01 agosto 2016

pedro spigolon / meteorologia dos corpos





Nenhum dilúvio limpará esse ódio
haverá sempre uma vingança justa
sempre uma revolta necessária.
Qualquer apelo é inútil
rezar nem se fala.
Não há onde esconder esse desespero.
As crianças não cabem nos bolsos
e ainda precisam empilhar corpos
como os brinquedos de uma guerra.
Um olho nunca será uma bolinha de gude,
uma amarelinha não se pula sobre cadáveres.
O único céu é o da boca
quieta como um dia nublado
em que a chuva encontra o silêncio
que abandonou a carne.
Sangue não é urucum
para pintar o rosto da cidade
com pavor e medo.
Nem tente recostar seu rosto
nessas bochechas que desmancham,
qualquer carinho é um crime
toda empatia uma cumplicidade.
Do telhado do país
a vertigem das gotas,
em vão esfrega essas mãos:
água não lava o horror.
No Jornal Nacional tudo será
paz e progresso
e a previsão do tempo
indicará estiagem
seca das lágrimas
racionamento da saudade.
A vida escorre confundindo
Choro com chorume…
Daqui algum tempo,
quando o sol evaporar o medo
o ódio grudará nas nuvens
escurecendo  céu
e novamente seremos
mortos
órfãos
ou cúmplices.


pedro spigolon
espanto
editora medita
2015



31 julho 2016

álvaro de campos / começa a haver



Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, 
Por toda a parte das coisas sobrepostas, 
Os andares vários da acumulação da vida... 
Calaram o piano no terceiro andar... 
Não oiço já passos no segundo andar... 
No rés-do-chão o rádio está em silêncio... 
Vai tudo dormir... 

Fico sozinho com o universo inteiro. 
Não quero ir à janela: 
Se eu olhar, que de estrelas! 
Que grandes silêncios maiores há no alto! 
Que céu anticitadino! - 
Antes, recluso, 
Num desejo de não ser recluso, 
Escuto ansiosamente os ruídos da rua... 
Um automóvel - demasiado rápido! - 
Os duplos passos em conversa falam-me... 
O som de um portão que se fecha brusco dói-me... 

Vai tudo dormir... 

Só eu velo, sonolentamente escutando, 
Esperando 
Qualquer coisa antes que durma... 
Qualquer coisa.

  

álvaro de campos





30 julho 2016

herberto helder / tríptico


  
     I

     «Transforma-se o amador na coisa amada» com seu
     feroz sorriso, os dentes,
     as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
     e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
     e das ardentes pedras que tem dentro de si.
     E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
     silêncio da sua última vida,
     O amador transforma-se de instante para instante,
     e sente-se o espírito imortal do amor
     criando a carne em extremas atmosferas, acima
     de todas as coisas mortas.


     Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
     E a coisa amada é uma baía estanque.
     É o espaço de um castiçal,
     a coluna vertebral e o espírito
     das mulheres sentadas.
     Transforma-se em noite extintora.
     Porque o amador é tudo, e a coisa amada
     é uma cortina
     onde o vento do amador bate no alto da janela
     aberta. O amador entra
     por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
     O amador é um martelo que esmaga.
     Que transforma a coisa amada.


     Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
     que escuta
     fica com aquele grito para sempre na cabeça
     a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
     e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
     do amador.
     Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
     dá-lhe o grito dele.
     E o amador e a coisa amada são um único grito
     anterior de amor.


     E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
     de amador. E ela é batida, e bate-lhe
     com o seu espírito de amada.
     Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
     do amor. Enquanto em cima
     o silêncio do amador e da amada alimentam
     o imprevisto silêncio do mundo
                                                        e do amor.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



29 julho 2016

tiago d. oliveira / temporã



a cara da recepcionista
tem um desejo de morte.
em cada segundo de sua fala
a repulsa me sobe à garganta.
cada sonho negado, como quem goza,
peida. suas mãos carregam a lembrança
da última encosta que cedeu na chuva,
de vez em vez até respondem
aos espasmos musculares que emanam taciturnos
bom dia! em que posso ajudar?
em seu nariz os corpos putrefatos,
a língua queimando na acidez
que deve ao alimento a digestão,
os bicos dos seios em paz
com o clitóris, vencidos pelos dias
bom dia! em que posso ser útil?
(queria socar a sua cara)
mas tive pena,
não dela – de mim
por ter cá esta inveja
vestida de saudade







