01 outubro 2018

antónio franco alexandre / no resto dos seus olhos




no resto dos seus olhos
pousarei o lençol lembrando
o ângulo das chuvas, e os brandos
meteoros.

passeio-me
de tranças, com um fio
azul por entre as franjas
flexíveis da memória.

encontro esse motivo nos seus dedos
na sua carne de curtume branco.

deixe que viva nos seus olhos, rosto.



antónio franco alexandre
ana jotta
sumário
livro de artistas
europpalia 91
1991








30 setembro 2018

ricardo reis / negue-me tudo a sorte, menos vê-la,




Negue-me tudo a sorte, menos vê-la,
        Que eu, estóico sem dureza,
Na sentença gravada do Destino
        Quero gozar as letras.

20-11-1928


fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946















29 setembro 2018

filipa leal / são joão




Lembro-me que o Miguel saiu com o manjerico
debaixo do braço.
O manjerico pertencia ao restaurante Batalha,
como os cães pertencem aos seus donos
e os humanos aos seus amantes.
O Miguel roubou o manjerico, é certo,
mas o dono do restaurante devia ter estado mais atento.
O dono do restaurante já devia ter idade para saber amar
as suas plantas.




filipa leal
vem à quinta-feira
assírio & alvim
2016










28 setembro 2018

luís falcão / a casa fechando-se




A casa fechando-se
sobre a vastidão da infância
infiltrações e humidades
entranhando-se
no tempo que te resta
a um canto
a correspondência interrompida
pressupostos inadiáveis
amontoando-se
sob o pulsar irredutível
de uma exigência de infinito



luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016










27 setembro 2018

vasco gato / o carro suspenso na chuva




O carro suspenso na chuva
Todo o ar por nossa conta
– chegará? –
inútil o volante
inúteis as frequências da rádio

duas vidas apenas
soldando-se na indiferença
de uma rua completamente marginal


vasco gato
um passo sobre a terra
língua morta
2018












26 setembro 2018

joaquim manuel magalhães / volta de novo a estação das vinhas




Volta de novo a estação das vinhas.
Nós os dois não voltaremos a sentar-nos
na sombra fosforescente do pátio.

Há apenas para contar a meia-idade
que faz fugir os olhos dos piores.
Assim nos ríamos nós há muitos anos
das seduções que nos procuravam
e partíamos depois de conversas e de álcool
para o resto da noite com os da nossa idade.

Um pouco mais de tempo e um de nós
ouvirá que morreu o outro. Só então,
a medo, só então haverá isso de que nos rimos,
lágrimas.


joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990








25 setembro 2018

josé amaro dionísio / uma forma de prisão provida da matéria dos dias




Uma forma de prisão provida da matéria dos dias. O único problema do homem é que é um bicho para morrer – como todos os outros, já se sabe. Mas, desgraça maior, ao contrário de todos os outros passa os dias a inventar o que pode para iludir isso. Cansa-se, e povoa à sua volta uma ausência de pessoas com que cria o paradoxo dum universo concentracionário em que toda a ressonância humana resulta da assunção ostensiva dessa ausência. Há uma pintura assim.



josé amaro dionísio
eduardo batarda
a sombra do sangue
livro de artistas
europalia 91
1991













24 setembro 2018

rené char / violências




Acendia-se a lanterna, imediatamente cercada por um pátio prisional. Os pescadores de enguias iam lá escavar ervas raras com o seu ferro, na esperança de delas extraírem qualquer coisa para cevar as suas linhas. Toda a quadrilha das escumas tinha aí o seu refúgio ao abrigo da necessidade. E todos os dias se repetiam as mesmas manobras de que eu era a vítima e a testemunha anónima. Optei pela obscuridade e pela reclusão.

Estrela do destino. Entreabro a porta do jardim dos mortos. As flores servis retraem-se. Companheiras do homem. Ouvidos do Criador.

         
rené char
furor e mistério
o ante-mundo
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000








23 setembro 2018

bocage / à estanqueira do loreto, célebre pelo seu grandíssimo nariz




Examina-se um planeta
Com telescópio de cá:
Ver-se-ia a cara da Helena
Sem telescópio de lá.

«Salve-se! (diz o Diabo)
Nas masmorras infernais
Se eu hospedasse essa cara,
Onde acomodar as mais?»

Salvo-te (diz Deus ao Demo)
Das masmorras infernais,
Se meteres esta cara
Onde acomodas as mais.

