Bebi absinto com Odette Dulac. Senti-me então
especialmente disposto a escrever e compus
um poema sobre Peale Bishop, morto em 44.
Não era a peste de Lisboa que então me encheu
de desespero. Não eram os veleiros de Blood
que iam lentamente consumindo a memória
leal dos heróis. Não era o meu cérebro, enegrecido
por vezes pela morte de gertrude, de Lautrec, do
próprio Cocteau, afogado em ópio.
Bebi gim com Júdice e Ernst, uma época
inteira mergulhada em cogitações. Uma noite
acordei e tinha a boca cheia de sangue. Ao meu
lado Anya Seton respirava docemente.
Pus então um disco e acendi uma
luz. Os anos escoavam no soalho surdamente.
Depois saí. Bach – podia escutá-lo ainda daquela
praia tão antiga onde o próprio Van Gogh
cortara a orelha. O terror acompanhava
a vastidão das espumas, os rochedos soletravam
a desolação.
Bebi esse fogo nos meus nervos – vodka de
milénios, alongamento dos naufrágios para
o negrume irreal das costas, o pudor que se
inclinava para o areal como um século negro.
O verão acendia as pequenas doenças de infância.
e ouvia de novo, fora do sonho, as vagas sem idade
como um sonho.
Bebi com Zizi no bar Z. numa shooting gallery
estive com Auden e Zane Grey.
li.lhes as cartas estranhas de Cowley e
Faulkner. Sorrimos de todas as gerações.
Também eles beberam outrora com Dulac o absinto.
rui diniz
ossuário
(ou: a vida
de james whistler)
& etc
1977