10 fevereiro 2015

caio resende / retrato para lúcia


A tarde mastiga o para-sol da minha alma
e lembro-me de você, Lúcia –
sombra esguia estirada no limbo
orvalhando o balir da juventude
É quando desço
do mirante
dessa gélida vertigem –
onda inalada no sangue
de antigos girassóis –
e martelos segredam cores ou a febre
, o mar na resina dos dentes
encontra o silêncio na renda
Há nesse instante
um tumulto de braços
soerguendo a manhã
eu a vejo
desse espelho a esculpir omoplatas
nas paredes do tempo
Qual pedra derradeira
serrania e correnteza
tua pele feito estaca na urze
inda hoje
suaviza o bronze dos trovões
Sua Vulva, Lúcia
e seu Ânus
são duas prímulas
cortadas ao meio
pelos corredores ausentes dos meus olhos
E há nas ruínas deste esforço
te conhecer novamente
da costura exata da noite
deste desenho ornado de fúria
em que o fôlego se faz
e onde duas esfinges submersas
se derramam da vitrine do caos


caio resende






09 fevereiro 2015

antónio franco alexandre / a questão urbana


  1

  estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
  prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
  movimentam no espaço, e aos bandos
  os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
  é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
  translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
  que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
  dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.


  2

  movem nos muros, a vagina mineral das mães
  adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
  e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
  algum visível afastamento das madeiras, algum
  pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas
  e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.


  3

  arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
  entendem, decifram sob o grés as patadas da terra,
  espalham na violência um musgo que prenuncia a
  transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
  bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
  algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
  e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
  se perde pé muito de repente e se afundam as asas
  como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.


  4

  separam, mas esse
  é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
  as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
  nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
  contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
  como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
  onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia
                                                                        [desejámos.


  5

  outras, as que brilham, as que espalham um lenço verde
  ao pescoço dos cães, e largas redes no ar empalidecido
  invisíveis capturam, as que vêm
  de dentro de um muro, e sobre um muro movem
  ombros de grés, então é noite, apetece uma nuvem,
  uma pedra sem cor que nos oculte o peito, o sangue
  transborda, e os apitos soam com a fúria dos grandes animais.


  6

  vêm, talvez, do acaso, como grandes nuvens de musgo
                                                                [amordaçado,
  ou animais encostados, ou a violência de uma gengiva
  onde o sangue bateu com patadas de cuspo. uma manhã
  se afastam no rancor, recobertas de grés permanecem sentadas,
  prenunciando, talvez, o ronco insuportável de uma boca.


  7

  o que movem no ar movem no sangue, um grés animal,
  a madeira das mães anoitecidas.
  amealham no peito os grãos translúcidos, prenunciando
  algum afastamento decisivo.
  o que afastam capturam. é um novo muro, então,
  à sombra das cidades, deitado sobre a boca.



  antónio franco alexandre
  os objectos principais
  centelha
  1979




07 fevereiro 2015

paul auster / noites brancas



Ninguém aqui,
e o corpo diz: o que se diz
não é para ser dito. Mas ninguém
é também um corpo, e o que diz o corpo
ninguém ouve
senão tu.

Noite e queda de neve. A repetição
de um homicídio
por entre as árvores. A caneta
move-se através da terra: já não sabe
o que vai acontecer, e desapareceu
a mão que a segura.

E no entanto, escreve.
escreve: no princípio,
por entre as árvores, um corpo veio
caminhando da noite. Escreve:
a brancura do corpo
é a cor da terra. É terra,
e a terra escreve: tudo
é a cor do silêncio.

Já não estou aqui. Nunca disse
o que dizes
que eu disse. E no entanto, o corpo é um lugar
onde nada morre. E todas as noites,
pelo silêncio das árvores, sabes
que a minha voz
vem caminhando para ti.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002




06 fevereiro 2015

ernesto sampaio / o menos possível



Respirar
o menos possível
nestas cidades
de uma tristeza
sem idade
abrindo o espaço
com os gestos lentos de um náufrago
a caminho
do fundo

A noite sobe-me
na voz
como um lugar
capaz de imaginar
sozinho
o seu cenário
onde o azul
dorme
numa cave
com os cães



ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




05 fevereiro 2015

carlos drummond de andrade / procura da poesia



Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
   
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.   
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
   
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação
Que se dissipou, não era poesia
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
   
Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

  

carlso drummond de andrade





04 fevereiro 2015

hermann hesse / o lobo das estepes



Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria também sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que a não tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.



hermann hesse
doze nós numa corda
herberto helder
assírio & alvim
1997




03 fevereiro 2015

ana paula inácio / ó césar


não sou uma mulher moderna
não me ligo à net
gosto de compras ao vivo
cujas listas faço em cadernos de argolas
que depois esqueço
e só me lembro de elixir para aclarar a voz,
tenho tantas embalagens
como Warhol de Tomato Soap
ou de detergente Brillo,
para que ao chegares a casa
te envolva, te abrace e te queira
mas nem só de voz vive o homem
dizes tu,
e então a minha saúda-te
como a daqueles que vão morrer


ana paula inácio
2010-2011
averno
2011




02 fevereiro 2015

eugénio de andrade / há dias em que julgamos



Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

  

eugénio de andrade





01 fevereiro 2015

mário sá-carneiro / cinco horas



Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto... A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e que fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais).