Cara, cara, cara, cara,
Cara, cara, e continua!...
Todas estas caras juntas
Não são tanto como a tua.

Cara, cara, cara, cara,
Cara, cara, e continua!...
Que revolução é esta?
Anda pela terra a lua?

A estanqueira tem marido
Que quando deitar-se intenta,
Como não cabe na cama
Dorme dentro duma venta.

A cara da estanqueira
Por um milhão a comprara;
Se fosse cara de açúcar,
Um milhão, não era cara!

Disse-lhe um sério taful
Que tabaco lhe comprara:
«A sua loja é pequena;
Porque não vende na cara?»

Disse-lhe certo estrangeiro
Que ajusta papéis com massas:
«Quero pôr a sua cara
Nesta loja de caraças!»

São nádegas, ou bochechas?
Arrenego do diabo!
Tem a cabeça no chão,
E sobre o balcão o rabo.
Domingo dois do corrente
Se faz pela vez primeira
O brinco dos cavalinhos
Sobre a testa da estanqueira.

Dizem os da Encarnação
«Que em morrendo a estanqueira
Faz-se a obra, e o cemitério,
Tudo dentro da caveira.»

Deu a estanqueira um espirro
Gritam os vizinhos seus,
Julgando ser terremoto:
«Misericórdia, meu Deus!»

Quer vinhos? Não tem que errar,
Trepe por esses focinhos,
Bata nas ventas, que dentro
Tem dois armazéns de vinhos.




bocage
o surrealismo na poesia portuguesa
organização de natália correia
frenesi
2002






22 setembro 2018

antónio reis / poemas quotidianos




49

É na piedade
dizem
que tudo nasce

eu prefiro
o amor

onde ela cabe

e morre


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017









21 setembro 2018

carlos de oliveira / desenho infantil



II

Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de mortos sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura».



carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001










20 setembro 2018

ruy belo / nos finais do verão



Quando alguns anos aí por finais de agosto o sol por momentos como que se vela
e eu me sinto talvez sem saber porquê subitamente triste ou não sei indeciso
posso fazer várias coisas, no entanto quase sempre o que faço
é correr completamente todas as persianas de todas as janelas de todas as divisões
                                                                                                                 da casa
meter-me na cama cobrir-me todo até a cabeça com a roupa
e começar a ouvir por exemplo o requiem de mozart. Talvez quase todo o verão
tenha passado por mim quase sem eu dar verdadeiramente por isso
terei descido meia dúzia de vezes à praia terei tomado ao todo um banho
terei visto distraidamente uma tarde a areia cair-me do punho
levemente fechado por entre os dedos para a palma aberta da outra mão
O sol terá aplicado diariamente a sua demão de luz a dois lados da minha casa
mais amarelado pela manhã na parede voltada a leste
mais amarelo torrado na parede do lado ocidental pouco antes de passar
o testemunho à sombra avassaladora da noite
O lugar exacto do pôr do sol ter-se-á desviado insensivelmente no
sentido norte-sul dou por isso exactamente no fim do mês
ao levantar os olhos da máquina de escrever e procurar em vão o sol prestes a pôr-se
no estreito intervalo de duas casas à beira-mar onde antes o via
e além disso a passagem do tempo será também visível por exemplo
na altura da pilha dos jornais acumulados a um canto do quarto
no progressivo desgaste do enorme sabonete que dia a dia utilizei
para lavar distraidamente as mãos as diversas vezes que as lavei
Alguma coisa passou para sempre passou irremediavelmente para sempre
alguma coisa que não será principalmente isso mas será também isso
alguns rostos pousados no verão de linhas suaves como certos sulcos na areia
sim decerto alguns rostos estes dias insistentemente repetidos
mas afinal desconhecidos ficarão para sempre nas dobras do verão
e mais uma vez na vida eu não saberei que fazer acreditem
no que digo não saberei verdadeiramente que fazer
Noutras alturas do ano quando a timidez se apodera de mim
ou não consigo olhar alguém nos olhos ou tratar de um assunto prático
tomo um whisky telefono a alguém leio certo tempo o jornal
Agora nestes finais de agosto quando o sol por momentos como que hesitou
o que fiz foi correr as persianas rodear-me de uma certa escuridão
e deixar correr a fita onde se encontra gravado o requiem de mozart
Os violinos como que procurarão serrar suavemente as vozes cheias e leves
instrumentos de sopro violinos e vozes dispor-se-ão aqui e ali por estratos
à maneira das nuvens no céu de alguns destes dias passados
pela hora do pôr do sol lá para os lados do poente sobre as águas mansas do mar
Sentirei talvez a mão de cotão da escuridão pesar-me no peito
estendido apenas existente devido ao ritmo lento da respiração
e o vento socorrer-se-á de vez em quando da cumplicidade da música
que abranda que como que poisa para garantir que sim
que está ali exactamente rente à moldura da janela e procura
fazer-se pequeno para ver se passa por algum interstício
e assinalar a sua presença no quarto por uma ligeira ondulação das cortinas
por um hálito na minha pele que seja bastante para me alterar o ritmo da
                                                                                                respiração
Sentir-me-ei levemente inquieto tenho dois ou três problemas a resolver
estarei triste indeciso inquieto terá passado para mim de maneira
irremediável e não sei porquê mais sensível um tempo de vida
voltarei a cassete do outro lado piscarei os olhos no escuro
Tenho a sensação de que me protegem três ou quatro pessoas
de que três ou quatro pessoas contra as quais às vezes me revolto me fazem falta
não descerei à praia não quero estes dias voltar a descer à praia
Talvez em meados de setembro se porventura se não alterar muito
o ritmo da minha respiração eu abra de novo as janelas veja o tempo que faz
dê uns passos pequenos na casa e me encaminhe lentamente na direcção do mar
Então sim então estarei só. Que é feito daqueles rostos de verão
daquelas silhuetas ao pôr-do-sol interpostas por vezes entre a luz e o livro que lia
a que profundidade se encontram agora determinados passos
ainda não há muito indubitavelmente impressos na areia do verão
perguntarei na falta de outras pessoas talvez ao mar esse mar que mora
sempre aqui e não vai para longe com o verão. Ficarei à escuta procurarei
distinguir no marulho do mar qualquer esboço de resposta
olharei os contrastes da luz incidindo na superfície do mar
Sei que é em vão que tudo será decerto em vão e que mais uma vez
assisti sem remédio de braços caídos à implacável destruição do verão
Que é feito do verão que é feito dessa pausada estação
onde eu sem saber cavara os alicerces da minha vida que é feito
dos olhos sérios e dignos dessa criança ameaçada pelo fim do verão?
por um tempo que em breve a roubaria ao ruidoso convívio do verão?
Quando eu era pequeno e pressentia que me iam levar para longe do mar
despedia-me uma a uma das árvores das pedras que não mais voltaria a ver
mesmo que no ano seguinte as voltasse a ver dava uns passos a cambalear
pensava que seria isso doer-me a cabeça que nunca me tinha doído
Mas não era por isso não era por sentir há pouco no pulso
o fim acerado do verão que eu estava inquieto triste
ia jurar que não era por nada disso que não tinha nada a ver com isso
Agora sim agora estarei inquieto e triste por saber mais profundamente
do que uma unha cravada na carne que alguma coisa sem remédio acabou
que certos rostos precisamente esses rostos que amiúde o verão
utilizava para ser leve fazer parte das minhas coisas fazer
talvez parte de mim repousam para sempre amortalhados no verão
estarei triste por ver que mais uma vez terei falhado inapelavelmente na vida
Inútil agora fechar as janelas deitar-me voltar a ouvir o requiem de mozart
inútil mesmo estar certo de que fizesse eu o que fizesse
mesmo que o fizesse no devido tempo tudo seria inútil
Abrirei a janela fincarei o queixo no peitoril da janela
farei uma última tentativa para procurar saber onde é que se esconde
o verão onde é afinal o sítio sossegado do verão
Ficarei sem remédio triste à janela do meu quarto
de olhos perdidos no mar perdidos com o verão



ruy belo
toda a terra
todos os poemas III
assírio & alvim
2004







19 setembro 2018

manuel gusmão / b.




aprende a falar – diz
a rosa: escreve de noite
e que o meu múltiplo sol
te guie inúmeros
os caminhos, põe-te numa sala
com a luz apagada
onde chegue acesa
a de uma outra, e
frágil,
ao papel que para ela
voltas. então, falas
das paixões, da pétala
que cai no interior
do coração
e navega na sombra do
sangue,
de assombro em
assombro.



manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
caminho
1990