Se acaso um dia o raio que te parta
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) -
- tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes,
ou sejam todos quantos pavoneam
o consolo inocente de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.
Porque não há ninguém por mais que te ame,
Ou por mais que seja teu amigo (e,
Com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
Fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
Que te perdoe que tu não tenhas estourado,
No momento em que se soube que estouravas.
É uma "partida"(ou um "regresso" sem piada nenhuma)
Absolutamente e aterradoramente inaceitável,
Humanamente e vitalmente imperdoável.
Pelo que, sobrevivente, pagarás como se diz,
Com língua de palmo. Se és um pobretano,
Solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas,
Que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito,
Uma tontura, um como que silêncio negro,
Podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante,
Está livre de ocupações permentes para te acudiar.
Uma que outra vez apenas, para alívio,
dos borborigmas morais dos seus estômagos,
Irão visitar-te carinhosos. Outros
tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem,
E quando em desespero tu reclamas.
Não contes com mais nada senão morte,
Se tens família, amando-te sem dúvida,
Inteiramente dedicada a ti que seja ou é,
Não penses que não és constante imagem
Sem desculpa alguma de andar pela casa,
Um pouco vacilante, às vezes suplicando,
Uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te,
A fazer referências tidas de mau gosto
À espada que para onde vás segue suspensa
Sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém
Até contraditoriamente porque te amam,
Suportam que não sejas quem tu eras,
Mas só a morte adiada, o que é diverso,
Do horror de um cancro que não se sabe
Quando matará mas é criatura de respeito,
Crescendo em ti como se estiveras grávida.
Assim, meu caro, com coração desfeito
Sem metáfora alguma, és apenas uma
Indecorosa e miserável chatice.
Portanto, irmãos humanos, se estourais,
Estourai, por uma vez aliviando
Quem vos quer ou não quer por uma vez.
jorge de sena
40 anos de servidão
moraes
1979