15 maio 2014

alexandre o'neill / o adjectivo



O adjectivo? Que horror
quando não é incisivo
quando atira para o vago
o pobre substantivo
ou o circunda de um halo
de um falso resplendor,
em que o ouro utilizado
não é ouro é só dourado!


O sol assim captado
é sol, mas sol de teatro,
ouro em falsete, luz barata,
e no prego não dá nada,


que o prego não acredita
(senão já estava falido)
nesse ouro sem quilate
que usam a valdevina

e o poeta que se orna
(que orneia, melhor diria)
de luzidias mentiras,
de poética poesia.

Disse pouco do que queria
na parte que antecede.
Se é discursiva, a poesia
também não serve...

Voltando ao adjectivo
(nada tenho contra ele):
é melhor ficar despido,
cosido co'a própria pele,

do que pedir emprestada
a piedosos enchumaços
aquela largura de ombros
que nos faz ginasticados,

quando, em verdade, não temos
mais ginástica do que essa
em que somos atletas
e que se resume apenas

no aguentar alegre
do peso quotidiano
(pode ser que para o ano
a terra nos seja leve).

Tal como do mal o menos
- e nesta regra redijo-
antes quero sóbrios termos
do que fingir que sou rico...



alexandre o'neill
abandono vigiado
1960




14 maio 2014

gil t. sousa / paisagem sem ti



fervem nos ombros
dos montes
as pedras do silêncio

e isto podia ser o mundo
ou a casa onde a morte
se cansa de mentir

no céu, só os restos
dum incêndio trabalham
esta febre do olhar

toda a tarde
te respiro por entre
as árvores submersas!

estou tão quente
como um fruto
que o sol ferrou

só, só eu
te sei cantar
até seres chuva



gil t. sousa
euOnça
volume_dois
editora medita
2014




13 maio 2014

eugénio de andrade / verão sobre o corpo



Esta noite preciso de outro verão sobre a boca
crescendo nem que seja de rastos.





eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976




12 maio 2014

carlos poças falcão / «ich habe genug»



1.
o balouçar
da roupa sereníssima
no bairro das traseiras
recorda-me o engano
que ilumina em volta do mundo.
Não saltes tão de força, coração, mas também tu
oscila sereníssimo no tempo que ainda tens
para não desesperar.

2.
E estava-se tão bem

Mas depois abriu
depois fugiu
desapareceu

Depois da tua morte
continua a claridade
a luz faz doer os olhos

E não podendo já
falar ao teu ouvido
nenhum segredo escuto
para dizer ao mundo inteiro

3.
Agora outra vez a caminhar
atraso de propósito o bater dos vários ritmos

Não estou contra
não vou contra
apenas subo um pouco
e desacelero

Assim vou desdobrando
um fio de oração sobre a cidade
Depois dos triunfos
e das pequenas mortes
é só pela humildade (a terra da alegria)
que posso regressar


carlos poças falcão
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013



11 maio 2014

àlex susanna / amis



Depois de alguns anos de pastagem             
sabes finalmente quais são
os teus companheiros de encerro,
quero dizer, de geração:
são poucos, cada vez menos
mas são mais próximos
aqueles que restam.
 
Tranquilizem-se, no entanto,                                    
não vos citarei, meus amigos:
receio que nomeados se volatilizem
- como acontece com certas bruxarias -
e tal coisa far-me-ia muita pena.
Sei quem vocês são, vocês também
- isso me basta.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




10 maio 2014

antónio franco alexandre / terceiras moradas



22

Julgavas, então, que a poesia era um discurso
de palavras em sentido? Sei quanto a musa aprecia
glória, poder e uniforme, quanto aguarda
o cavaleiro que produz.
A vida, afinal, anda lá fora, antes da folha
ter passado a prensa;
a mais pequena árvore é verde eterna, comparada ao arbusto
que, mal tocada a haste, se desvai em fumo.

Por isso eu fico lendo as crónicas, as lendas,
o jornal que, bem ou mal, cruza as palavras com o tempo,
e contudo! quando o lábio se engana, solta
a mais aguda fífia do trombone,
e de repente o corpo sabe a gente, e então se diz:eis
a verdadeira e pura poesia! pois seria, talvez,
somente a tua mão, cobrindo a folha.



antónio franco alexandre
terceiras moradas
poemas
assírio & alvim
1996



09 maio 2014

edmundo de bettencourt / abrigo



Presa da chuva corre a prostituta,
corre presa,
e em frente é a porta aberta do palácio que lhe acena.

Mas à entrada,
o resto duma sereia emerge do escuro,
e um lobo acorda do sono dum tapete,
com uma risonha flor nos dentes,

que a uma claridade subterrânea
o palácio está sem tecto,
suas paredes transparecem,
todo ele é uma poça de água cintilando!

