15 junho 2014

paul auster / desaparecimentos



1

De pura solidão, ele recomeça ─

como se fosse a última vez
que respirasse,

e é por isso agora

que pela primeira vez respira
para além do alcance
do singular.

Está vivo, e ele não é senão por isso
o que se afoga no insondável poço
do seu olho,

e o que ele vê
é tudo o que ele não é: a cidade

da indecifrável
ocorrência,

e logo a língua das pedras,
pois ele sabe que por toda a vida
uma pedra
dará lugar a outra pedra
para fazer uma parede

e que estas pedras todas
farão a soma monstruosa

da singularidade.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002




14 junho 2014

edmundo de bettencourt / luar



Apenas o luar chegou,
desfez-se em asas no ar.
E toda a noite levou
a regressar devagar...

Em noites alvas, de lua,
não há nudez com vergonha.
À luz do luar, o barro
é o mármore com que sonha.

À luz do luar, as aves
nocturnas, breve, enlanguescem
e, ao seu crepúsculo da sombra,
mortas de sonho adormecem...

Os silêncios do luar são
aléns de notas agudas,
são gritos paralisados
em rictos de bocas mudas!

O luar rouba ao escuro
o que de dia é segredo.
À luz do luar podemos
ver respirar o arvoredo...

Canção ouvida ao luar
não terá ritmos perdidos
- é som vivendo no olhar
- luz que fica nos ouvidos.

À luz do luar a água
soluça todas as dores,
que à luz do luar a água
tem na cor todas as cores.



edmundo bettencourt
poemas de edmundo bettencourt
1962



13 junho 2014

amalia bautista / loucuras



E tu tão longe
e tão dentro de mim, tão invasivo.
E esta chuva
que ameaça dissolver toda a terra
e tornar tudo mar, o meu pesadelo.
E de repente todas as distâncias
se tornam infinitas,
como se só o louco mais malvado
as pudesse ter concebido.


amália bautista
estoy ausente
(versão de at)
pre-textos,
valencia
2004




12 junho 2014

herberto helder / e só agora penso:



e só agora penso:
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
                                                                     mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso.
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
─ cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo
                                  fundo e amargo espelho velho:
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente
                                                               o mesmo


herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014




11 junho 2014

joão habitualmente / nem tanto ao mar



Amo o mar
porque não tem fim

e os vagabundos que não tem pilim

Mas pelo meio das formas
e das aparências sem fundo
parecendo que amo o mundo
amo-me sobretudo a mim

Talvez venha a querer ao mar
ou vagamente a um vagabundo

talvez os ame no fundo

Mas no rodar infindo
daquilo que não tem fim
quero-me principalmente a mim

Ao resto das formas
e das aparências do mundo
amo só assim-assim



joão habitualmente
os animais antigos
vila do conde : objecto cardíaco
2006



10 junho 2014

luís vaz de camões / coitado! que em um tempo choro e rio;




Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du´a cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;
Queria desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo



luís vaz de camões
sonetos



09 junho 2014

eugénio de andrade / o lugar da casa



Uma casa que nem fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

  

eugénio de andrade
o sal da língua
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







08 junho 2014

fernando pessoa / isto



Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como  que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir! Sinta quem lê!

  

fernando pessoa



07 junho 2014

saint-john perse / elogios xv



           Infância, meu amor, também amei a noite: é a hora de sair.
          As nossas criadas entraram nos seus vestidos coloridos… e colados às persianas, sob as nossas tranças geladas,
         vimos como, delicadas e nuas, elas levantam com a força dos braços o anel macio do vestido.
      As nossas mães vão descer, perfumadas com as ervas-da-Madame-Lalie… Seus pescoços são belos. Ide e anuncia: A minha mãe é a mais bela! ─ Ouço já
          os tecidos engomados
         que arrastam pelos quartos um doce barulho de trovão… E a Casa a Casa?... saímos dela!
         Até o velho ancião me cobiçaria um par de matracas,
         e como os grãos da ervilha, do tamarinho ou da mucuna fazê-las retinir por entre as mãos.