Sobre ela posso escrever
Os meus versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendo cigarros,
- Pois há um ano que fumo -
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente...)

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha ideia persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades...

(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...).

Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
- Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passe em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
P'ra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

- Cafés da minha preguiça,
Sois hoje - que galardão! -
Todo o meu campo de acção
E toda a minha cobiça.



mário sá-carneiro





31 janeiro 2015

sun tzu / o conflito



O Mestre disse:

Na Guerra,
           O general
           Recebe ordens
           Do seu soberano,
           Reúne as tropas,
           E forma um exército.
           Monta o acampamento
           Do lado oposto ao do inimigo.
           A verdadeira dificuldade
           Começa com
           O conflito em si mesmo.

A dificuldade do conflito
           Reside em tornar
           O que é sinuoso
           Recto
           E em transformar
           O que é adverso
           Em vantajoso.

Escolhe um caminho desviado,
           E seduz o inimigo com a ilusão
           Da vantagem;

Segue no seu encalço,
           Mas chega sempre antes dele;
           Isso é dominar
           O recto
           E o sinuoso.

O conflito pode trazer
           Ganhos;
           Pode trazer
           Perigo.

Envia todas as suas tropas
           Para combate,
           Tentando obter alguma vantagem,
           E ainda assim podes
           Falhar.

Abandona o acampamento e
           Entra em conflito
           Com vista a obter alguma vantagem,
           E ainda assim podes apenas perder
           O teu equipamento.

Ordena aos teus homens que
           Carreguem a sua armadura
           Em marcha forçada,
           Dia e noite,
           Sem parar,
           Marcha vinte quilómetros
           A velocidade redobrada
           Para obter alguma vantagem,
           E irás perder
           Todos os teus comandantes.
           Os homens mais vigorosos
           Estarão na vanguarda;
           Os mais frágeis,
           Na retaguarda.
           Um em cada dez
           Chegará ao destino.

Marcha dez quilómetros
           Para obter alguma vantagem,
           E o líder
           Da vanguarda
           Irá cair;
           Só metade dos homens
           Chegará ao destino.

Marcha cinco quilómetros
           Para obter alguma vantagem,
           E dois em cada três homens
           Chegará ao destino.

Sem o seu equipamento,
           Um exército está perdido;
           Sem provisões,
           Um exército está perdido;
           Sem armazenamento,
           Um exército está perdido.

Sem conhecer os planos
           Dos senhores feudais,
           Não poderás
           Formar alianças.

Sem conhecer a posição
           Das montanhas e florestas
           Das escarpas e precipícios,
           Dos pântanos e charcos,
           Não podes
           Caminhar

Sem recorrer a guias locais,
           Não podes
           Tirar vantagem
           Das características do terreno.

A guerra
           Baseia-se
           No logro;
           Os movimentos determinam-se
           Pela vantagem obtida;
           Divisão e unidade
           São os seus elementos
           De Mudança.

Corre como o vento;
           Sê imponente como uma floresta;
Devasta como o fogo;
           Fica quieto como uma montanha.
Sê impenetrável como a noite;
           Sê ágil como o trovão ou como o relâmpago.

Pilha os campos,
           E divide o saque;
Alarga o território,
           E distribui os ganhos.
Pondera  a situação cuidadosamente
           Antes de dar qualquer passo.

A vitória pertence àquele
           Que domina
           A arte do
           Recto
           E do sinuoso.

Esta é
           A Arte do Conflito.





sun tzu
a arte da guerra
trad. ricardo silva
quasi
2008





30 janeiro 2015

e e cummings / supõe



[ii]

supõe
a Vida um velho carregando flores à cabeça.

a jovem morte sentar-se num café
sorrindo, uma moeda segura entre
o polegar e o indicador

(eu digo “comprará flores” para ti
e “a Morte é jovem
a vida usa calças de veludo
a vida tropeça, a vida tem barbas” eu

digo para ti que estás emudecido. - “Vês
a Vida? está ali e aqui,
ou aquilo, ou isto
ou nada ou um velho 3 terços
adormecido, à cabeça
flores, sempre a gritar
para ninguém alguma coisa sobre les
roses les bluets

          sim,
                 comprará?
Les belles bottes - oh escuta
, pás chéres”)

e o meu amor lentamente respondeu Eu acho que sim. Mas
Eu acho que vejo alguém mais

há uma senhora, cujo nome é Emseguida
está sentada junto da jovem morte, é esguia;
gosta de flores.


e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998





29 janeiro 2015

jorge de sena / os paraísos artificiais



Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

Os cânticos das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

  

jorge de sena