02 julho 2019

paul éluard / a perder de vista



NO SENTIDO DO MEU CORPO


Todas as árvores com todos os ramos com todas
                                                                      [as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas
                                                               [amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas
                                                                  [obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos
                                                              [lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os
                                                [olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






01 julho 2019

octavio paz / a ponte



Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.


octavio paz
antologia poética
salamandra (1958-1961)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984







30 junho 2019

carlos edmundo ory / elegia da minha mão



Olho a minha mão: é antiga
como uma planta viva
como uma gota última
de mármore
Olho a minha própria mão distribuída
pelos sítios mais tristes
… nas ocas madeiras do olvido
mão que um pouco de poalha de primeva
luz secou
Minha mão como uma
decepada mão sobre a terra
como uma obscura mão
de ninguém… de outro homem
não minha… de um louco
que a abandonou naquela mesa
… de um morto bem morto
e a quem falta a mão… ou de um homem muito novo
que a deixou esquecida sobre um corpo
de mulher



carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997







29 junho 2019

josé pascoal / eco



Sentes uma vontade terrível de gritar
De maneira que o eco seja ouvido
Dentro de ti.



josé pascoal
ponto infinito
editorial minerva
2018







28 junho 2019

josé saramago / opção



Antes arder ao vento como um archote
Num deserto de sombras e de medos
Que ser dócil rima do teu mote,
Um morrão de cigarro nos teus dedos.



josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018






27 junho 2019

luís veiga leitão / os grandes amigos



São como as árvores
de grande porte,
quando elas partem
as raízes ficam
aquém da morte

1987



luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012








26 junho 2019

joão miguel fernandes jorge / íamos por onde uma erva pudesse crescer



Íamos por onde uma erva pudesse crescer.
Nos cantos da casa, nos mais remotos, onde
cai a chuva e não se sabe onde um dia a
criança deixou pão bolorento depois seco depois cinzas.

Esses remotos sítios das formigas
hei-de entretê-los com pedras
e desbotadas flores de papel
páginas cheias de ninguém.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







25 junho 2019

r. lino / nove instantâneos do sul



.segundo.

que sonho têm os pássaros,
luminoso mar,
navegados os dias?


circunstâncias do sol,
vão as manhãs
as folhas dos pessegueiros
os caroços
e as frutas sumarentas…



r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016





24 junho 2019

jacques prévert / paris at night





Três fósforos um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços.




jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007






23 junho 2019

camilo pessanha / singra o navio



Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fulgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


camilo pessanha
clepsidra
1920







22 junho 2019

saint-john perse / estrofe



[…]

«E como o sal está no trigo, o mar em ti no seu princípio, a coisa em ti que foi do mar, deu-te esse sabor a mulher ditosa de quem nos aproximamos… E o teu rosto está derrubado, a tua boca é fruto a consumir, no casco do barco, dentro da noite. Livre o meu alento na tua garganta, e o remontar por todos os lados dos lençóis do desejo, como nas marés de lua próxima, quando a terra fêmea se abre ao mar salaz e dócil ornado de bolhas, até aos seus pântanos, às suas maremas, e o mar alto nas pastagens faz o seu ruído de nora, a noite está cheia de eclosões…

[…]


saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016






21 junho 2019

federico garcia lorca / rosa mutável




Ao abrir pela manhã
rubra como sangue está.
O orvalho não a toca
com medo de se queimar.
Aberta à luz do meio-dia
é dura como um coral.
O sol assoma nos vidros
só para a ver fulgurar.
Quando nos ramos começam
os pássaros a cantar
e quando a tarde desmaia
nas violetas do mar,
torna-se branca, tão branca
como uma face de sal.
E logo que a noite toca
brando corno de metal
e as estrelas avançam
enquanto se esconde o ar,
no risco fino da sombra
começa-se a desfolhar.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013





20 junho 2019

leonard cohen / uma rua



Já fui o teu bêbado preferido
Bom para mais uma gargalhada
Depois esgotou-se-nos a sorte
E não tínhamos os dois mais nada

Vestiste então um uniforme
Para lutar na Guerra Civil
Ficavas tão bem que não quis saber
Qual era o lado pelo qual lutavas

Não foi assim tão fácil
Quando te levantaste e foste
Mas vou guardar esta historieta
Para outra ocasião

Sei que o fardo é pesado
Quando o levas durante a noite
Há quem diga que está vazio
Mas isso não o torna leve

Deixaste-me a louça por lavar
E um bebé na banheira
E dás-te bem com as milícias
Usas a sua camuflagem

Sempre disseste que éramos iguais
Por isso quero marchar contigo
Um figurante na sequela
Da bandeira vermelha, branca e azul

Por favor, querida, não me ignores
Éramos fumadores e amigos
Esquece essa velha história
De traição e de vingança

Vejo o Fantasma da Cultura
Com os números no seu pulso
Saudar uma nova conclusão
Que todos nós perdemos

Chorei por ti esta manhã
E chorarei por ti de novo
Mas não controlo a dor
Por isso não me perguntes quando

Talvez ainda haja vinho e rosas



leonard cohen
a chama
problemas populares
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019