11 maio 2017

henri michaux / à distância




Mantém-te à distância, tu aí
à distância
à distância

sem poderes lançar até aqui a longa lança telefónica

à distância

neutralizado
paralisado

Que o meu nome se apague em ti
que as minhas feições se toldem em ti
que a minha pessoa se esquive em ti

em ti, chamando, desvairada
chamando quem não se vê
chamando números errados
números impossíveis
números que nunca respondem
que não respondem a nada
que já não existem
números em bairros abandonados
a chamar sem parança, louca
como a dor duma perna partida num descarrilamento
chama, chama debaixo do eixo que a esmaga
que lhe parou mesmo em cima
e tu também aí mesmo parada

longe de mim

longe de mim que respiro aqui um ar perfeito
um ar repleto de poeira
mas tão puro para os meus pulmões aliviados
fora de alcance
fora de alcance dos pregos dos teus dedos
dos pregos dos teus desígnios sobre mim

Que o mal entre em ti, massa idiota
chama avinhada

Que o mal entre em ti
agitada de fumo
espalhando clamores
derrubada por búfalos!

Brasa sobre a tua boca ávida
brasa sobre as tuas cartas tontas
de grandes hastes, grandes adeuses, enormes lenços!

Polvo sobre os teus seios excessivamente pesados
anfractuosidade sobre a tua face
rijo martelo sobre os teus dedos frios
rijo martelo sobre o teu caminhar horripilante
de cem faces, de cem ratoeiras, de cem pequenos
                                                                         fragores!

Máquinas sobre ti
de devastar
de despedaçar
de esticar
de abater
de enlouquecer


máquinas incoercíveis, incansáveis
capazes de matar à pancada a mais enfadonha!

Tonéis rolantes sobre a tua fronte para deixares de dormir
desabamentos e obras debaixo da tua fronte para deixares de
                                                                                        dormir
formigas papa-léguas, desassossegos, desassossegos
carros de Lilipute sob a tua fronte para deixares de
                                                                                         dormir
funda que volteia, arco tenso aos teus ouvidos
para deixares de ouvir!

Uivos no teu pescoço
uivos sobre os sonhos que te aplaudem
sobre os alarves que tu espantas
sobre a tua memória a arruinar-se
sobre o regalo do teu eu amimado!

Que os estropiados te tomem por passeio
que os babuínos roedores de ramos te tomem por
                                                                coqueiro
que a tua interminável língua
que ficou ainda mais longa imensamente esticada
sirva de correia de transmissão nas fábricas
sirva nas gruas a içar contentores
sirva no porto para lingar cubas e pipas!

Traineira aloucada
mãe de anões
riso de marujos

à distância
à distância
à distância!

À distância sobes montes sem fim
cais numa floresta de cordas
és levada por um onagro
por um rebanho de bisontes
por um rinoceronte furioso
por seja o que for
seja lá o quê
seja lá quem for

passando do mundo da paixão para o mundo do horror
da infecção
da putrefacção
da dissociação

por viuvez
por obstrução
por glaciação

por tremor indefinidamente repetido

à distância
à distância
à distância





henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999







10 maio 2017

rui knopfli / «cântico negro»




Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes  de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T´ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
– esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
Só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground.



rui knopfli
o passo trocado
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982



09 maio 2017

jorge de sena / purgatório



As dores do mundo não as sofre o mundo.
Embora os matem, torturem, entristeçam,
embora lhes violem quem mais querido,
embora percam tudo o que nem tinham,
os homens sofrem porque sofrer dói menos.

