16 outubro 2019

luiza neto jorge / os frutos frios por fora



A vida está cada vez mais cara
no meu tempo a vida
era mais em conta
fazia menos calor
as cidades não mudavam de lugar
corria uma brisa, como uma vassoura.

O fruto, um autómato surpreendido.
Desprendeu-se da casca, que viu?
Um autocarro, um avião, um submarino.
Os frutos frios por fora
são por dentro aquecidos a electricidade.
Os frutos davam frutos, flores, brinquedos.

No meu tempo o rio corria limpo
como um corredor novo
nadávamos nus
uns pelo meio dos outros
extraíamos um amante do vulcão mais próximo.

A um dos meus o mais novo
o mais próximo da sua idade
matou-o o fumo!

Vivia-se até à última.
A vida era mais em conta; depois
derramaram-se histórias sobre mim
os olhos de Buda destilavam
penicilina, eram o que se chama uns olhos
divinos.

Nunca mais quero animais
em casa. Morriam os animais
comprava-se veneno, matava-se gente.

Muitos amantes dormindo sobre a lava.
Morríamos em ilhas separadas por
um cordão de rios ininterruptos.
Nem tínhamos idade para ser crianças num
continente.

Havia no meu tempo fábricas
sumptuosas. Onde se fabricava uma constelação
exacta e limpa, um amor sumptuoso e seus afluentes,
e ínfimas máquinas purgatórias.
Fabricava-se mais e melhor que hoje.

Não há respeito por ninguém;
por exemplo o diamante
não tem a utilidade de uma jóia:
é só um diamante (para um asceta)
só um dia amante (para um suicida).
Com uma jóia, sim, compra-se o mundo.

No meu tempo mal se via a terra
às escuras. Uma luz satélite, um olho
artificial,
uma luz de fruto verde frio por fora
operava esse milagre, essa visão.

Meu pai, que se ausentara,
sabia que seu pai ia ser morto.
Estendia-se a roupa sobre o fogo.
Crescia o pão largo como uma
ampola de penicilina, em tempo de guerra
de guerrilhas.




luiza neto jorge
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985






15 outubro 2019

leopoldo maría panero / território do medo




Está sozinha a aranha no tear do medo
está sozinha e luta contra as estrelas do medo
e canta, canta a aranha canções ao medo
que dizem por exemplo: o medo é uma
mulher que caminha descalça na neve,
na neve do medo, rezando, pedindo a Deus de
                                                                       joelhos
que não haja sentido, e que
a morte caminhe pelas ruas
nua, oferecendo o seu sexo e a sua mão para
nos acompanhar no Medo.




leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019






14 outubro 2019

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci



VI

Vou-me, deixo-te ao entardecer
que, embora triste, tão suave desce
para nós, os vivos, com a luz lívida

que se cola ao bairro na penumbra.
E o transforma. Torna-o maior, mais vazio,
em redor, e, mais ao longe, faz despertar

a raiva de uma vida que do rouco
rolar dos eléctricos, dos gritos humanos,
dialectais, faz um concerto turvo

e absoluto. E sente-se que, naqueles seres
vivos que, ao longe, gritam, riem,
nos seus veículos, nos míseros

casarios onde se consome o falso
e expansivo dom da existência –
a vida não é senão um frémito;

presença carnal, colectiva;
sente-se a ausência de uma religião
verdadeira: não vida, mas sobrevivência

– mais alegre, talvez, do que a vida – como
de um povo de animais, em cujo secreto
orgasmo não há outra paixão

senão a do labor quotidiano:
fervor humilde que dá um ar de festa
à humilde corrupção. Que mais inútil se torna

– neste vazio da história, nesta
ruidosa pausa em que a vida se cala –
um ideal qualquer, mais se revela

a maravilhosa e ardente sensualidade,
quase alexandrina, que tudo tinge
e impuramente ilumina, quando aqui,

neste mundo, algo desaba, e o mundo
se arrasta na penumbra para reentrar
em praças vazias, tristes oficinas…

já se acendem as luzes, constelando
a Via Zabaglia, a Via Franklin, todo o
Testaccio, austero entre o seu grande

e sujo monte, as margens do Tibre, o negro
pano de fundo que, para lá do rio, Monteverde
adensa ou esfuma, invisível, contra o céu.

