26 setembro 2019

joão silveira / instruções para a descida




Devia existir um livro chamado
Instruções para a Descida
que começasse assim:


sem querer ser mais fraude
do que a fraude que sou,
e contra a falta de coragem
de nadar para zona sem pé,
fruto-granada
de cérebro em dificuldades elétricas
e de coração pouco bóia,
arrisco zona de naufrágio,
cirurgia de peito aberto,
má companhia para o jantar,
condutor numa viagem acidentada,
topógrafo do cataclismo
– seja para aclarar o peito de vertigens,
seja para dormir e apenas dormir,
sem imagens.




joão silveira
motores gerais
douda correria
2019







25 setembro 2019

alberto pereira / comícios do ego



I

Venho falar-te do fôlego dos cínicos,
da longa máscara que finge ter mastro,
desses requintados oradores de varizes gourmet.
Dos que descobrem na última curva dos gestos
que foram cítaras com gume.

Sou anzol que sai do útero do poema
para elevar o osso da fala até aos lírios.
Velho merceeiro de colisões.
Atalho entre a pólvora e um revólver.

Sou sede,
hospício a galope na dinamite.
Uma lâmpada muito nítida
que se acende em Victor Hugo.

Encerro o âmago
o oceano como Homero, o Cáucaso como Ésquilo,
Roma como Juvenal, o inferno como Dante,
o paraíso como Milton, o homem como Shakespeare.

Revolução,
atlas de um povo consumido
que explode na iniciática
viagem à carótida da pátria.

São sempre os loucos que calçam sandálias ao hino.



alberto pereira
como num naufrágio interior morremos
editora urutau
2019






24 setembro 2019

gertrude stein / um retrato de um




Harry Phelan Gibb


     Algum um sabendo que tudo é saber que algum um é alguma coisa. Algum um é alguma coisa e está conseguindo esperar essa coisa. Está sofrendo.
     Está conseguindo esperar e está conseguindo dizer que isso é alguma coisa. Está sofrendo está sofrendo e conseguindo esperar que conseguir dizer que está conseguindo esperar é alguma coisa.
     Está sofrendo, está esperando, está conseguindo dizer que qualquer coisa é alguma coisa. Está sofrendo, está esperando, está conseguindo dizer que alguma coisa é alguma coisa. Está esperando conseguir esperar que alguma coisa seja alguma coisa. Está esperando conseguir dizer que está conseguindo esperar que alguma coisa seja alguma coisa. Está esperando conseguir dizer que alguma coisa é alguma coisa.



gertrude stein
poesia da recusa
augusto de campos
perspectiva
são paulo, 2011






23 setembro 2019

guilherme gontijo flores / talvez como um salário da loucura




Talvez como um salário da loucura
ou das tamanhas solidões
que calharam de caber
nesta noite o sol
vem soluçando aos nossos copos
                        ouro no ouro
enquanto ainda restam
dedos braços alçados goela
perdura uma ânsia
por nada esta escuma



guilherme gontijo flores
carvão: :capim
artefacto
2017





22 setembro 2019

marcus daniel cabada / a ninguén



Que limite puidera atesourarche a lin-
guaxe? A que vasta persinaxe enlearias o
silencio da nostalxia? Que fronteira cara
o roce imporias como soño inalcanzable?
Que imaxe abaterias tras fenecer na ou-
sadia doutro espello? Que assumirias do
universo se unha ausência non varrese
todo o que no tempo xa te abarca?



marcus daniel cabada
un xardín de medio lado
17 poetas da urutau na galiza
antoloxia
urutau
2019






21 setembro 2019

hugo carvalheira neves / não me tires o ar da boca



não me tires o ar da boca senão para passá-lo ao próximo
e não quero saber do próximo
ar que tiro
pleural, pulmonar, carnívoro
que faz de mim só seguinte mas não ao pé
não à beira
da mancha, entre tantas, que carregas
mudável sob a pele.




hugo carvalheira neves
certa parentela
do lado esquerdo
2019








20 setembro 2019

màrius torres / a noite dos vagabundos




Não é que nós, na noite escura, sigamos
a luz vacilante e longínqua de um destino.
É que a noite cruel, para nos atingir, envia
a cada coração um sonho mais belo do que qualquer manhã.

