11 setembro 2020

eugénio de andrade / até amanhã



Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.



eugénio de andrade
até amanhã
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







10 setembro 2020

narciso pinto / serviços mínimos



abro no escuro esta lata de cerveja
ciente das represálias e da caça à multa –
já me enchi de endireitar a vida
a protestar de mansinho
a cravar boleia aos três pastorinhos
e a palitar o sono em cadeira sem assento
fazia uma outra disto ao fim ao cabo
espuma de outra cerveja –
(estacionam diante o prédio
decerto despertando o vizinho cuja voz jamais escutei)
já estive dentro
sei bem como ferve a demência refém de substâncias ilícitas
desmerecendo-nos a memória
de glórias alcatifadas em soalhos doutrem
as náuseas são por demais nesse engolir em seco
e com que fim haveria eu de
sangrar um cemitério num qualquer trecho de terreno baldio
em prol de uma errata
busco nos outros a escuna
convicto de que enquanto não se acha a pérola
come-se a ostra
sem recorrer à caridade de água-doce
e entre estas tantas decerto outras
escritas num caderno abandonado no balde do lixo
que a porteira há-de um dia recolher



narciso pinto
unhas de fome
poetria
2020









09 setembro 2020

jaime salazar sampaio / ficou da infância a febre



ficou da infância a febre
de correr parado
pelas estradas

podes chamar-lhe versos
são viagens

ficou na infância a fisga
de arremessar ao vento

podes chamar-lhe versos
são pedradas


jaime salazar sampaio
palavras para um livro de versos
1956









08 setembro 2020

manuel de freitas / ccb, 2002



Abrem-se devagar os túmulos
– e entramos neles.
É o nosso ofício, talvez o único.
Esperámos, anos fartos, o vazio.
Não há engano possível,
não há regresso. Todas
as ilhas devagar nos mentem.

Dançava perto de ti,
talvez demasiado só, uma
estrela d´nada, bo dispidida.

Não me digas que não ouviste.



manuel de freitas
cretcheu futebol clube
assírio & alvim
2006






07 setembro 2020

konstantinos kaváfis / desejos



Como corpos formosos de mortos que não envelheceram
e que em pranto sepultaram em esplêndido mausoléu,
rosas na cabeça e jasmins a seus pés –
a isto se assemelham os desejos que passaram
sem se cumprir; sem merecer uma única
noite de prazer ou um luminoso amanhecer.

1904



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017










06 setembro 2020

bernardo soares / a oportunidade é como o dinheiro,


A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso.

Ter ocasião de... Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.

Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra.

O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificência triste das penumbras.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






05 setembro 2020

josé pascoal / quarto minguante



Quem vive à míngua,
Não fala nenhuma língua,
Limita-se a ver o nível
Da sua sede,
O número disponível
Dos bombeiros voluntários,
A factura semanal
Do que deve
Às lojas convenientes
Da atenção.



josé pascoal
branza
editorial minerva
2019







04 setembro 2020

fernando lemos / nos meus pensamentos



nos meus pensamentos sempre
as palavras lutam duas a duas pela verdade

palavras se metem dentro
de outras palavras querendo ideias

sou uma caixa de vários lados
com vários cantos
com duas sombras

uma escura que nasce da clara
outra clara que nasce da escura

a luz cintila e a sombra dorme
a sombra estatela-se e a luz ergue-se

nasce cada palavra dentro de outra palavra


fernando lemos
poesia
porto editora
2019






03 setembro 2020

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno


1

por esse caminho vais dar a um ribeiro
oculto nas pedras, e daí são dois passos pró inferno!
fiquei surpreso com a informação, assim de cara nua
à saída de casa, pousando a mala azul já encharcada,

como se houvesse destinos nesta terra! encolho os ombros,
as borboletas mudam de cor, gigantescas, violeta castanho,
tudo é real e diferente de si, mesmo as anémonas
e o cheiro de morte que deitam por dentro. os planetas,

acredito, emitem pequenos sinais, mas tenuamente
deitam-se no ovo oco do céu,
e a grande chuva entra-me pelo corpo e fica
dentro a chover, coisa inútil, intensa.

foi assim que aprendi que os homens morrem aos pedaços,
e muito antes de eu nascer já esta torpe história seguia
«o seu rumo», aqui e além facilitado pela chacina militar,
e ninguém pedirá a minha opinião, que não é nenhuma.

o poema traz consigo um fresco calor escuro,
é um pouco cão, miserável e mudo.
os fios eléctricos atravessam a rua, lado a lado; o cigarro lançado
ao ar, explode contra as folhas.

dorme comigo, ribeiro seco.
deita-me na lisa pedra que te encerra. tudo começa
no cais de água nenhuma; um pouco cão, mais nada:
a arte do soneto e alguma rima.



antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996






02 setembro 2020

herberto helder / lugar



V
Explico uma cidade quando as luzes evoluem.
Quando é assaltada pelos gestos devotados.
Explico um espaço solene e unido
por virtude do fogo infantil.
Com a boca sobre um casulo
de som, uma criança
é sempre livre e encerrada.
Explico uma cidade através
de brilhos interiores. De pedras raras
viradas na palma da mão.

