(a meu pai)
vai certamente estranhar esta quase interminável carta
pai     
há muito que o silêncio se fez entre nós     
o pai com os seus trabalhos por aí onde o tempo custa a passar     
e eu pobre de mim     
tão aflito me sinto com a velocidade desse mesmo tempo     
a cidade é veloz     
não sei se o pai poderá compreender esta velocidade     
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso     
minha mulher anda atarefadíssima com o arranjo da casa     
parece que mais nada existe para ela    
eu sempre na rua por aí   
porque não consigo suportar aqueles móveis
onde o pó não chega a pousar  
não consigo suportar aquela barulheira de electrodomésticos     
continuamente a funcionarem     
já não consigo suportar minha mulher`
saio de casa logo de manhã     
muitas vezes não me apetece ali voltar     
deambulo pela cidade gasto tempo de café em café     
perco-me     
noite dentro caminho sem direcção precisa     
sem saber para onde vou atravesso a cidade     
à procura não sei bem de quê     
o corpo esvaziou-se lentamente e    
com o passar do tempo sei agora    
este casamento foi um erro     
estou terrivelmente só     
talvez seja por isso que me lembrei de lhe escrever     
pai     
decidi partir     
não me pergunte para onde nem porquê    
partir é o que ressoa na minha cabeça   
viajar sem fim e jamais voltar    
também é inútil perguntar-me as razões de tudo abandonar     
este conforto enjoa-me esta vida dá-me vertigens e diarreia     
de resto duvido que existam razões de peso     
tenho a certeza de que seria capaz de suportar minha mulher
se ainda a amasse     
partilharia com ela a loucura que adquiriu pela casa     
a semanal mudança de lugar dos móveis     
e mais estranho ainda     
quando põe a máquina da roupa a trabalhar sem nada lá dentro     
diz que adora aquele insuportável ronronar de aço     
que lhe faz muita companhia     
enfim     
se eu ainda a amasse talvez     
mas é certo que arranjei outras compensações     
a amizade segura de um amigo     
talvez seja melhor não revelar grande coisa sobre este assunto     
poderia chocar o pai por demasiado íntimo e delicado
duvido mesmo que conseguisse entender a amizade como eu a entendo     
que quer     
sempre gostei da travessia das noites e das pessoas     
e de beber     
muitas vezes nem sei quem são as pessoas com quem falo     
o pai dir-me-á que tudo isto são simples fugas     
é possível     
desde que me conheço que me fujo    
amo essas fugas esses pedaços doutras vidas cruzando-se     
com pedaços sombrios da minha    
não leve a mal estes desvarios    
no fundo teria sido melhor para mim ter ficado aí     
onde o tempo parece não avançar e a terra é fértil     
provavelmente hoje seria um desses pastores que meditam     
sobre as fases da lua mesmo antes delas se iniciarem     
é possível que hoje fosse um operário exemplar     
trabalharia sem sequer me pôr a questão de que há outro mundo     
por descobrir para lá do incessante roncar surdo das máquinas     
tudo explodiu dentro de mim e não sei como dizer-lho   
vou largar tudo     
a mulher o trabalho a cidade onde vivo a casa de que não gosto     
a cidade apagou em mim muitos desejos     
a única coisa que ainda faço com prazer é vagabundear     
o que não é muito     
mas sinto-me livre e feliz e anónimo
olho a vida como se o mundo desabasse dentro de instantes     
quanto ao emprego não se preocupe    
vou escrever ao meu patrão para me despedir     
não sei o que me espera longe daqui    
nem sei onde pararei de viajar    
sei que devo partir de todos os lugares onde chegar     
se é que alguma vez vou chegar a algum lugar     
fascinam-me sobretudo as cidades costeiras
nelas poderei embarcar para outras cidades
ou ficar no cais a ver os barcos afastarem-se     
e quedar-me silencioso horas a fio    
olhando-os desaparecer     
com o simples desejo de ir com eles    
mas ficar     
ficar um dia mais para que o desejo de partir se torne tão forte     
insustentável     
e me apeteça morrer em cada porto de partida e de chegada     
nesta incerteza viverei o resto dos meus dias     
atravessando mares devassando corpos e noites     
que de mastro em mastro se tornam peganhentas     
indecisas
digo isto porque ultimamente tenho sonhado muito
facto extraordinário que já não me acontecia há muito tempo     
nesses sonhos surgem-se grandes planos de rostos     
antigas topografias de corpos    
desenhados minuciosamente no espaço como mapas pormenorizados     
dalguma costa pedregosa     
paisagens exuberantes imagens a preto e branco     
semelhantes a fotografias ou a visões     
feras que silentemente passeiam pela praia     
e parecem não ter peso     
imensos mares que não consigo localizar nos mapas     
cheguei mesmo a comprar uma quantidade incrível de mapas     
passei noites a estudá-los     
senti a necessidade absoluta de saber onde encontraria     
aquelas paisagens de rostos e de feras com pêlo ruivo     
assim percorri estradas e arquipélagos     
percorri cidades sem me deter para pernoitar     
imaginei sedes e fomes terríveis doenças     
e nada consegui saber de mim mesmo    
nem onde se encontrava meu corpo
por vezes acordava em sobressalto    
olhava minha mulher dormir     
perscrutava seu corpo moreno enrolado no lençol     
avistava praias espreguiçadas pela penumbra do quarto     
deve ter sido uma das últimas vezes que a amei     
mas só mais tarde comecei a ter visões 
ficava sentado na cama estático os olhos em alvo     
apercebia pequenas formas geométricas flutuantes     
delicados cristais movimentando-se aderiam aos dedos     
sementes de estrelas rebentavam deixando escorrer resina     
claridades pelas paredes abauladas    
o ar ficava incandescente     
podia vê-lo e senti-lo cortante sobre o peito     
a princípio assustei-me     
mas com o tempo habituei-me     
como me habituei a ver no escuro a desolação de barcos naufragados     
e a viver sem corpo sem sombra e sem reflexo     
minha mulher achou melhor internarem-me     
mas nunca me foi visitar     
nem uma só vez enquanto estive atado a uma cama     
precisava tanto dela     
ou de alguém que me tocasse     
para me certificar que a vida ainda latejava no fundo do corpo     
não se assuste pai     
tudo isto passou e a morte parece não querer nada comigo     
de resto     
a vida também não     
talvez não devesse falar-lhe destas coisas     
que direito terei eu de o inquietar? de o perturbar?     