Diademas de luzes que se perdem,
deslumbrantes, frios, de uma tristeza
quase marinha… Falta pouco para o jantar;

brilham os raros autocarros do bairro,
com cachos de operários às portas,
e bandos de militares vão, sem pressa,

para o monte que esconde, entre aterros
húmidos e secos montes de lixo,
emboscadas na sombra, pequenas prostitutas

que esperam, febris, naquele lixo
afrodisíaco: e, ali perto, entre casotas
proscritas, à beira do monte, ou no meio

de prédios, que parecem mundos, crianças
leves como trapos brincam na brisa
já não fria, primaveril; ardentes

de leveza juvenil, adolescentes morenos
assobiam nos passeios, na bela noite romana
do mês de Maio, numa festa

vespertina; e num rumor festivo voltam a fechar-se
as portadas de ferro das garagens,
quando a escuridão serenou o anoitecer,

e, no meio dos plátanos da Piazza Testaccio
o vento que esmorece em arrepios de vendaval
é muito suave, embora rase ainda os muros velhos

e o terraço do Matadouro, e aí se embeba
de sangue podre, e por todo o lado
remexe restos e cheiros de miséria.

A vida é um sussurro, e os que nela assim se
perdem, perdem-se serenamente,
se de vida têm o coração cheio; e vêem-se

a gozar, míseros, o final do dia; e, poderoso
entre gente tão fraca, o mito renasce
para eles… Mas eu, com o coração consciente

de quem só na história tem a vida,
poderei agir de novo com pura paixão,
se sei que a nossa história terminou?

1954




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005







13 outubro 2019

raul brandão / memórias




[…]

… Outra época maravilhosa em que os amigos são pedaços da nossa própria alma. Formámos um ser. Descobrimos com eles não já o mundo exterior, mas o mundo mais vasto do espírito. Comungámos juntos. Com alguns quebrei, mais tarde, por impaciência, e ainda hoje o sinto. Uma parte do meu ser ficou tão magoada que não gosto de lhe tocar: dói-me sempre. Há-de doer-me até à morte. Mas então a amizade é um sentimento delicioso e com o viço da primeira folha, quando irrompe e estremece.

O mundo, nesse tempo, restringia-se, para mim, à Foz e a Leça, que não separo do pequeno pescador de camisola azul, que me seguia com os olhos deslumbrados – o Nel – e das figuras de António Nobre e de Justino de Montalvão.

Não os separo também do mar, do rio, dos barcos, da atmosfera cheia de cor e de deslumbramento, onde, misturada à poalha do mar, à luz doirada e a todos os reflexos do sol, anda a exaltação da nossa própria alma… Foi num barco que conheci o Justino Montalvão, foi num barco, ao lado dum velho pescador, que conheci o António Nobre, que logo me perguntou se não tinha uma Bíblia que lhe desse.
     – Para que quer você a Bíblia?
     – Para deitar a cabeça, quando for no caixão.

[…]



raul brandão
memórias
relógio d´água
2018






12 outubro 2019

wilson alves-bezerra / vida de gado






6

Este pato representa a indignação das pessoas.

O povo brasileiro é um povo do bem.

O pato, com este olhar de paz,
é a forma brasileira de protestar.





wilson alves-bezerra
o pau do brasil
editora urutau
2018





11 outubro 2019

manuel de castro / poema




A noite líquida     oclusa     vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se da memória

e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido

a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos     na inconsciência dos prédios
sobre a cidade     a cidade     a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos     nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora

viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:

o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo     sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos     baleado
assassinado     corrupto     perdido

o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada     num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso

o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia

a noite é um coral magnífico na noite



manuel de castro
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992






10 outubro 2019

rené char / folhas de hipno




38
Deixam-se cair com toda a massa dos seus preconceitos, ou ébrios com o ardor dos seus falsos princípios. Associá-los, exorcizá-los, aliviá-los, muscula-los, amortece-los, depois convencê-los que a partir de certa altura a importância das ideias feitas é extremamente relativa e que, no fim de contas, o «assunto» é um assunto de vida e de morte e não das nuances a fazer prevalecer no seio de uma civilização cujo naufrágio se arrisca a não deixar marca sobre o oceano do destino, é isso que me esforço por fazer aprovar à minha volta.


