21 julho 2014

gil t. sousa / água-forte



Há uma passagem nas “Memórias de Adriano” em que ele diz que a palavra escrita o ensinou a escutar a voz humana, tanto como a atitude imóvel das estátuas o ensinou a apreciar os gestos; e que só posteriormente, a vida o fez compreender os livros. Mas, diz ele, ainda os mais sinceros, os livros mentem.

E aponta as razões dessa mentira conforme se trate da escrita dum filósofo, dum historiador, dum narrador ou dum poeta. Diz Adriano que os livros dos poetas mentem porque nos transportam a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo um mundo diferente e praticamente inabitável.

Trago aqui esta nota porque partilho dessa visão de que só a vida nos faz compreender os livros.

Penso que é neste “mundo praticamente inabitável” que está a origem de toda a criação poética. Defendo que a poesia vive dessa esperança mínima de trazer a diferença para a realidade e de ir ganhando ar fresco ao irrespirável espaço da utopia, habitando-o.

Aos poetas, visionários ancestrais, cabe a missão de reescrever o mundo, usando a palavra como um buril. É um ofício antigo e sem fim que a alguns castiga com a eternidade, a outros com a loucura. Eles são como o pássaro do mineiro, vão à frente, muito à frente e morrem quando o mundo se fecha à beleza.  

Os livros mentem, sim, mas apenas porque serão sempre lugar de horizontes. Os livros são o lugar solene onde a nossa palavra, ou a nossa alma, pode ficar à espera de ser olhada e eu não tenho dúvidas de que quem partilha a alma exerce o mais alto grau da sabedoria.

O que vos dou neste livro são horizontes, cumprindo uma aspiração de juventude: que a vida faça de mim um velho lúcido, tranquilo e com um pouco de sabedoria.

Porto, 19 de Julho de 2014


gil t. sousa





apresentação do livro

água-forte
(poesia reunida)
de gil t. sousa
editora medita
campinas, brasil
www.editoramedita.com.br


com:
wladimir vaz
pedro gil-pedro
e maria tomé

em:
a cadeira de van gogh
rua morgado de mateus, 41
4000-334 porto


18 julho 2014

antónio maria lisboa / que pensar destes poemas



Que pensar destes poemas: mundo sem classificações,
esquemas, meios diversos e opostos de ser e conhecer,
de se comportar e fazer comportar, de amar e ser amado,
pulverizando as escalas, aparências,
arbitrariedades dialécticas do Bem e do Mal,
da sua reversibilidade, da sua interconexão?

- Porque funde num só corpo:
porque contém a Lei e contém o que destrói a Lei,
é o Paradoxo a forma do Saber Oculto.



antónio maria lisboa
a verticalidade e a chave
contraponto
19..


17 julho 2014

sophia de mello breyner andresen / noite



Noite de folha em folha murmurada,
Branca de mil silêncios, negra de astros,
Com desertos de sombra e luar, dança
Imperceptivel em gestos quietos.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999



16 julho 2014

herberto helder / as musas cegas



IV

Mulher, casa e gato.
Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.


A pedra cai na cabeça do gato e o peixe
gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram
palavras.
Eu próprio caio na mulher, o gato
adormece na palavra, e a mulher toma
a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.


Palavra abstracta que arrefeceu no gato
e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio
de originalidade por dentro da palavra.
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.


Deito-me e amo a mulher. E amo
o amor na mulher. E na palavra, o amor.
Amo, com o amor do amor,
não só a palavra mas
cada coisa que invade cada coisa
que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto
em que a mulher eternamente
passa a mão da mulher no gato
dentro da casa.
  

No mundo tão concreto.

  

herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



15 julho 2014

heiner müller / as imagens



As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, O grou, um pássaro, mais
    nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
    amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

                                      sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.



heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997




14 julho 2014

gil t. sousa / onde mora o coração



ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração








13 julho 2014

fernando pessoa / não sei quantas almas tenho.



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.



fernando pessoa




12 julho 2014

fernando guimarães / casa




Não é pela minha casa que caminho agora, mas através da imagem que tenho dela. As distâncias são maiores. Sempre que chego ao fim dos seus corredores sinto-me cansado. Por isso, ando mais devagar. Por vezes abro uma porta e o que vejo é apenas aquilo que imagino: um espaço que existe no meu espírito. Tudo nele é exacto, tranquilo. O ar principia a envolvê-lo como se encontrasse uma espécie de segredo ou a minha própria indecisão. Detenho-me nesse lugar como se esperasse por alguém. As paredes são brancas, levemente inclinadas. É assim que sinto como depressa vem o tempo ao meu encontro, mas nada acontece. Olho com mais atenção... Ao lado, distingue-se uma mesa vazia. As janelas conservam-se fechadas. Outrora podia ver a partir daí algumas árvores e escutar o seu rumor. Talvez conseguisse mesmo suster um pouco a respiração, quando esperava por uma atmosfera límpida e submissa. Ouvia também o mar, porque ele estava de novo sujeito às minhas palavras. Dirijo agora os passos para outras salas, aquelas que ficavam mais longe. Mas sei que todas são iguais. Nada podia perturbar a disposição que sempre tiveram, o equilíbrio último desta casa. Admito ter encontrado o seu centro, um lugar que todos julgavam não existir. Está nos meus olhos.



fernando guimarães 




11 julho 2014

jean-arthur rimbaud / meditações



Eu sou o peão da estrada larga através
dos bosques; abafa-me os passos o rumor
das comportas.

Durante muito tempo, permanece no meu
olhar a melancólica limpeza do oiro do
poente.


jean-arthur rimbaud
meditações
alma azul
2007




10 julho 2014

fiama hasse pais brandão / nada tão silencioso como o tempo




Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até nas íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.

Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.

Mas não sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.


  
fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000






09 julho 2014

gil t. sousa / água-forte, poesia reunida



estão todos convidados!



josé miguel silva / passagem



Em Segóvia há uma praça,
na praça uma varanda, na varanda
o rasto de ninguém.

Mas tens uma cadeira no café,
abundante chá de tília,
a certeza de que dentro duma hora
vai abrir-se para ti
a livraria da esquina.

É pouco mas sossega,
sob o bolso da camisa,
o motim do coração.




josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




08 julho 2014

leopoldo maria panero / o que resta depois da flor



O que resta depois da flor
é uma coisa sem dentes,
recordando
o mistério da flor, a medonha agulha
para gravar na pele as sílabas
da dor: e a vida
é como uma irritação, ou uma incomodidade
de ser ainda nada,
                           como uma recordação.



leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001