16 março 2018

eduardo moga / que dentro há um sol




Que dentro há um sol. Como germina no ataúde
invisível do corpo. Como arreigadamente
brilha, com que penumbra de assombrado meteoro,
com que óptima quietude. Alamedas suspensas
esperam, junto do músculo, que se esvazie o fogo
que impregna a noite. É a teia, cerrada,
que regressa; é o raio inverso que revela
com a sua voz seminal as possibilidades
do gelo. A cinza dessangra-se. O cereal,
aproximando-se, procura gargantas onde furtar-se
às ardentes chuvas, fundamentos para a ponte
que só os vivos hão-de pisar, os inermes,
os que se curaram. Touros que respiram como arcos
tensos: ainda não. Acérrimos cavalos
que optam pelo sismo: não. Água que se vertebra,
como um súbito pescoço, ou cravos que a ferem:
ainda não. Terra sem sexo que oferece
o seu voo, a sua lentíssima energia, ás árvores
impacientes; penínsulas faltas de sol e omoplatas,
onde vertiginosos peixes, inacabados
ainda, ignoram o fluir dos sudários.
É demasiado cedo para o tempo.

                […]




eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







15 março 2018

al berto / salsugem




3
era um barco
onde os homens regressavam como um lamento
tinham saudades de ilhas… embebedavam-se
no receio de nunca chegar
deitados nas tábuas de sarro do porão
com o cio da noite pegando-se aos membros húmidos
esperavam que se avistasse terra
onde pudessem enfim reabastecer-se de alimentos
água fresca… e quem sabe se uma carta não bastava
para saciar as sedes e as fontes do irrequieto coração

assim se quedavam paralisados
os ventos roçando as cordas… as vagas contra o casco
suspirando mansos olhavam depois
a baba acetinada dos peixes voando

era um barco
uma sombra do mar com o sol tatuado à proa… avançava
como avançam as vozes aquáticas pelos sonhos adentro
perturbando a navegação da memória
era um barco
com o velame cansado e as mãos calejadas
pelas tempestades das sete partidas do mundo

chegava ao porto
descarregava palavras dialectos estilhaços de concha
espinhas pedaços de corda que na incerteza dos dias
alinhava pelo cais vislumbrado doutro corpo
e voltava a partir
evitando o silencioso plâncton dos espelhos
acostando somente à memória dalgum distante lugar
onde o amor largou sobre o corpo-amante
uma esteira de conhecidas e sangrentas mercadorias




al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








14 março 2018

yorgos seferis / entre dois momentos amargos…


   
Entre dois momentos amargos não tens tempo sequer
                para respirar
entre o teu rosto e o teu rosto
uma terna forma de rosto de criança inscreve-se e apaga-se.




yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








13 março 2018

ana hatherly / 463 tisanas




216

Às vezes penso: os nossos sentimentos são como uma espécie de esparguete em aço, em que cada segmento está totalmente imiscuído no todo mas ao mesmo tempo é distintamente apercebível. Outras vezes penso: não, os nossos sentimentos são como uma floresta de esparguete de aço em que cada segmento emerge só parcialmente distinto. Na ponta de cada uma dessas varas vibra uma formação algo rendilhada, consequência dos constantes tremores de cada segmento, e assim, quando alguém está sob o império de funda emoção, tudo nele treme e na floresta tudo vibra e essas extremidades rendilhadas formam rapidíssimos desenhos, imiscuindo-se uns nos outros, e o total é uma combinação de vibrações que se sobrepõem e explicam a confusão que se encontra no indivíduo sob o império da emoção.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006






12 março 2018

carlos de oliveira / descida aos infernos



2
(E procurando
sai para fora da minha alma,
maior que ela,
a grande sombra errante
dos corcéis
                     da amarga loucura
que outrora desceram por estes vales
ateando clarões
nos olhos de Dante).



carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001






11 março 2018

bernardo soares / a maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia...




A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia. A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros ainda se perdem (...)

Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados — não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas. Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.

Alheia a isto e chorando só o preciso e no menos tempo que pode — quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários — quando pensando [...] e chora enquanto não arranja [?] outro, ou se não adapta ao estado de perda — a humanidade continua digerindo e amando.

A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas.