28 julho 2016

josé manuel / transfigurações



A Eduardo Viana

«Le rossignol chante mal. »
Jean Cocteau


1
Nevou no Congo
ninguém viu

2
o sol queimou a paisagem
todos os homens cegaram

3
Entre a multidão a dor uníssona
— Senhor ilumina-nos

4
Noite verde
a paisagem azul

5
Um cacto no poio

6
Tudo é possível
dentro da alma

7
Porque dizes estamos mortos?
Começaste a viver sabendo-o

8
Sonha outro mundo outra vida
recomeça desde dentro
— a salvação és tu

9
Espelhos paralelos
nos bastidores o clown reflectido infinitamente

10
o público sorriu
sentindo-se nu sem saber exactamente porquê sorriu

11
Sozinho no grande palco do mundo
o poeta encontrou o seu destino
escrevendo-o
12
Ao princípio era o verbo

13
Entretanto a presença contínua dos homens
— Senhor tem piedade de nós pecadores

14
Silêncio de salto mortal

15
A vertigem do amor
todos os vícios todas as perversões

16
Um dia serás feliz no fim do mundo
 para além do equador
nas ilhas do mar do sul

17
É preciso que creias no milagre

18
As catedrais subterrâneas
cada vez mais próximas do céu

19
O perfil das cidades suspensas
sem anúncios luminosos
simples românico

20
A vida sem ansiedade
tam calma tam serena tam humilde

21
A hora redimida
terceiro dia do mundo

22
Meu amor não sei porquê
tudo isto dói

23
Não importa há outros ritmos
 outras paisagens ao longe

24
Acelerem o tempo

25
É preciso viver infinitamente
cores e sons sucessivos sobrepostos
cada vez mais

26
Hão-de dizer-te a vida tem limites
Que importa se a alma é imensa?

27
Tu sabes o céu é azul objectivamente azul
sonha-o de todas as cores

28
Liberta-te do mundo
o teu único o teu verdadeiro caminho és tu

29
A arte não é jogo é vida

30
Todos os dias são eternos

31
O tempo girafa de três cabeças
multiplicou-se indefinidamente

32
Por toda a parte nasceram monstros
homens máquinas em série

33
O grande crime somos nós
 escravos mártires do progresso

34
O mundo
brinquedo de um deus criança
nós não somos deste mundo

35
Bonecos articulados
exigimos

36
O espectáculo da vida
monótono às vezes sórdido

37
Imagens sobrepostas sempre as mesmas

38
O trágico quotidiano
um menino a dizer obscenidades

39
Merda para os primeiros
merda para os últimos

40
Perdemos o ritmo
desde o princípio dos tempos

41
Eu sou a hora eu sou o mundo
o único ritmo sou eu

42
Os outros podem sorrir
nasceram longe tam longe num outro mundo

43
Ignoram o dia estéril
o dia estéril são eles

44
Dissonâncias
um íbis descobriu o polo norte

45
Jazz movimento perpétuo
monótono trágico
documento apócrifo

46
Desnudem a paisagem
é preciso acabar com o verde

47
Abram o ventre a todas as mulheres
 é preciso quebrar com o futuro

48
Ao menos sejamos
qualquer cousa de póstumo

49
Farsa ou tragédia
a vida é isto

50
o clow entrou na catedral
e ajoelhou-se

51
O menino Jesus fugiu do céu
entrou no circo e ajoelhou-se

52
Nossa Senhora sorriu

53
No dia seguinte os jornais de todo o mundo
garantiram — o poeta enlouqueceu

54
Talvez a hora cor-de-rosa
decididamente a hora cor-de-rosa

55
É preciso destruir o cor-de-rosa

56
Um dia saberás porquê

57
Entretanto és presente
e o mundo é presente em ti

58
O espectáculo cinzento escuro do mundo

59
O caminho da esperança é o heroísmo ou o sacrifício
os deuses todos esperam-te

60
Eu sei talvez isto seja absurdo
Não importa é preciso




josé manuel
«eros» — 5-6
1953



27 julho 2016

mário cesariny / o navio de espelhos



O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
A sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo



mário cesariny
a cidade queimada
assírio & alvim
2000




26 julho 2016

josé maria valverde / madrigal do emigrado



Terra mínima e fiel, mulher de sempre,
és a minha pátria arada e fértil, levas
minha linguagem, minha gente, meu diálogo;
em ti acampo no novo, lar errante
com o mesmo ruído de filhos e de pratos;
colonizas o aberto, sem temores,
torna-lo amigo e nosso, oh peregrina
suavemente cambiante pelos anos,
pela luz diferente dos países;
tu, minha vida na mão até ao fim.


