(único poema de guerra)
As prostitutas mijaram na soleira da minha porta
E as escada cheirou a guisado até ao último andar
O ritmo dos aviões acomodou-se ao prestígio da noite
E encheu-me de intermitências
Alguém desfolhou um dedo como uma tulipa
Mas tiradas as pétalas e as sépalas
Em vez do androceu e do gineceu
Havia lá dentro uma pobre lua de pé
Como a chama gelada de uma candeia.
Quem é? Quem é aquele homem?
Quem é aquele homem que vai pela estrada fora
Decididamente
E quando acaba a estrada e o precipício se desenha como um U
Desce e sobe o U do precipício
Imperturbavelmente
E atravessa a água do rio e sobe a catarata
Ao contrário da corrente
E percorre os cinco diques do navio que puseram ao alto da água
Para a lua de mel dos turistas americanos
E depois molhado e violento faz mais mil e duzentos e vinte e dois
atalhos e
[caminhos
E só ao chegar finalmente à cabine do elevador no sétimo andar
Do bloco de flats de que percorrera gloriosamente todos os pisos e
recantos
Sentiu que era inútil e desnecessário qualquer esforço
E chorou feio como um anúncio de limonadas?
V.D.
A sífilis não se contagia pelo ar
Como a gripe e o sarampo
Segundo dizem a experiência e o Senhor Ministro da Saúde
Do governo de sua Majestade
A sífilis contagia-se pelo olhar de certas velhas moralistas
Com óculos e barba
Anda no pêlo ratado de certas raposas de mendiga
Mas pode produzir frutos admiráveis
Tem de ser cultivada cuidadosamente num vaso
Tem de ser bem regada e bem coberta cheia de emanações.
Mas isto não diz o Ministro da Saúde do governo de sua Majestade
No anúncio do jornal
Porque é segredo de guerra agora
E na hora da nossa morte
Amen
Os olhos dos buses de Londres
São fixos e frios como o dos peixes mortos.
Era muito mais sensacional
Tremer a pálpebra aliciadoramente a qualquer olho dum bus
Que tenha-se publicado em vinte volumes
Mais de vinte mil discursos do senhor Winston Churchill
Aos vivas ao Franco como não vem nas caricaturas
Vestido de caixa de charutos
Todo Joly good fellow.
Anda no ar um rodopio do vento
Como uma interrogação neste calor de Maio
Acabem lá com isso dos alemães e da guerra
E ponham taipais na Europa
"PARA CONSERTAR"
Londres, Maio de 1944
antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura
portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998