05 agosto 2015

ana hatherly (8-5-1929 / 5-8-2015)



Um ritmo perdido...



Se uma pausa não é fim
e silêncio nâo é ausência,
se um ramo partido não mata uma árvore,
um amor que é perdido,será acabado?

um ouvido que escuta
uma alma que espera...
-uma onda desfeita
É ou já não era?

Nuvem solitária,
silenciosa e breve,
nuvem transparente,
desenho etéreo de anjo distraído...

nuvem,
esquecida em céu de esperança,
forma irreal de sonho interrompido..

nuvem,
luz e sombra,
forma e movimento,
fantasia breve de ânsia de infinito...

nuvem que foste
e já não és:
desejo formulado e incompreendido.




ana hatherly




04 agosto 2015

josé tolentino mendonça / reis magos


Uma mesa de plástico, branca
junto da tarde que morre
e renasce por pequenas paixões 
de repente estávamos sozinhos
as ilhas muito inacessíveis
agora que escureceu
o menor desejo teria um sentido delicado
os olhos velozes de um gato
viam coisas belas
lado a lado com os homens
pareciam quase não ter sofrido

a mesa estava encostada às janelas do café
e nós de forma desolada
ignorados, aturdidos, de passagem
não muito mais

procuro desse facto uma versão
que me não conduza à inconfidência

era uma mesa lisa, branca
uma razão soletrava ao acaso
a medida soberana do incerto

olhos velozes de um gato os teus
olhos


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999





03 agosto 2015

eugénio de andrade / espera


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

  
eugénio de andrade



02 agosto 2015

miguel torga / regresso


Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.
Tudo o que tenho, o tenho aqui
Plantado.
O coração e os pés, e as horas que vivi,
Ainda não sei se livre ou condenado.



miguel torga
diário XII
1977




01 agosto 2015

ricardo reis / não só quem nos odeia ou nos inveja



Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
                   Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
                   Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
                   Homem, é igual aos deuses.




ricardo reis




31 julho 2015

pascalle monnier / the murphy bed (excerto)



Olharei
o mar
das
janelas da minha casa
como
hoje vejo
os automóveis
e
adivinharei
as trovoadas
as tempestades
e
outra vez o sol
e
verei
nas noites de lua cheia
dentro do quarto
como
em pleno dia
e
nesses dias
mesmo
se
não conseguir dormir
eu
ficarei contente
porque
esperarei
então
sentada
diante
da janela
sobre
o mar
que
a luz do dia
venha
e fique
em vez
da luz da Lua
e
quando
o dia tiver sucedido à noite
adormecerei
enfim
sem recear
que a luz do Sol
do dia
seja demasiado
clara
e demasiado violenta
como
receio
que seja hoje
porque
tenho
sempre medo
quando o sol
é muito forte
gosto
da luz
suave
da manhã
da luz
suave da noite
mas
não
da luz
vertical
e
violenta
do sol
no zénite
E conhecerei cada tremular de uma folha sob
o efeito do vento.
Um suspiro, um grito, uma palavra.


pascalle monnier
tradução de miguel serras pereira
sud-express, poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993



30 julho 2015

charles simic / adensam-se as nuvens



Parecia o género de vida que queríamos.
Morangos silvestres com natas pela manhã.
Em todos os quartos a luz do sol.
Nós os dois a passear nus na praia.

Certas noites, porém, descobríamo-nos
Incertos do que viria a seguir.
Como actores de um drama num teatro em chamas,
As aves volteando por cima de nós.
Os pinheiros escuros estranhamente quietos,
Todas as pedras em que tropeçávamos
Ensanguentadas pelo sol poente.

E voltávamos para o terraço a beber vinho.
De onde nos vinha este pressentimento de um final infeliz?
Nuvens de aparência quase humana
Adensavam-se no horizonte, mas tudo o resto tão lindo
O ar tão brando e o mar tão manso.

