A literatura, que é a arte casada com o pensamento,
e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria
tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma
superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e
tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor.
As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação,
terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há
nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da
casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal,
dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia
bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória
florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os
campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos
seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos
imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo,
verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande
panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de
testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos,
porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos
fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso
de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre
de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a
tudo quanto poderia ter dito.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982