Ela, que das luzinhas de um lugarejo mesquinho
nos faz um palácio de feitiço em cada lonjura
e nos engana, sabendo que somos fracos, assim
ao ter o nosso desejo como única companhia.

E fria, olha para nós. Como uma loba em repouso
alonga pelo espaço a curva do seu corpo
elástica, luminosa, cheia de realeza;

até que, com a altivez dos velhos monstros divinos,
salta do céu para o mundo, e nos faz reféns,
a nós, os pobres vagabundos dos caminhos…


                                                     Outubro de 1937




màrius torres
a cidade longínqua
antologia
trad. rita custódio e àlex tarradellas
ovni
2010






19 setembro 2019

manuel a. domingos / blues




São tristes pela manhã
os olhos dos trolhas
sobre o café e o primeiro
bagaço dobrados

O sotaque denuncia
outra vida que ficou longe:
o filho ainda a dormir
a mulher sozinha

Procuram conforto
no cigarro aceso pela chuva
que os deixa no chão
porque hoje ninguém

sobe aos andaimes
Resta apenas olhar
os prédios em frente
esperar pela carrinha

de nove lugares que
os levará de volta à terra
à província como aqui
na cidade se diz




manuel a. domingos
aprendiz
volta d´mar
2019








18 setembro 2019

joão rebocho / quando quase casaste







quando quase casaste
mandei-te quase
seis meios cavalos
a breve saudação,
eu era só a tua personagem
atravessada no livro
mãos nos bolsos e a profunda
abstração
da turma toda
adormecida,
quase em tua casa a mãe de Dario,
esse também é Alexandre
quando chamou-me Alexandre
quase, disse Alexandre



joão rebocho
o ano ímpar
edição do autor
2019







17 setembro 2019

nuno / blue monday



Chegarás enfim numa tarde
azul. Dir-me-ás que estou velho,
na minha funcionalidade sufocante
de quem viu apenas o caminho como ele pode ser.
Dir-me-ás para beber menos,
que outros, outros, os outros.

Muitos ficaram na sociopatia normal dos cafés
de onde me escrevias nos guardanapos
que sempre esquecias, embalavas, que nem
sempre existiram,
por entre todos os homens que beijaste.

Dir-me-ás ______________
E devolver-me-ás os livros, as respostas
e as palavras que deixei nos teus cabelos,
porque nunca sequer bastou escrever
o mais sublime poema de amor.

Sabíamos desde o início que nada ficaria, e
ainda assim:
                      - não se pode recusar nunca o sofrimento.




nuno
livro de visitas
díptico
ed. do autor
2019






16 setembro 2019

rafael mendes / o inefável momento







eu fujo
dos sinos e capelas
dos poemas de baudelaire
das begónias e cirandas
parques e arco-íris

escondo-me
em soleiras e cortinas
becos e travessas
nos subsolos e terraços
no breu da noite
na névoa do alvorecer

e,
ainda assim,
se faz presente
o inefável momento
em que lhe disse adeus

desde então,
quando durmo, não descanso
nas refeições, não me nutro
os vícios, não dão prazer
no banho, não me limpo
nos livros, não encontro respostas
desde o inefável momento



rafael mendes
ensaio sobre o belo e o caos
editora urutau
2019





15 setembro 2019

ângelo de lima / súplica



Para alguém, foi, do teu olhar a flama,
Como, após noite escura, a luz d´aurora.

Da «selva escura» entre a sombria trama,
Ouve, mulher, como esse alguém t´implora.

Oh, baixa sobre mim o olhar fulgente!...

Que o teu olhar é bálsamo que inora,
Do céu sobre esse seio, em que, latente,

Remorde, há muito, o cancro de um anseio,
De um desejo insensato e sede ardente

De um não sei quê, que em teu olhar eu leio.


ângelo de lima
poesias completas
assírio & alvim
2003






14 setembro 2019

y. k. centeno / o sótão




o sótão: inacessível
nunca mais verei os livros
nunca mais irei lá acima
(eu tenho medo das arcas
eu tenho medo dos ratos
que guardam o impossível)



y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984