28 dezembro 2018

joaquim manuel magalhães / inverno em vila real




Inverno em Vila Real. O nevão
cobria a rua do liceu.
Uma luva de cabedal amodorrado
no tampo, o vapor do alento
liga-nos à toada de um remoinho.
O meu tumulto ensombra-te.

Um pombo protegido no beiral,
a cabeça na plumagem de procela.
Tu calado, eu afeito ao silêncio, delineava-se
no papelão do compêndio uma letra
do nosso nome em conjunto,
única sílaba fora de alfabeto algum.
Que bem tão mal na confeitaria, sem o padrão ainda,
se convinha, se faltava à aula, na sediciosa ocasião
de um inaugural amor.

O foro furtivo já desagregava.
Nem te projectaria sequer
na luta em sobressalto do meu rumo.
Porém, sempre que falarem em neve
e o que for teu vier pela avenida
algo do desaparecimento, quem sabe, te recordará.




joaquim manuel magalhães
para comigo
segredo, aluvião
relógio d´água
2018






27 dezembro 2018

pat boran / mudança



                        em memória de Michael Hartnett



O calendário da secretária nas últimas folhas.
No abajur uma aranha minúscula tece
um manto de inverno.
O céu é uma única nuvem
mais carregada contudo para oeste.
O crânio de um ninho de andorinha
sorri na caleira.



pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







26 dezembro 2018

leonard cohen / o amor é um fogo




O amor é um fogo
Queima-nos a todos
Desfigura-nos a todos
É a desculpa do mundo
para ser tão feio




leonard cohen
poemas e canções
a energia dos escravos
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999








25 dezembro 2018

elio pecora / desde sempre abomino as armas,




Desde sempre abomino as armas,
não sei se por soberba ou se por medo,
e quanto aos cavaleiros
prefiro os cavalos.
Amo, sim, o amor
e continuo a procurá-lo
blasfemando e sofrendo,
como se não soubesse
que estou em servidão.



elio pecora
poemas escolhidos
recinto de amor (1992)
tradução de simoneta neto
quasi
2008







24 dezembro 2018

paul éluard / onde é que eu ia?




Faz-se tarde o céu abandona o quarto
Esta noite vou vender as minhas cabras
Caminho atrás de um rebanho
De claridades delicadas
As árvores que me guiam
Fecham-se
Ficam ainda mais seguras
Hoje vou construir uma noite excepcional
A minha noite
Informe como o sol
Toda em colinas redondas sob mãos camponesas
Toda em perfeição em esquecimento de mim próprio

A dançarina imóvel e o peso das suas pernas
Se eu agora a fosse beijar
Suas frívolas cúmplices giram em torno dela
Ondulam alto nas linhas do candelabro
Marcarei de negro o soalho e o tecto
De negro e de repouso de ausência de felicidade
Entre palma e pupila a multidão do prazer
Até no sono se mantém inteira

Esta noite acenderei uma fogueira na neve



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977







23 dezembro 2018

alberto caeiro / pouco me importa.




Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.

24-10-1917




alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946

22 dezembro 2018

fernando echevarría / na aldeia




Na aldeia, os anjos quase que ficam sendo
lugar de paração. Por onde as árvores
só desenvolvem o tempo
na poeira das quelhas sem idade.
O estio mensura-lhes o alento.
E a secura estende-se imutável
pela atenção de ver como o silêncio
isola cada ruído na sua eternidade.
Mas é nos adros, quando o calor o eixo
imobiliza da tarde,
que o anjo das aldeias nos aparece aberto
respeito onde o azul quase que range.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998






21 dezembro 2018

joão vasco coelho / discussão




Agora vejo,
mais nítido que o zero da régua,
os sábados
os domingos de pedra,
assim silenciosos
nas alturas.

Vejo
como o tempo se demora,
em movimentos mínimos,
nas vozes que farejam defeitos.

Agora vejo
o grão adverso,
o dente miúdo lavradio,
dos amores que se trancam em casa,
sem pele alguma,
a discutir viennettas.




joão vasco coelho
eufeme
magazine de poesia
n.º 8 julho/setembro 2018







20 dezembro 2018

carlos poças falcão / a verdade é um dom silencioso




A verdade é um dom silencioso
move-se ou repousa em regiões não devassadas.
Dá-se a ver por vezes em esfinge
ou nessa liberdade que se ajusta bem ao corpo
abotoando a alma mas deixando solto o espírito
– para não travar o voo
para não negar encontro
para cumprir-se todo no instante de viver.



carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018








19 dezembro 2018

juan luis panero / lenha e cinza



Falamos de sórdida política ou de alguém que acaba de
          telefonar,
das mudanças do dia e das rajadas da nortada,
tudo sem importância ou demasiado importante,
por vezes aborrecido e sem dúvida íntimo, pouco grandiloquente.
Depois de tantos anos conhecermos as perguntas e as suas vagas
          respostas,
mas ainda assim surgem as palavras, que se esfumam
como o fumo dos cigarros ou da lareira.
Impassível como a lenha, indecifrável como a cinza,
assisto à tua remota presença – tão próxima –
e sei que os teus lábios e este copo vermelho
apenas anunciam, reflectem, um tempo de derrota.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003







18 dezembro 2018

david lehman / interior holandês




Ele gostava da luz do fim de tarde a diminuir
Na sala de estar e não acendia
As luzes até passar das oito.
A mulher queixava-se, chamava-lhe sombrio, mas
Não era um caso de melancolia; gostava apenas
Do aspecto das coisas no ar cada vez mais escuro
Tão gradual e imperceptivelmente que parecia
O próprio ambiente em que vivemos. Todos os homens
E mulheres merecem um momento verdadeiro de grandeza
E este era o seu, este interior Holandês, onde se entrou,
Que se possui, tão calmo e contudo tão cheio
De detalhes: as roupas despidas do casal espalhadas
Nas costas das poltronas, o cão atrás dum sapato,
A janela bem aberta, a luz do fim de tarde.



david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017







17 dezembro 2018

silvia ugidos / os dias traidores




São esses que nos passam pelas mãos
com gestos quotidianos,
onde nunca acontece
nada mais senão a vida
com minúscula, quero dizer.
Os do chá com limão enquanto lá fora chove
e se fuma no café para passar a tarde,
os do regresso a casa pelas ruas do costume.
São os dias das coisas pequenas
que secretamente pactuam connosco
o peso dos anos.
Os dias traidores:
silenciosos, amáveis
são o futuro que pouco a pouco aproximam
o oculto abraço da morte
com a mesma doçura
com que os braços do amigo acolhem o meu cansaço.



silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








16 dezembro 2018

florbela espanca / ao vento




O vento passa a rir, torna a passar,
Em gargalhadas ásperas de demente;
E esta minh’alma trágica e doente
Não sabe se há-de rir, se há-de chorar!

Vento de voz tristonha, voz plangente,
Vento que ris de mim, sempre a troçar,
Vento que ris do mundo e do amar,
A tua voz tortura toda a gente! ...

Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!
Desabafa essa dor a sós comigo,
E não rias assim ! ... Ó vento, chora!

Que eu bem conheço, amigo, esse fadário
Do nosso peito ser como um Calvário,
E a gente andar a rir pla vida fora!! ...


florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981