A noite caía subitamente sobre nós, uma noite sem estrelas.
Acendias uma vela, levava-la nua
Para o nosso quarto e apagáva-la depressa com um sopro.
Os pinheiros escuros e os arbustos estranhamente quietos.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2





29 julho 2015

alda merini / e mais fácil ainda



E mais fácil ainda me seria
descer a ti plas mais sombrias escadas,
aquelas do desejo que me assalta
como lobo infecundo noite adentro.

Sei que tu colherias dos meus livros
com as mãos sabedoras do perdão…

E também sei que me amas de um amor
casto, infindável, reino de tristeza…

Mas eu pra ti o pranto o alisei
dia após dia como luz repleta
e mando-o de volta tácita aos meus
olhos, que, se te olho, vivem de estrelas.

(de  Tu és Pedro, Scheiwiller, 1961)



alda merini
tradução de marco bruno
relâmpago
revista de poesia, nr. 17 10/2005
fundação luís miguel nava
outubro de 2005



28 julho 2015

antónio barbedo / praia do cais

  

Depois do asfalto é areia. A seguir
o cais. Encontras o trilho, carris velhos.
Um comboio ao entardecer, Senhora da
Hora, Trindade. Foi outro verão, não sei porque
te lembro agora. O vento solta os toldos
desertos. A pequena  luz do navio esmorece. Um cão
corre na praia  com o livro nos dentes.


antónio barbedo  
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003



27 julho 2015

luís miguel nava / paisagem citadina



A pele por fulgurantes
Instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tão grande rigor o seu domínio.

Não temos então delas senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração, se cruzam solitários
e agrestes, reflectidos

por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas no terraço.

A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002




26 julho 2015

teixeira de pascoaes / e a noite, onde murmura a nossa origem,



E a noite, onde murmura a nossa origem,
Subiu comigo aos cerros do Marão.
E a estrela virgem
Da Anunciação,
Dos seus lábios, cantando e rindo nasce:
Um áureo beijo, a arder e a iluminar...
Seu cabelo aloirava; e à sua face,
Viam-se as lindas cores aflorar.

Brumas, sombras nocturnas, brandamente,
Sumiram-se, no ar...
                           E seu formoso
Corpo cruel de deusa omnipotente,
Voluptuoso,
De pé, naquela altiva soledade,
Como enlevado, extático, sorrindo,
Domina a planetária imensidade
E o céu infindo...
E aquele riso,
Doirando a serra,
É um anjo que nos mostra o Paraíso,
Além da terra.

Alto sorriso lúcido, escultura
Em luz marmórea...
O busto da esperança que fulgura,
Dentro de nós, no escuro da memória...
Ó riso, árvore de luz, solta folhagem
De azul tremente!
Ó rosto alegre, outeiro em flor, paisagem...
Idílica frescura, água corrente...
[...]



teixeira de pascoaes
1877-1952
senhora da noite



24 julho 2015

almada negreiros / civilização e cultura




Uma mesa cheia de feijões.
O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão.
O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo.
Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas.
O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território, é o processo de CIVILIZAÇÃO.
O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA.
É mais difícil a passagem de civilização para cultura do que a formação da civilização.
A civilização é um fenómeno colectivo.
A cultura é um fenómeno individual.
Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.

(Aqui há uma ilustração cujo desenho representa uma balança perfeitamente equilibrada com a civilização num dos pratos e a cultura no outro).

FIM

Justaposição disto mesmo a Portugal: uma civilização sem cultura.
As excepções, inclusive as geniais, não fazem senão confirma-lo.



josé de almada negreiros
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




23 julho 2015

wallace stevens / chá



Quando a orelha-de-elefante do parque
Se engelhava de frio,
E as folhas nas veredas
Corriam como ratos,
O teu candeeiro tombava
Em almofadas cintilantes,
De tons de mar e tons de céu,
Como sombrinhas em Java.



wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006