da terra: mas
 
não é de crer sejam as portas dos infernos. escrevo
no luminoso écran onde os corpos se banham
silenciosos, com o firmamento
azul sobre o silêncio deles e
é quando as mãos se soltam quando o fogo, a luz
 
em lâminas separa o seco pó, era um jardim ao fim da tarde! depois
é o costume: cisternas, alçapões, planaltos,
a rua de cavalos, latas de leite, estrume,
e é quando o fogo fica esquecido e as boca escuras ardem
para sempre jamais
e o vento estranhamente tépido está pousado nas colinas
como uma coluna até ao céu
 
e é quando todas as palavras são uma baba muito límpida
que as bocas da terra deitam para fora da terra
sem escadas para descer com o chão muito liso
e só a bruma rasgada a gritar (dizem poetas)
poe este cheiro a coisa nenhuma dobrada
tão cheia de cuidados na manjedoura a louça
translúcida do ar
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996

 



27 dezembro 2020

vasco graça moura / o mês de dezembro

 
 
IV
os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e amor se tocam
 
dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome
 
os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?
 
 
 
vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007

 




26 dezembro 2020

elio pecora / os etruscos deixaram túmulos pintados

 
 
Os Etruscos deixaram túmulos pintados
dentro de cidades apagadas,
os Romanos ensoberbados
acabaram aterrorizados pelos Hunos,
catervas de escravos abeberaram-se
em nascentes de água verminosa,
mulheres esfarrapadas choraram,
choraram as rainhas de capas de seda.
 
Aquiles saiu da tenda
para vingar o amigo morto
por um herói mais incerto que feroz,
Penélope desfez a teia
para não descer e decidir-se,
Hamlet raciocinou com as sombras,
Faust escolheu o instante errado.
 
Eu, da minha parte,
sinto-me vestido de escuro
e espero o telefonema que adie
para amanhã o meu problema.
 
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
motivetto (1978)
tradução de simoneta neto
quasi
2008

 




25 dezembro 2020

julio cortázar / preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

 
 
 
     Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis; não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – ignoram-no, é terrível ignorá-lo – um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia no chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.
 
 
 
julio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 



24 dezembro 2020

alejandra pizarnik / mendiga voz

 
 
E ainda me atrevo a amar
o som da luz a uma hora morta,
a cor do tempo num muro abandonado.
 
No meu olhar já perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020

 






23 dezembro 2020

luis garcia montero / tento sem companhia, reabitar uma cidade

 
 
Penso na solução confusa deste céu,
a chuva quase a cair no olhar
frouxo que as raparigas me dirigem
acelerando o passo, solitária,
no meio do sotaque que se escapa
como um gato pacífico
do meio das conversas.
E também penso em ti. É a exigência
de atravessar esta praça, à tarde, Buenos Aires
com nuvens e mil cavalos no céu,
cinco anos depois
de nós a termos conhecido.
 
Os que vêm de fora continuam a ver
este largo resumo de todas as cidades,
rios que de tão grandes
já não esperam o mar para sentir a morte,
cafés que encerraram
a imitação nostálgica do mundo,
com mesas de bilhar e habitantes que vivem
falando das suas perdas em voz alta.
 
Enquanto as pessoas correm para se refugiarem
da chuva, empurrando-me,
penso desorientado
na dor deste país incompreensível
e recordo a nuvem
das tuas perguntas e as tuas profecias,
seladas com um beijo,
na Plaza de Mayo
a caminho do hotel.
 
Testemunhas invisíveis para um sonho,
fizemos a promessa
de regressar ao fim de uns anos.
Parecias então
eterna e eleita,
como um qualquer destino inevitável,
e tomavas nota do número do nosso quarto.
Agora,
quando peço a chave do meu
e a alga da luz no vestíbulo
é chuva rancorosa,
vivo confusamente o desembarque
da melancolia,
em parte por ti, em parte porque é o tempo
água que nos fabrica e nos desfaz.
 
 

luis garcia montero
as flores do frio (1991)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018