Cidades são janelas em brasa com cortinas
puras, e pracetas com chuva entre aspas.
Rostos de mulheres em jarras.
Ou girando sobre gonzos.
E por dentro de tudo a morte ou a loucura.
Estátuas encarnadas cheias
de peixes. E o silêncio
dobrado para a frente, na força da luz.

Cidades existem entre as mães que contemplam
as flores e folhas
do sono. A criança roxa
e prolongada para dentro, como no fundo
de uma estampada idade do ouro.
Cidades são aposentos fixos
quer na cabeça, entre brasas, quer
no gosto, na audição.
Barulho de passos, profundidade,
devotamento misterioso.
É o girassol do talento materno,
amando o movimento por cima brilhante.
e atirado, pela fascinação
da noite, para o gelo virgem da terra.

Ao longo de sons sempre passaram
mulheres apaixonadas,
separando os pés sobre frígidas gotas.
Mulheres partindo, chegando, voltando
o corpo na luz suspensa
e inteligente. Mulheres cheias de uma
atenta suspeita.
Vergadas para o fundo de uma existência
dura e pura.

Cidades que se envolvem de ecos e em cuja
solidão extraordinária
as mulheres batem seus dedos puros.
Sua sinistra fantasia.
Tiradas dos limbos segundo um ardente
princípio de ilusão.
Amadas tragicamente por Deus e entrando
na corrupção de Deus.

São quentes e frias, colocadas sobre moventes
comoções antigas.
Metidas pelo espanto dentro, enterradas
até ao livre espírito e ao terror.
Fábulas de comércio.
Imagens delicadas de uma suave indústria.
Cidades dotadas de uma inteira falta de intenção.
Abertas a ligeiras canções tenebrosas e,
sobre as graves canções, fechadas
como pedras frias.

Na noite impressa nos dois lados e,
pelo mais escuro lado antigo,
a revelação. Cada cidade é uma vingança
anterior onde a beleza passa
vestida de mulher.
Beleza lembrada e relembrada em seu
circuito ardente.
Escoada, esquecida.
E logo ressurrecta.
Tão próxima.
Cidades vazias de cócoras contra a noite,
ao lado de uma enorme ressurreição. Lírica
antropofagia.

E os arquitectos deslocam-se, unindo
nos dedos a pedra encurvada.
Ouvindo o som contra o som.
Imaginando logo uma paixão espantosa
no sono.
E agarrando-se às vozes, como as vozes brilhantes
se agarram à língua para fora.
Arquitectos fechados sobre as mãos com instrumentos
que se voltam no ar. Principiando
a queimar-se.
Isolando concepções geladas
que entram na terrível purificação universal.

E então levanta-se o exemplo dos violinos,
voando à altura das janelas.
Dos malmequeres aglomerados.
De galáxia em galáxia de encontro às cabeças.
E eis o que se ama: o sino
das mulheres e dos homens distantes.
Arco ligado que leva a música
pelos dedos à pedra.
Eis que se ama as cordas, as chaves,
a caixa soante dos mortos.





herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996





01 setembro 2020

ruy belo / primeiro poema de outono



Mais uma vez é preciso
reaprender o outono –
todos nós regressamos ao teu
inesgotável rosto
Emergem do asfalto aquelas
inacreditáveis crianças
e tudo incorrigivelmente principia
Já na rua se não cruzam
olhos como armas
Recebe-nos de novo o coração

E sabe deus a minha humana mão




ruy belo
todos os poemas I
cidade
assírio & alvim
2004







31 agosto 2020

federico garcia lorca / balada da água do mar



O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

– Que vendes tu, rapariga,
de turvos seios ao ar?

– Vendo, senhor, água
do mar.

– Que levas tu, jovem negro,
misturado em teu sangue?

– Levo, senhor, água
do mar.

– Essas lágrimas salobres,
onde te nascem, mãe?

– Choro, senhor, água
do mar.

– Coração, esta amargura
tão funda, donde te vem?

– Amarga muito, a água
do mar.

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.




federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013







30 agosto 2020

nuno júdice / tempo livre



Numa tarde de domingo, em Central Park, ou
numa tarde de domingo, em Hyde Park, ou
numa tarde de domingo, no jardim do Luxemburgo, ou
num parque qualquer numa tarde de domingo
que até pode ser o parque Eduardo VII,
deitas-te na relva com o corpo enrolado
como se fosses uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o teu vestido
de domingo, e deixa-te nua sob o sol frio
do inverno de uma cidade que pode ser
Nova Iorque, Londres, Paris, ou outra qualquer
como Lisboa. As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E tu,
com os dedos presos na relva húmida, vês
o teu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de inverno.



nuno júdice
poesia do mundo/2
afrontamento
1998