Fora,
uma lira de chuva num deserto
acena à prostituta…



edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981





08 maio 2014

fiama hasse pais brandão / da terra


Amar o mar completa a minha vida
com o tacto de um amor imenso.
Amar ateia a margem
arrebata-me de júbilo e paixão.
Mas veio o vento e, por momentos,
amargurou o meu corpo, o oscilar.
E está o sol aqui, depois de uns dias
de jardim obscurecido, a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem
e dançam como os insectos
ébrios em redor do pólen.

  

fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




07 maio 2014

josé miguel silva / too big to fail



Como pode um investimento tão fiável
garantir este rendimento crescente, numa
diária distribuição de beijos e outras mais-
-valias, ainda por cima livres de impostos?

Embora confiasse na tua competência
para criar valor, confesso que não esperava
tanto quando decidi aplicar nos teus títulos
sensíveis os meus parcos activos emocionais.

O mais estranho, no mundo actual, é ser este
um negócio sem perdedores, aparentemente
imune ao nervosismo das tuas acções
ou às flutuações do meu comércio libidinal.

O meu único receio é que despertemos
a inveja dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,
e que Mercado, o monstruoso titã, decida
baixar para lixo o rating da nossa relação,

deixando-nos sem crédito na praça romanesca
e em default o coração. Mas não sejamos
pessimistas. Aliás, ambos sabemos que Cupido
nos ampara com sua mão invisível. E mesmo

que entrássemos ambos em depressão, tenho
a certeza de que o Estado português nos daria
todo o apoio, concordando que um amor como
este é simplesmente demasiado grande para falir.



josé miguel silva
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012




06 maio 2014

vicente aleixandre / o moribundo


I

Palavras

Ele dizia palavras.
Quero dizer palavras, ainda palavras.
Esperança. O Amor. A Tristeza. Os Olhos.
E d´zia palavras,
enquanto a sua mão levemente débil sobre o lenço
                                                       [ainda vivia.
Palavras que foram alegres, foram tristes, foram
                                                           [elevadas.
Falava movendo os lábios, queria dizer aquele sinal;
o esquecido, esse que sabem dizer melhor dois
                                                                [lábios,
não, duas bocas que unidas em solidão pronunciam.
Mal dizia um sinal leve como um suspiro, dizia um
                                                             [respirar,
uma bolha; dizia um gemido e os lábios emudeciam,
enquanto as letras tingidas de um carmim em sua boca
muito débeis cintilavam, até cessar por fim.

Então alguém, não sei, alguém não humano,
alguém pôs uns lábios sobre os seus.
E ergueu uma boca onde ficou só o calor comunicado,
as letras tristes de um beijo nunca dito.




vicente aleixandre
antologia de vicente aleixandre
nascimento último (1927-1952)
tradução de José bento
editorial inova
1977



05 maio 2014

pablo garcia casado / código de bar



sós ou em companhia todos os príncipes se foram
ficamos os de sempre os de outras vezes os que já
nos conhecemos vou ser breve proponho-te

um lugar afastado olhar as últimas estrelas
tomar juntos o primeiro café com leite de domingo
nada mais posso oferecer-te apenas tenho o que sou

além de um erre cinco com assentos abatíveis



pablo garcia casado
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000


03 maio 2014

josé tolentino mendonça / não deixeis um grande amor



Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa

assim ele habitou cidades
desprovidas
ou os portos levantinos a que
se ligava apenas por saber
que nada ali o esperava

assim se reteve nos campos
dos ciganos sem nunca conseguir
ser um deles:
nas suas rixas insanas
nas danças de navalhas
na arte de domar a dor
chegou a ser o melhor
mas era ainda a criança perdida
que protesta inocência
dentro do escuro

não será por muito tempo
assim eu pensava
e pelas falésias já a solidão
dele vinha

não será por muito tempo
assim eu pensava
mas ele sorria e uma a uma
as evidências negava

por isso vos digo
não deixeis o vosso grande amor
refém dos mal-entendidos
do mundo



josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997






02 maio 2014

al berto / truque do meu amigo da rua



ao acaso encontrei-te encostado a uma esquina
olhar vazio varrendo a multidão, parei
sorri e tu vieste, fomos andando
os ombros tocavam-se, em direcção a casa
pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me
ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo sujo da cidade e de engates
sujo pelos dias e noites e mais dias que não tive
esperei-te deitado, outro cigarro
e ainda espero
gosto dos corpos que riem, frescos
rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo
húmido da boca, que sempre percorre e descobre

tacteio-te de alto a baixo
reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro
contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te
e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via
sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão
manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas, blusão cheio de autocolantes, peúgas encortiçadas pelo suor
as cuecas rotas, sujas de merda
e tuas mãos, recordo-me
sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito
teu corpo nu, à beira da cama, no sossegado sono

  
al berto
alguns truques de ilusionismo
1979/ 80