29 maio 2014

kostas kariotákis / préveza



São de morte estes corvos ao voarem
De encontro aos negros muros, ao telhado,
São de morte as mulheres ao amarem
Como quem preparasse um refogado.

De morte as ruas sujas e mesquinhas
Com nomes tão sonantes e tão fortes,
O olival, que abraça o mar, as vinhas,
E até o próprio sol, morte entre as mortes.

De morte o inspector que quer levar
Para análise a dose ..."ilegal".
Na varanda os jacintos a espreitar
E o mestre escola lendo o seu jornal.

Da guarda o pelotão no forte branco,
Domingo toca a banda no coreto.
Com "dracmas trinta" abri conta no banco,
Fui hoje lá buscar a caderneta.

Vais pelo molhe e pensas devagar:
"Será que sou?" E dizes: "Não, não és."
Chega o barco, a bandeira a tremular.
Vem decerto o prefeito no convés.

Ai se ao menos por tédio um habitante
Se deixasse morrer neste desterro,
Para toda a gente ir, grave o semblante,
Negro o luto, entreter-se no enterro.




kostas kariotákis
tradução de manuel resende




28 maio 2014

giánnis ritsos / a outra cidade


Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e
impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre
cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Nesta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de
braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras,
paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados,
perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas
estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não
ditas.



giánnis ritsos
antologia
tradução de custódio magueijo
fora do texto
1993


27 maio 2014

antónio reis / depois das 7



Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz
torna mais belo
e mais útil
cada objecto


antónio reis
novos poemas quotidianos
edição do autor
1959



26 maio 2014

jean-arthur rimbaud / frases



Lancei cordas de campanário a campanário; guirlandas de janela a janela; cadeias de ouro de estrela a estrela, e danço.



jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



25 maio 2014

guillevic / canção



Minha filha, o mar,
Já o adivinhaste,
Não é uma prenda
Que te possam dar.

Minha filha, a onda
É um outro mundo
Onde o pé se afunda
E ninguém responde.

O horizonte, filha,
É um grão-vizir
Que há-de receber-te
Quando o fores abrir.

Minha filha, o espinho,
Bem o viste já,
Só se torna amigo
Se nos maltratar.

Minha filha, a dança
Que posso ensinar-te
Nos teus olhos brilha
E hás-de segui-la.

E, filha, a esperança,
Mais forte que o mar,
Mais forte que o espinho,
A onda e a dança.



guillevic
chanson, gagner  (1949)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






23 maio 2014

vasco costa marques / último poema do amor ausente



Todo o corpo lhes dói de acertar os relógios
De momento a momento às vantagens do tempo
Meu amor meu amor tem por vezes o gosto
Do veneno sorvido ao desabar das pontes

A mais frágil aragem os confunde
O espaço aberto enreda-lhes os passos
O convívio da vida esboroa as palavras
A liberdade é um peso enorme nos seus ombros

«Tudo quanto perdi na violência do tempo
Veio hoje até mim como o espinho da flor
Como o operário morto entre o ferro e o cimento
Da construção do amor

Foi um lento e incógnito perfume
Foi um lago sem margens intransposto
Foi uma pedra vermelha de lume
O mais belo sorrir de desgosto»



vasco costa marques
poesia dos dias úteis
1956



22 maio 2014

antónio maria lisboa / comutador



Ergo-me de ti no zimbório
de folhas na penedia do castelo medieval
de limos na humidade da praia
de cristais entre os rochedos do Cabo Horn

Caminho de gelo na floresta
de sôfrego na vastidão do deserto
de louco na brancura do hospício

Eu abismo, eu cratera
inclinei-me e vi um espectáculo caprichoso: uma unha branca
uma unha branca a viver assim despreocupada

OGIVA-BORBOLETA
Arco-de-Cor caldo muito triste
Casulo de quem ninguém falou
Teia-de-Aranha exposta à loucura e ao tempo
Andorinha-Azul de chapéu mole e baratas na cama
VENTOINHA.




antónio maria lisboa



21 maio 2014

paul celan / com brancusi, a dois



Se destas pedras uma
anunciasse
o que a faz silêncio:
aqui, muito perto,
na bengala deste velho,
isso se abriria, como uma ferida
em que terias que mergulhar,
solitário,
longe do meu grito, ele também já
talhado pelo cinzel, branco.


paul celan
trad. joão barrento
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




20 maio 2014

ana paula inácio / senhora vermeer



À senhora Vermeer coube-lhe a sorte
de não caber nos quadros
de Vermeer, seu marido.
Não possuía o traço do anil
ou do ouro
que lhe caíam o regaço
como única declaração de posse
das jóias e do marido
que não era jóia nenhuma
como dizia a criada
que sabia como se cozinhavam as coisas
à rapariga do brinco
que ele pintou para sua desgraça.
A senhora Vermeer não ficou na História de Arte
só na das histéricas lágrimas
e inúteis posses,
desvairada e borratada
na sua pintura.


ana paula inácio
telhados de vidro nº. 11
averno
2008



19 maio 2014

mário cesariny / no país


no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato



mário cesariny
manual de prestidigitação
discurso sobre a reabilitação do real quotidiano
assírio & alvim
1981




18 maio 2014

alberto caeiro / é talvez o último dia da minha vida



É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o Sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.




alberto caeiro


17 maio 2014

felipe benitez reyes / o género humano




Nem juntos os nossos corações se ouvem mais,
na inquietude total do universo,
do que ouvimos esse frigorífico latir de noite
numa solidão cordial e insone.


Nem sequer a união
de todos as canseiras que suportamos
conseguiria mudar a forma de uma nuvem.


A soma do amor de todos juntos
não poderia salvar
a vida de um insecto agonizante
nem impedir a soberba de um tirano.


A nossa história é um cofre
de sangue e cinza.


O mar some as pegadas dos barcos.
O tempo apagará as nossas esteiras.



felipe benitez reyes
tradução de manuel rodrigues





16 maio 2014

sophia de mello breyner andresen / eis que



Eis que o mundo de ti cai abolido
E tu ficas sozinho e muito longe
Com dois búzios do mar sobre os ouvidos
Ouvindo, só para ti, uma canção

Assim as flores de dentro para fora
Se queimam sob o halo dos perfumes
E voltam para nós os olhos cegos
Estrangeiras a tudo no sabor
Duma substância angélica e terrível.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
coral
caminho
1999