josé maria valverde
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



25 julho 2016

sylvia plath / palavras



Machados,
depois do seu golpe a madeira ressoa,
e os ecos!
Ecos que partem
do centro, semelhantes a cavalos.

A seiva
jorra como lágrimas, como
água capaz de lutar
para refazer o seu espelho
sobre uma rocha

que cai e se transforma,
uma branca caveira
consumida pelas ervas daninhas.
Anos depois
encontro-as na estrada…

Palavras secas e sem cavaleiro,
infatigável ruído de cascos.
Enquanto
do mais fundo do lago as imóveis estrelas
regem a vida.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990



24 julho 2016

al berto / filhos de rimbaud


III

Os dias estão cheios de cartas e recomendações,
de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas,
de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
De morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.

Uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim.
E talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...
Não tenho mais nada a dizer. Os poemas morreram.

Fugir tornou-se uma obsessão,
ou então é a melhor maneira de encarar o desespero.
Bebi águas inquinadas. Vi o corpo suspenso no rebordo dos poços,
o coração batendo descontrolado.
Mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples...
vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.

Por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
Quantos africa murcharam na boca do amor?
Quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
Quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
Quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?
A qual dos demónios me vender?
Que besta suja será preciso adorar?
Em que sangue contaminado mergulharei a língua?
Que fogo estranho é este? - que devora a beleza interior das coisas...
Que mentira me poderá salvar?

Uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
O rumor precioso das sílabas. O choro e o riso.
O brilho gelado das imagens.
(Então), Ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro,
ajeito o cinturão onde guardo o ouro - e vou pelo engano das palavras...
Descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.

Abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros,
que dizem ser a alma dos mortos... um espelho onde não me reconheço...
mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.
O azar nunca mais me largou, e também não posso dizer
que os negócios me tenham corrido bem...
Foi maldição, dizem.

Paciência. Mas não há maldição sem desejo - e eu não paro de desejar,
sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão. Ou de matar.


al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997


23 julho 2016

antónio franco alexandre / entende que te ouço quando o corpo



Entende que te ouço quando o corpo
abre na noite os flancos
quando oculta o pavor
as asas de ouro

quando mais nu que a água acordas
na brancura
e fere
o incessante

olhas e
a tempestade varre
o desabrigo

quando se rasga o ar
a boca movediça
fonte escura


antónio franco alexandre
cartão-postal
poemas
assírio & alvim
1996



22 julho 2016

antónio manuel couto viana / café de subúrbio



1.
O café bebe leite, coca-cola
E sumos de laranja e de limão.
A adolescência, quando sai da Escola,
Invade-o de alegria e confusão.

Eu, com a minha idade e uma cerveja,
Escondo-me nas folhas do jornal,
Pra que ninguém me veja
Sem me achar natural.

E sei que já por dentro também envelheci.
E tudo quanto me destrói, agora,
É o desejo de fica aqui,
Envergonhado de não ir embora.


antónio manuel couto viana
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991




21 julho 2016

jorge luís borges / orgulho da serenidade



Escritas de luz investem pela sombra, mais prodigiosas do que meteoros.
A alta cidade irreconhecível cresce sobre o campo.
Certo da minha vida e da minha morte, olho os ambiciosos e queria
                                                                                             entendê-los.
O seu dia é ávido como o laço no ar.
A sua noite é a trégua da ira no ferro, rápido ao atacar.
Falam de humanidade.
A minha humanidade está em sentir que somos vozes da mesma penúria.
Falam de pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha
                                                                                                       [espada,
a clara prece do salgueiral nos entardeceres.
O tempo está a viver-me.
Mais silencioso do que a minha sombra, cruzo o tropel da sua excitada
                                                                                                          [cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã.
O meu nome é alguém e qualquer um.
Passo com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera chegar.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
lua defronte  (1925)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998