nem sequer lhe devia escrever    
na verdade fomo-nos afastando tanto nos últimos anos     
o pai já deve ter os cabelos todos brancos     
pouco ou nada tínhamos a dizer um ao outro     
o sol a chuva o mar e a tempestade eram-me indiferentes     
o cheiro quase doce da terra molhada    
não sei se o pai consegue imaginar o que é uma cidade     
que respiração ferida de cimento se exala dela     
um coração de gasolina e de néon palpita das avenidas     
aos subúrbios de lata e de estrumeiras     
que cicatrizes sujas de lágrimas se abrem ao cair da noite     
e tudo brilha e tudo parece viver por trás do que já está morto     
entradas de cinemas montras jornais luminosos umbrais de luz     
poderá imaginar tanta luz em plena noite?     
o espaço rasgado por passos rostos barulhos sibilantes     
sirenes gritos pequenos suicídios    
ignoro se o céu imenso daí não o acharia estreito aqui     
percebe agora como é que alguém se pode perder na noite?     
não sei
noutros tempos é possível que tivesse vivido como aventureiro     
como esses homens tristes tisnados pelo mar     
viajam     
levando mercadorias e mensagens iam de porto em porto     
enriquecendo fornicando rezando e largando enteados e sífilis     
quem sabe se não sou habituado pela sombra dum país qualquer     
muito antigo e distante     
ou apenas pelo eco duma língua que estala no coração     
uma voz um rosto murmurado um presságio     
então comecei por atravessar o rio nos cacilheiros     
de dia e de noite sem me aperceber que o tempo deste rio     
já o haviam pintado em retábulos magníficos     
e o rio só existia quando sonhava   
como se isto resolvesse alguma coisa ia e vinha     
sem nunca ter a sensação de quem chega ou de quem parte     
sentia-me como que a boiar num tempo remoto     
e de mais longe ainda que o meu próprio corpo podia lembrar     
um cheiro inquietante a sal devassava-me a intimidade do sonho     
corroí-me a memória
pensei depois ao olhar as fotografias     
as poucas onde me conseguia reconhecer     
que resolveria esta angustiante procura     
julguei que se pudesse recuar ou avançar no tempo     
ser jovem e velho e velho e jovem simultaneamente     
talvez pudesse reencontrar-me de novo ou insinuar-me     
no corpo fotografado     
encontraria o sorriso simples da infância que me revelaria o nome     
mas foi impossível     
porque aquele rapaz que sorria e me olhava     
com os seus olhos em papel sépia não era eu     
e tive medo     
passava as noites a embebedar-me    
turvava a memória de tudo e de todos    
era-me doloroso não conseguir corrigir o passado     
a viagem que de manhã início é um sobejo de vida     
ignoro se irei parar a um desses países cuja linguagem desconheço     
e os costumes do amor me são estranhos     
não sei se haverá regresso     
mas não esquecerei a sua colecção de selos     
quando o pai receber um postal dum determinado lugar     
é sinal de que nesse lugar não estarei     
será inútil tentar saber o meu paradeiro     
pouco importa se continuo vivo    
se calhar esta viagem não passa de pura imaginação
tem de me desculpar esta última carta     
de resto pouco disse do que inicialmente lhe queria dizer     
paciência pai     
não nos veremos mais e eu tenho pena de nunca ter tocado     
os seus cabelos brancos     
mas de qualquer maneira já nos víamos muito pouco     
tanto tempo sem memória nos separou
peço-lhe que queime esta carta    
destrua-a     
e se a minha mulher lhe escrever ou telefonar     
diga que nada sabe do seu filho há muitos anos    
é melhor assim     
nenhum resíduo nenhum brilho deve assinalar a minha passagem
al berto
três cartas da memória das índias
1983/1985
o medo
assírio & alvim
1997