         Aqueles que são antigos na região levam uma cadeira para o pátio, bebem ponche cor de pus.


  

saint-john perse
imagens à crusoé
elogios
trad. jorge melícias
quasi
2002



06 junho 2014

vladimir holan / ela perguntou-te



Uma rapariga perguntou-te: O que é a poesia?
Tu querias responder-lhe: Tu também és, ah sim, tu também
- e tu a medo e surpreendido -,
o que prova o milagre,
tenho ciúmes da tua beleza madura,
e porque não posso nem beijar-te nem dormir contigo,
e porque não tenho nada e quem não tem nada para dar
deve cantar...

Mas tu não respondeste, permaneceste em silêncio
e ela não ouviu a canção.


vladimir holan
mirroring: selected poems of vladimir holan
tradução de miguel gonçalves.
wesleyan university press
1985




05 junho 2014

marc granell / requiem



Que a paz esteja convosco,
irmãos no egoísmo e na estultícia.
Que vos seja favorável e acolhedora
a ratoeira que durante séculos construímos
sob a pele indestrutível de cada inocência.

Duros são os tempos e é bom esconder
as mãos nos bolsos do consolo
propício, estudado a propósito
para esconder o odor da tempestade,
do vazio sem resposta possível
que nos despe os caminhos e o olhar.
Não há razões que nos conduzam à suspeita
da existência imprescindível da culpa
que, como um bosque conhecido e confortável,
instalámos no centro das nossas veias.
E, no entanto, é a casa onde habitamos
a angústia de sabermos a morte
quando nascemos nascida nas entranhas.

Algum dia tentarão talvez esclarecimentos
aqueles em que nos queremos mentir perpétuos.
Quebrarão os ferrolhos e uma a uma pendurarão
por toda a eternidade as nossas caveiras
sob a única e branca, gloriosa, gargalhada.


marc granell
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994




04 junho 2014

marguerite yourcenar / disciplina augusta



Não tenho filhos e não o lamento. Sem dúvida, nas horas de fadiga e de fraqueza, em que nos renegamos a nós próprios, acusei-me por vezes de não ter procriado um filho que me continuasse. Mas esse desgosto tão vão baseia-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho forçosamente nos prolonga e a de que este estranho amontoado de bem e de mal, esta massa de particularidades ínfimas e bizarras que constitui uma pessoa mereça ser prolongado. Utilizei o melhor que pude as minhas virtudes; tirei partido dos meus vícios; mas não tenho especial empenho em legar-me a alguém.



marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974




03 junho 2014

frank o´ hara / porque não sou um pintor



Eu não sou um pintor, sou um poeta.
Porquê? Penso que preferia ser
um pintor, mas não sou. Bom,

Mike Goldberg, por exemplo,
está a iniciar um quadro. Eu apareço.
«Senta-te e toma uma bebida» diz
ele. Eu bebo; nós bebemos. Reparo
«Tu tens SARDINHAS aí.»
«Sim, precisava de qualquer coisa ali.»
«Oh.» Eu saio e os dias passam
e eu apareço de novo. O quadro
avança, e eu saio, e os dias
passam. Eu apareço. O quadro está
terminado. «Onde estão SARDINHAS?»
O que resta são apenas
letras. «Era demasiado», diz Mike.

E eu? Um dia estou a pensar numa
cor: laranja. Escrevo uma linha
acerca de laranja. Em breve é uma
página que está cheia, não de linhas, de palavras.
Depois outra página. Deveria haver
muitíssimo mais, não laranja,
palavras, como é terrível o laranja
e a vida. Os dias passam. Acontece ser
em prosa, sou um verdadeiro poeta. O meu poema
está terminado e ainda nem sequer mencionei
o laranja. São doze poemas, chamo-lhes
LARANJAS. E um dia numa galeria
vejo o quadro de Mike, chamado SARDINHAS.



frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995