Quando vejo um gato ao sol lembra-me sempre do homem ao sol.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990








10 março 2018

eugénio de andrade / vozes




Às vezes rompe pela casa,
pousa no silêncio,
no pulsar do silêncio.
Que faz ainda
por aqui? Coração de lume
velho – é um dizer.
Por fim corre
para o pátio de outros dias,
junta-se às vozes infantis.
E cantam, cantam,
matutinas.



eugénio de andrade
ofício de paciência
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







09 março 2018

herberto helder / elegia múltipla




VI

São claras as crianças como candeias sem vento,
seu coração quebra o mundo cegamente.
E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema,
pelo terror dos dias, quando
em sua alma os parques são maiores e as águas sujas
param junto à eternidade.
As crianças criam. São esses os espaços
onde nascem as suas árvores.

Enquanto as campânulas se purificam no cimo do fogo,
as crianças esmigalham-se.
Seu sangue evoca
a tristeza, tristeza, a tristeza
primordial.
— Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram
pelos séculos
entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes
e o olhar infinito de quem não possui alma.

Seu grito remonta ao verão. Inspira-as
a velocidade da terra.
As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.

— É-lhes dado o pequeno tempo de um sono
de onde saem
assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta.
Dali a vida de um poema tira
por um lado apaixonadamente; por outro,
purificação.
Nelas se festeja a imensidade
dos meses, a melancolia, a silenciosa
pureza do mundo.

Quem há-de pensar para as crianças, sem ter
espinhos na saliva e as vozes
desertas até ao fundo? É vendo-se aos espelhos,
no seguimento da noite,
que as crianças aparecem com o horror
da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes
crianças vigiadoras —
cantando, pensando, dormindo loucamente.

Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas
que a vingança não afaste.
As crianças invasoras percorrem
os nomes — enchem de uma fria
loucura inteligente
as raízes e as folhas da garganta.
Aprendemos com elas os pecados do ar,
a iluminação, o mistério
da carne. Partem depois, sangrentas,
inomináveis. Partem de noite
noite — extremas e únicas.
— E nada mais somos do que o Poema onde as crianças
se distanciam loucamente.
                                                Loucamente.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996









08 março 2018

tomas tranströmer / no âmago da europa




Carcaça que sou, flutuo entre duas comportas:
repouso na cama do hotel enquanto à minha volta a cidade desperta.
o bulício abafado e o cinzento do amanhecer penetram no quarto
e devagar transpõem-me para a fase seguinte: a manhã.

Escuto o horizonte. Os mortos querem dizer algo.
Fumam mas não comem, não respiram embora lhes reste a voz.
Como um deles, andarei apressado pelas ruas.
A catedral enegrecida, pesada como uma lua, é maré de águas vivas.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






07 março 2018

josé de almada negreiros / homem transportando o cadáver de uma mulher





Quis-te tanto que gostei de mim!
Tu eras a que não serás sem mim!
Vivias de eu viver em ti
e mataste a vida que te dei
por não seres como eu te queria.
Eu vivia em ti o que em ti eu via.
E aquela que não será sem mim
tu viste-a como eu
e talvez para ti também
a única mulher que eu vi!



josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971






06 março 2018

josé agostinho baptista / partida





Partirei.
E ao partir, ninguém saberá quem fui,
quantas horas passei, à beira das lápides,
sem pensar em nada.
Cairá o sol sobre o meu peito.
Cairá a escuridão.

Nas planícies do pai,
há um filho que escreve o livro dos órfãos.
O vento move as espigas.
No centeio e no trigo ouve-se um lamento.
Agora sim, direi adeus.


josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006






05 março 2018

paul auster / desaparecimentos




5
Diante da parede,

ele adivinha a monstruosa
soma da singularidade.

Não é nada.
E é tudo o que ele é.
E se ele quiser ser nada, deixem-no então  principiar
onde se encontra, e como qualquer outro homem,
aprender o falar deste lugar.

Porque também ele vive o silêncio
que antecede a palavra
de si mesmo.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002






04 março 2018

fernando pessoa / a nuvem veio e o sol parou.




A nuvem veio e o sol parou.
Foi vento ou ocasião que a trouxe?
Não sei: a luz se nos velou
Como se luz a sombra fosse.

Às vezes, quando a vida passa
Por sobre a alma que é ninguém,
A sensação torna-se baça
E pensar é não sentir bem.

Sim, é como isto: pelo céu
Vai uma nuvem destroçada
Que é véu, mau véu, ou quase véu,
E, como tudo, não é nada.

10-9-1934

  
fernando pessoa
novas poesias inéditas
ática
1973