08 janeiro 2015

rené char / ensinou-me a voar sobre a noite das palavras



Ensinou-me a voar sobre a noite das palavras,
longe do aborrecimento dos navios ancorados.

Não é o glaciar que nos importa
mas o que o torna possível indefinidamente,
a sua verosimilhança solitária.

Liguei-me a ódios entusiásticos
que ajudei a vencer e depois abandonei.
(Basta fechar os olhos para já não se ser reconhecido.)
Retirei às coisas a ilusão
que causam para se protegerem de nós
e deixei-lhes a parte que nos concedem.
Vi que nunca haveria mulher para mim
na MINHA cidade.
O frenesim das pândegas,
simbolicamente,
justificaria a minha boa vontade.

Atravessei deste modo a idade da solidão
até à morada seguinte d’o HOMEM VIOLETA.

Mas ele só dispunha do triste estado civil das suas prisões,
da sua experiência muda de perseguido
e nós,
nós só tínhamos a sua descrição de evadido.


rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
o poema pulverizado  (1945-47)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995




07 janeiro 2015

je suis charlie / nenhuma religião vale mais do que uma vida humana!





valery larbaud / europe III


Europa! Só tu satisfazes os apetites sem limite
Do saber, e os apetites da carne,
E os do estômago, e os apetites
Indizíveis e mais que imperiais dos Poetas,
E todo o orgulho do Inferno
(Já por vezes me tenho perguntado se não serás um dos degraus, um cantão
                                                                                            adjacente do Inferno.)
Ó minha Musa, filha das grandes capitais, reconhece os teus ritmos
Nestes rumores incessantes das ruas intermináveis.



valery larbaud
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
2003





06 janeiro 2015

fiama hasse pais brandão / do raio de sol



Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não tão decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.



fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




05 janeiro 2015

bertolt brecht / aos que virão a nascer

 
 
I
 
Éverdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
Revela insensibilidade. Os que riem
Riem porque ainda não receberam
A terrível notícia.
 
Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime
Porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
Não estará já disponível para os amigos
Em apuros?
 
É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
Do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (Quando a sorte me faltar, estou perdido.)
 
Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
Roubo ao faminto o que como e
O meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.
 
Também eu gostava de ter sabedoria.
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
Retirar-se das querelas do mundo e passar
Este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência
Pagar o mal com o bem
Não realizar os desejos, mas esquecê-los.
Ser sábio é isto.
E eu nada disso sei fazer!
É verdade, vivo em tempo de trevas!
 
 
II
 
Cheguei às cidades nos tempos da desordem
Quando aí grassava a fome
Vim viver com os homens nos tempos da revolta
E com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
 
Comi o meu pão entre as batalhas
Deitei-me a dormir entre os assassinos
Dei-me ao amor sem cuidados
E olhei a natureza sem paciência.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
 
No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo
Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
 
As forças eram poucas. A meta
Estava muito longe
Claramente visível, mas nem por isso
Ao meu alcance.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
 
 
III
 
Vós, que surgireis do dilúvio
Em que nós nos afundámos
Quando falardes das nossas fraquezas
Lembrai-vos
Também do tempo de trevas
A que escapastes.
 
Pois nós, mudando mais vezes de país que de sapatos, atravessámos
As guerras de classes, desesperados
Ao ver só injustiça e não revolta.
 
E afinal sabemos:
Também o ódio contra a baixeza
Desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
Torna a voz rouca. Ah, nós
Que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade
Não soubemos afinal ser amáveis.
 
Mas vós, quando chegar a hora
De o homem ajudar o homem
Lembrai-vos de nós
Com indulgência.
 
 
 
bertolt brecht
a rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
trad. joão barrento
assírio & alvim
2001



04 janeiro 2015

antónio ramos rosa / para além dos signos



Escrever agora é dispersar os reflexos,
abrir as portas de pedra e repousar no ar.
Ajoelhado junto de um barco ou de uma jarra,
um deus respira e é um puro vazio.
Para além dos signos e no início deles
um sorriso, um fulgor das coisas confiantes.
E nos muros e nos dedos, uma areia
que das nuvens descesse e na distância
a forma de um abraço amante, o sonho do outro.



antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990





03 janeiro 2015

mário-henrique leiria / viver com a crueldade



viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro

um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem dessa
outra existência
em que a morte e a memória
ainda mais significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
dos braços que nos rodeiam
por erro nosso ou dos outros
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas     seguras     aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda     cada vez mais
esmagar com cuidado     com extremo cuidado
dilacerar     suavemente


nos olhos
está o amor

  

mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





02 janeiro 2015

ruy belo / perigo de vida



É grande o risco da palavra no tempo
maior mesmo talvez que no mar
Eu fui à margem do dia despedir um amigo
e não houve no cais
iniciativa verbal que edificasse
uma só tenda para o nosso coração
Éramos peregrinos
que deixam a saudade de turistas
ausentes na rua de outono
Morríamos contra a curva dos dias
a morte rotativa e provisória

Tivesse a própria palavra lábios
e nenhum clima poderia
arrefecer-lhe o coração
Tivesse ela lábios e não seria
tão grave o risco no tempo e no mar
  


ruy belo
relação
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




01 janeiro 2015

alberto caeiro / assim como



Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer  pensamento, 
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade, 
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada. 
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada. 
Assim tudo o que existe, simplesmente existe. 
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença. 
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença. 

  

alberto caeiro




31 dezembro 2014

rui costa / manifesto


Eu gosto muito dos senhores que moram no meu prédio.
O prédio é alto e tem elevadores. Assim é melhor porque ninguém
tem que carregar ninguém às costas. Quer dizer, as pessoas
também podiam ir pelo seu próprio pé mas isso era se não houvesse
pessoas no meu prédio que precisam de favores. Precisam,
e depois pagam com as costas na subida - Ouvi dizer que há
pessoas no meu prédio que têm em casa florestas normandas (eu
cá só ervas daninhas!). É que o elevador do meu prédio avaria
muitas vezes. Avaria, e depois os senhores dos andares de cima
precisam de carregadores. As pessoas dos andares de baixo
começaram a nascer todos os dias com as costas mais
largas para poderem carregar melhor, e agora o elevador
avaria quase sempre. A minha sorte é eles saberem que
eu só tenho em casa ervas daninhas. Nunca me pedem para
os carregar nem sequer estacionam as suas árvores novas
a barrar-me a entrada de casa: têm medo de ser contaminados.
Agora são os senhores dos andares de cima que me pedem
favores: se posso mudar de casa, de prédio, que até me
oferecem uma casa com florestas normandas lá dentro.
Mas eu não quero. Estou bem aqui. As minhas ervas
chegam já ao primeiro andar. Às vezes subo por elas
e convidam-me para jantar. Falamos e rimos e quando
nos calamos o silêncio à volta é maior.
Até agora cresceram sempre frescas pelo seu pé acima.



rui costa
o pequeno-almoço de carla bruni
2009



30 dezembro 2014

valerio magrelli / comboio-cometa




" Assumia o autor, como fundamento da demanda, que no
seguimento da passagem de um comboio de mercadorias
deflagrara um incêndio, o qual, da via férrea, se propagara
à confinante propriedade desse autor, destruindo as culturas
existentes. Acrescentava que o incêndio fora provocado
por um vagão de comboio, de cujos travões, bloquea
dos apesar do movimento da composição, se tinham libertado
feixes de faúlhas. Do anexo relatório da oficina deduz-se
que, por causa do bloqueio do travão por obstrução
dos tubos devida a impurezas do óleo, as pastilhas e as
jantes do rodado ficaram fortemente incandescidas pelo
sobreaquecimento, e o chão do compartimento queimado."


Comboio-cometa
fósforo embruxado, ferro
riscado contra os carris,
travão puxado e atrito,
comboio-travão que dilacera
a guincha na noite.
Avançava com as rodas bloqueadas
as vértebras contraídas
as palavras-hífen
e do meu esforço saía
um calor e uma cor
e um cheiro a carne chamuscada:
faíscas, uma chuva de línguas
pedrenais na noite.
Ah vagões travados, ah palavras-hífen
eu fricativo, retrato de atrito.




valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993







29 dezembro 2014

william carlos williams / canção



a beleza é uma concha
do mar
onde triunfante reina
até o amor dela se apoderar

vieiras e
garras de leão
esculpidas ao
som das ondas que se afastam

eternos acentos
repetidos até
olho e ouvido jazerem
juntos na mesma cama


william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993




28 dezembro 2014

álvaro de campos / escrito num livro abandonado em viagem



Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto Não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

  

álvaro de campos