Mas no centro do universo,
do coração que a humanidade ainda não tem,
do âmago das dores que ainda não sente,
da terra a passar toda pela carne,
da carne apenas vida sobre a terra,
uns poucos homens não sofrem nem contemplam:
ardem nas chamas que aos outros faltam.



jorge de sena
perseguição (1942)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972



08 maio 2017

paul éluard / de um e de dois, de todos




Sou o espectador o actor e o autor
Sou a mulher e o marido e o filho
E o primeiro amor e o derradeiro amor
E o furtivo transeunte e o amor confundido


E de novo a mulher seu leito e seu vestido
E seus braços partilhados e o trabalho do homem
E seu prazer em flecha e a fêmea ondulação
Simples e dupla a carne nunca se exila

Pois onde começa um corpo ganho eu forma e
                                                                                      [consciência
E mesmo quando na morte um corpo se desfaz
Eu repouso em seu cadinho desposo o seu
                                                                        [tormento
Sua infâmia me honra o coração e a vida .




paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977


07 maio 2017

bernardo soares / a miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras...



A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. Sobrevivo nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como escrevo os meus lançamentos — com cuidado e indiferença. Ante o vasto céu estrelado e o enigma de muitas almas, a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender — ante tudo isto ó que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo neste papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores, muito pouco aos grandes espaços milionários do universo.

Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo o que sabemos é uma impressão nossa, e tudo o que somos e uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.
s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982



06 maio 2017

herberto helder / ciclo IV



IV
Mais uma vez a perdi. Em cada minuto
a perco. Longe revolteiam suas palavras
e seus dedos depositam-se
em qualquer parte.


Se a busco? Esfaimadamente a busco.
Tacteando com a memória a forma com que era
nas noites de amor.
Reconstruindo sua espécie de enorme sorriso.
Busco-a sim, inventando subtilmente
o impudor de cada entrega,
a dádiva sobrenatural da sua carne aberta.
Mais uma vez foi destruída pela vida feroz,
e minha boca não suporta sem palavras
essa coisa mortal.
Sangrentas são as palavras e deixam vestígios
através do tempo.


Longe, naquilo que o acaso teceu,
elaboram-se os gestos. No casulo remoto
forma-se a distância
entre a sua fonte e a minha fonte.
– Com que ser se entende agora seu ser oculto?
E as voltas obscuras e difíceis
dos instintos.


Ela semeia-se. E alguma coisa misteriosamente
a fecunda.
– Ela é colhida por um vento e eu estou bêbedo
de coisas inextricáveis.
Sei que ela acontece. Um círculo de seda
forma-se prementemente,
e ela acontece.


A minha fonte não me dá ironia,
nem um fogo,
uma estrela violenta.
– Fico a saber que ela longe cresce
como outra folha de erva.


Nada em mim suporta. A memória
desimpede-lhe os pés, e beija-os.
Minhas pálpebras exaltam-na.
E a fonte, essa, recusa-a arduamente.


Recebo humildemente esta desordem
da carne, das palavras,
dos dedos bruscos do tempo.
– Recebo  tudo, e canto como quem deixa um sinal
maravilhoso.


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996




05 maio 2017

joão esteves / sobre tudo o que nada presta




ainda que o tempo não dê para perceber a beleza
de todas as coisas, devo pé ante pé (para não
acordar o ódio), abeirar-me do desconhecido,
daquele outro lado que ignoro. contudo, era bom que

alguém me justificasse o desconhecimento que tenho
das coisas: haverá alguma beleza em descobrir que
tudo é relevante ou que nada presta, se aquilo a que
estou condenado é ver o outro lado a partir do meu?




joão esteves






04 maio 2017

jacobo cortines / nardos de novembro



I
Com o amor as rosas são mais belas
e dura o seu perfume na memória,
o nardo é sempre branco e a sua brancura
jamais receia os frios do inverno.
A um sonho bem remoto fui buscar-te
porque soube de ti entre os espinhos,
e segui as tuas pegadas passo a passo
até entrar em tua casa e encontrar-te.
Não me negues teus lhos, porque neles
vivo livre de mim. Que o teu sorriso
não se torne tristeza nem se manche
do teu amparo a límpida clareza.
Conheci tantos bosques e desertos,
subi a tantos cumes e deixei
que a vistas e perdesse pelos vales
para achar um lugar que te ofereça.
Hoje estás perto e sei da tua beleza
Sei que é bonita a rosa e a sua fragrância
Contigo não se extingue, e que os nardos
com o amor não morrem em Novembro.