         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000





09 outubro 2019

raul bopp / cobra norato



VII

Ai! Tenho pressa. Vou andando
Furo tabocas
– Onde estou?

Árvores de galhos idiotas me espiam
Águas defuntas estão esperando a hora de apodrecer

Escorrego por um labirinto
com árvores prenhas sentadas no escuro
Raízes com fome mordem o chão

Carobas sujas levantam os vestidos
como cachos de lama pingando

Açaís pernaltas
movem as folhas lentas no ar pesado
como pernas de aranha espetadas num caule

Miritis abrem os grandes leques vagarosos

Sapo sozinho chama chuva

No fundo
uma lâmina rápida risca o mato
Trovãozinho roncou: já vou

Vem de longe
um trovão de voz grossa resmungando
abre um pedaço do céu
Desabam paredões estrondando no escuro
Arvorezinhas sonham tempestades…

A sombra vai comendo devagarzinho os horizontes inchados



raul bopp
cobra norato
editora josé olympio
rio de janeiro, 2016






08 outubro 2019

maria-mercè marçal / que saudade





Que saudade, toda trapos e esquecimento,
sem te saber ainda
cambaleava, tão ébria
e inábil como um mendigo,
abrindo as mãos, estendidas
a você?
                 Que espanto
sangrento, como um galo
decepado, mudo, interrompia
o passo da alba que te trazia?
Que saudade?
                 Que espanto?




maria-mercè marçal
desglaç / degelo
tradução meritxell hernando marsal
e beatriz regina guimarães barboza
editora urutau
2019




07 outubro 2019

vicente huidobro / altazor ou a viagem em pára-quedas



canto I


[…]

O sol nasce no meu olho direito e põe-se no meu olho esquerdo
Na minha infância uma infância ardente como álcool
Sentava-me nos caminhos da noite
A escutar a eloquência das estrelas
E a oratória da árvore
Agora a indiferença neva na tarde da minha alma
Rompam-se em espigas as estrelas
Parta-se a lua em mil espelhos
Volva a árvore ao ninho da sua amêndoa
Só quero saber porquê
Porquê
Porquê
Sou protesto e arranho o infinito com as minhas garras
E grito e gemo com miseráveis gritos oceânicos
O eco da minha voz faz trovejar o caos

[…]



vicente huidobro
altazor ou a viagem em pára-quedas
trad. fdiogo fernandes
antítese
2018






06 outubro 2019

ricardo reis / para ser grande, sê inteiro: nada



Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.


14-2-1933



fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946







05 outubro 2019

carlos ramos / notas para não esquecer




rever os modos de me aproximar à morte
deixar-me mais tempo nos teus braços
ser a ferida que se oferece ao teu corpo
congelar-me nos teus olhos e esperar que ardas.




carlos ramos
as mãos por dentro do corpo
edições fantasma
2015









04 outubro 2019

carlos eurico da costa / parábola quotidiana



Não quero as tuas hossanas prováveis
A tua face ou a Sodoma dos gritos
A tua presença o teu destino
De alquimista que descreve
Um santuário de neve
E do teu perfil irisado – eu falo
Na propícia penumbra ausente de olhares
Fixando o rumo dos navios que dispersos
Ajustam contrapõem e encobrem
O fulcro temporal das luzes nocturnas.
Não falo das cinzas dos cirurgiões ou dos cegos
Falo desta terra da corrente desobediente
Do estilhaço que à superfície das águas corre
Quando a maré vem e os barqueiros dormitam
Golpeando as gargantas deixando adivinhar
A língua de fogo o seu astro maldito.
Não falo desta oportuna parcimoniosa lamentação
Do que vem ou foge regressando no vento – os perfumes acres
O cheiro animal
Do homem que no cais fita a lua
Destes homens e mulheres de pastoril juventude
                dormitando vivendo gravitando vivendo  
Ah eu falo-te meu amor eu falo-te
E a tua imagem surge até na mais disforme poeira
Nos braços que lanço sobre o muro
Do que procuras antevês
E sempre distante entre a porta que rodeias
E o meu fantasma
Solta o grito o animal tresloucado.
Temos um vago desenhar de circunstância
Que não nos aproxima mas adivinha-nos
A parábola activa talvez a verdadeira força
O sangue que aflui
E a criança que vagarosamente sobe a escada
E em silêncio precipita-se no vácuo.



carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965