04 março 2020

charles wright / poema quase à maneira de li ho




Todas as coisas aspiram à imponderabilidade,
     um lugar além do hábito da linguagem,
certo silêncio, certa zona de graça.

Céu branco como seda crua,
     janela que abre fustigada pelo frio a oeste,
o pôr do sol como erva morta.

Se Deus magoasse como nós magoamos,
     também ele estaria destroçado,
Inconsolável, intranquilo.

Li Ho, segundo a história, sairia de casa
Todos os dias, de madrugada, a cavalo, com o jovem criado atrás dele,
Uma velha saca bordada
Como mochila.
     Quando a inspiração o atingia, Ho escrevia
As frases e deixava-as cair na saca.
À noite voltava a casa e trabalhava as frases num poema,
Por mais desconexas e díspares que fossem.

Uma vez a sua mãe disse,
«Não irá parar até ter vomitado o coração».

E foi o que fez.
     Como John Keats,
Morreu crendo que o seu nome nunca seria escrito entre os Ilustres.
Sem esperança, pensou não ter – a pior praga – sorte.
Aos vinte e sete anos, à beira da morte, viu chegar um homem
De púrpura, cavalgando um dragão vermelho,
Com uma tábua na mão, que disse,
                                                     «Venho convocar Li Ho».
Saiu da cama e chorou.
Longe do quarto de doente, escuro de dragão, a neve assolava os
          desfiladeiros
Macacos vogavam pelas árvores do pagode
                                         e homens insensatos comiam jade branco.

Como estão lúgubres as colinas do sul,
                                                         como é branco o seu desespero
sob a página azul vazia do Dezembro Tang.

De que servem as palavras – não há palavras
Para a redacção gelada de Dezembro,
                                                         para o que nos fez sentir.
Vagueamos como nuvens entre o céu e a terra,
                                                                      entre algo e nada,
Por vezes com sombras, por vezes sem.





charles wright
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





03 março 2020

ulla hahn / inquietante



Macio o dia surgiu
subitamente. De manhã saí
de casa farejei nada
no ar. Tu tinhas-te
esfumado nos raios de sol
reverberava a sete cores o teu pó
poisou em mim e como
ele me penetrou como nunca
antes o meu amante. Nessa manhã
fazíamos
um par inquietantemente belo.



ulla hahn
trad. joão barrento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





02 março 2020

konstantinos kaváfis / che fece… il gran rifiuto



Para algumas pessoas há-de chegar o instante
em que têm de dizer o grande Não ou o grande Sim.
Nessa altura se mostra qual delas tem dentro de si
pronto o Sim, qual o diz e logo segue adiante

do seu valor segura, e da sua certeza.
Quem nega não renega. E à pergunta, repetida,
“Não” diria. Porém durante toda a vida
Aquele “Não” tão certo lhe há-de ter a vida presa.

1901



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





01 março 2020

rui costa / diálogo



Não acredites: as pessoas que te falam em diálogo
querem o teu mal. Dizem que a compreensão deve
ser «cultivada» - e esperam bem sentados que te estateles ao
                                                                               comprido
na frente de uma esplanadazinha com vista para o tédio.

(Afasta de ti esse cálice!)
Eles querem o teu sangue mas depois não sabem o que fazer com
                                                                                            ele,
não fazem nada com ele,
não o bebem, não o vendem, não o poluem com o teu
olhar desvairado ante o corpo aberto dela, do seu nexo tão
carente de ti.

Que a planta tem que ser regada para crescer, ah por favor –
não compres asas novas para a eterna toupeira.
A coisa verde estende as mãos para alcançar a água –
e depois cresce para o sol, incha,
porque ela usa-o e é usada por ele, e usar e ser usado é que é
o meu desejo cheio, a amizade toda e – foi assim connosco mas
                                                                                 já não é –
a  essência do amor (essa magra celulite que tu deves alcançar pelo
                                                                                           diálogo
na demonstração diária do respeito mútuo e sabiamente partilhado!)

Ainda pensas que te darei uma definição do amor?

Dou-te apenas o que não pode ser aceite:
o meu ar luminoso e irascível!
– e nenhum deus invoco ou minimizo.

Faz o que quiseres, ou o que puderes, com o que eu te dou.
É para isso, é por isso que (o café está bom)
(e) eu gosto de ti.


rui costa
à solta no ringue
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




29 fevereiro 2020

antonin artaud / e que o plano se inflame em volume,



E que o plano se inflame em volume,

pois o plano não tem volume,
é o volume que faz o plano;

o volume come o plano
a girar por todos os lados.


antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






28 fevereiro 2020

john freeman / encobrimento



Se
pudéssemos
traçar um atlas
da dor, a maior
porção da terra
seria terra
incognita.



john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019






27 fevereiro 2020

ron padgett / lá em baixo



As pessoas costumam repetir o velho conselho
«Vive todos os dias
como se fosse o último dia da tua vida».
O último dia da minha vida? O quê?
Ficaria frenético, a pular
como um canguru
com luvas de boxe
a socar o ar,
a tentar lutar contra o que quer que viesse.
O que as pessoas querem dizer é
«Estar plenamente comprometido com a vida».
Como um canguru sem luvas de boxe.


ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018






26 fevereiro 2020

jesús lizano / a verdade



É triste a verdade. É o mais triste que há.
Vivemos de verdades que nos vivem,
verdades que inventamos e se escrevem
como leis de um mundo que não existe.

A Razão, sua loucura, reveste-se
de fantasmas perdidos que recebem
nomes que nos dominam e sobrevivem
fingindo a verdade. Em que consiste

essa alucinação que determina
o domínio que a converte em deusa
senão em falso sol da nossa essência.

Foge desse feitiço que a anima,
confusa e tão sangrenta e venenosa.
Não é a verdade a luz. É a inocência.


jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019





25 fevereiro 2020

herberto helder / lugar



III
As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus —
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.

Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São broncas e doces, mudam
de cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
os dias brilhantes de desgraça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
e uma suavidade amarga —
as mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema
com o fogo podre de um sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da sua seiva de cinza brilhante.

O pão de aveia, as maçãs no cesto,
o vinho frio,
ou a candeia sobre o silêncio.
Ou a minha tarefa sobre o tempo.
Ou o meu espírito sobre Deus.
Digo: minha vida é para as mulheres vazias,
as mulheres dos campos, os seres
fundamentais
que cantam de encontro aos sinistros
muros de Deus.
As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram
a boca e o ânus
e a mão vermelha lavrada sobre o sexo.

Espero que o amor enleve a minha melancolia.
E flores sazonadas estalem e apodreçam
docemente no ar.
E a suavidade e a loucura parem em mim,
e depois a europa tenha cidades antigas
que ardam na treva sua inocência lenta
e sangrenta.
Espero tirar de mim o mais veloz
apaixonamento e a inteligência mais pura.
— Porque as mulheres pensarão folhas e folhas
no campo.
Pensarão na noite molhada,
no dia luzente cheio de raios.

Vejo que a morte se inspira na carne
que a luz martela de leve.
Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura
veemente da ilusão,
nelas — envoltas pela sua roseira em brasa —
vejo os meses que respiram.
Os meses fortes e pacientes.
Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.
Vejo meu pensamento morrendo na escarpada
treva das mulheres.

E digo: elas cantam a minha vida.
Essas mulheres estranguladas por uma beleza
incomparável.
Cantam a alegria de tudo, minha
alegria
por dentro da grande dor masculina.
Essas mulheres tornam feliz e extensa
a morte da terra.
Elas cantam a eternidade.
Cantam o sangue de uma europa exaltada.



herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996








24 fevereiro 2020

fernando alves dos santos / o sol e a fronte



III

Ferido pelos astros que imagino, porquanto sei do desejo de conhecer a última voz, reconheço quanto o preço é de cinza e de loucura. Todavia, existo, para que existam estas praias e estes sonhos, para que cruzem nas minhas ruas todos os que comigo se cruzam e o reconhecem, todos os que passam de intuição e surpresa nesta tranquilidade só aparente, feita de sangue e de lamentos e de pânicos e de águas desaparecidas na própria lei que nos fará desaparecer como a lua, batida pelo vento, mas sempre devolvida.

Este é o preço de fadigas. Este regresso que me envolve no desejo de ouvir a última voz.



fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005









23 fevereiro 2020

daniel faria / sou gémeo de mim



Sou gémeo de mim e tudo
O que sou é
Distância.
Estou sentado sobre os meus joelhos
Separado.
Aquilo que une
É um rumor.
Não descanso. Sou urgência
De outro sítio. E pudesse velar-me
Longe
Dos homens como se neles
Adormecesse.



daniel faria
poesia
quasi
2003








22 fevereiro 2020

fernando echevarría / em certas casas



Em certas casas o silêncio quase
reduz as estruturas à evidência,
de forma a os alicerces lhes fundarem
aquela irredutível diferença
que as institui. E desentranha a habitável
capacidade de luz e de paciência.
Porque o silêncio as sabe
translúcidas. Sua substância entra
com um alento de subtilidade.
E por dentro dos poros a sustenta.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998








21 fevereiro 2020

manuel antónio pina / palavras



Palavras perpetradas em silêncio
na cama, lugar de assassinos.
Escondo-me para morrer. Nenhuma lógica é mais mortal
que esta estúpida perversão, esta morte.

Estúpidos lençóis; escrita de
corpos grosseiros; crimes passionais.
Falta-me uma palavra essencial,
um som perverso para morrer: um sonho.

Contraem-se os músculos na vigília.
Preciso do sono e do movimento dos corpos
para dirigir devidamente o pequeno crime
da tua morte. Agora calo-me um pouco.


manuel antónio pina
rebis
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992