jacobo cortines
nardos de novembro
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.2
maio de 1998
palha de abrantes



03 maio 2017

josé antónio almeida / carne de porco



à maneira de Kavafis


Educado na contemplação das belas estátuas gregas
dos efebos de mármore da antiguidade clássica
e instruído na leitura dos poetas e filósofos
de ortodoxa e severa obediência platónica,
especialista em vasos com erómanos e erastas
e nas biografias dos discípulos do amor socrático,
ao cruzar-se com um desconhecido busto feminino
que misteriosamente recorda a proa de um navio
sulcando a multidão cinzenta das avenidas novas,
ele observa-o na outra margem da corrente de carros
perto do sinal vermelho do semáforo luminoso,
devorado pela curiosidade e por um estranho
apetite de provar o interdito sabor da fêmea
como um judeu proibido de comer carne de porco.


josé antónio almeida
poemas
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990



02 maio 2017

ángél gonzález / como se nunca




     É algo mais que o dia o que morre esta tarde?
O vento,
                          – que leva ele?
que aromas arrebata?
Desatadas de súbito as folhas das árvores
cegas vão pelo céu.
Pássaros altos atravessam, adiantam-se
a luz que os guia.
                               Sombria claridade
será já em outro sítio
 – só por um instante –
madrugada.

     Com bandeiras de fumo alguém me avisa:

      – Olha bem tudo isto:
isto que passa
não voltará jamais
e é como se nunca tivesse sido

     efémera matéria de tua vida.



ángél gonzález
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. josé bento
assírio & alvim
2001




01 maio 2017

jacques prévert / canção na massa do sangue




Há grandes manchas de sangue no mundo
para onde vai todo esse sangue vertido
será a terra que o bebe e com ele se embebeda
estranha bebedeira então
tão ponderada… tão monótona…
Não a terra não se embriaga
a terra não gira ao contrário
vai arrastando a sua carripana as quatro estações
a chuva… a neve…
o granizo… o bom tempo…
nunca se embebeda
só muito de longe a longe ela se permite
um mísero vulcão
A terra gira
gira com as suas árvores… os seus jardins… as suas casas…
gira com as suas poças de sangue
e todas as coisas vivas giram com ela e sangram…
Mas a terra
pouco se importa
gira e todas as coisas vivas desatam a gritar
ela pouco se importa
vai girando
sem parar
e o sangue não pára de correr…
Para onde vai todo esse sangue vertido
o sangue dos crimes… o sangue das guerras…
o sangue da miséria…
e o sangue dos homens torturados nas prisões…
o sangue das crianças calmamente torturadas pelo pai e pela
     mãe…
E o sangue dos homens que sangram da cabeça
nas celas de isolamento…
 e o sangue do trolha
quando escorrega e cai do telhado
E o sangue que brota e que corre aos borbotões
com o recém-nascido… com o filho novo…
a mãe a gritar… a criança a chorar…
o sangue corre… a terra gira
a terra não pára de girar
o sangue não pára de correr
Para onde vai todo esse sangue vertido
o sangue dos espancados… dos humilhados…
dos suicidados… dos fuzilados… dos condenados…
e o sangue daqueles que morrem assim… por acidente
Na rua passa um vivo
com todo o seu sangue lá dentro
de repente ei-lo morto
e todo o seu sangue está cá fora
e os outros vivos fazem desaparecer o sangue
levam o corpo
mas o sangue é teimoso
e lá onde estava o morto
em breve já negro
vê-se ainda um pouco de sangue…
sangue coagulado
ferrete da vida ferrete dos corpos
sangue coalhado como leite
como o leite azeda
quando gira como a terra
como a terra que gira
com o seu leite… com as suas vacas…
com os seus vivos… com os seus mortos
a terra que gira com as suas árvores… os seus vivos… as suas
     casas…
a terra que gira com os casamentos…
os enterros…
os clarins…
os regimentos… a terra que não pára de girar
com os seus grandes rios de sangue.

1936


jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007