11 outubro 2013

nicolás guillén / poema seis (fragmento)



Índias Ocidentais! Índias Ocidentais! West Indies!
Este é o povo hirsuto
de cobre, multicéfalo, onde a vida luta
com o lodo seco entranhado na pele.
Este é o presídio
onde cada homem existe de pés atados.
Esta é a grotesca sede das companies and trusts.
Aqui estão o lago de asfalto, as minas de ferro
as plantações de café
os port docks, os ferry boats, os ten cents…

Este é o povo do all right
onde tudo se encontra mal
Este é o povo do very well
onde nada está bem.

Aqui estão os servidores de Mr. Babbit.
Os que educam os filhos em West Point.
Aqui estão os que chilreiam: hello baby
e fumam “Chesterfield” e “Lucky Strike”.
Aqui estão os bailarinos de fox trots
os boys do jazz band
e os veraneantes de Miami e Palm Beach.
Aqui estão os que pedem bread and butter
e coffee and milk.
Aqui estão os absurdos jovens sifilíticos
os fumadores de ópio e marijuana
exibindo as suas espiroquetas
e mandando fazer um fato em cada semana.
Aqui está o melhor de Port-au-Prince
O mais puro de Kingston, o high life de La Habana…
Mas aqui estão também os que remam em lágrimas
galeotes dramáticos, galeotes dramáticos.
Aqui estão eles
os que trabalham com uma picareta
a dura pedra onde pouco a pouco se crispa
o punho de um titã. Os que acendem a chispa
vermelha, sobre o campo ressequido.
Os que gritam: “Cá estamos!” e a quem responde o eco
de outras vozes: ”Cá estamos!”. Os que em rude tumulto
sentem latir o sangue com sílabas de insulto.


nicolás guillén
west indies, ltd
1934
tradução de nicolau saião



10 outubro 2013

thom gunn / peça nocturna



O nevoeiro vagueia lentamente pelo monte abaixo
E à medida que subo torna-se ainda mais denso,
Encerra-me dentro de si, faz-me seu
Como roupa de cama na pedra da calçada.

Aqui se situam as últimas poucas ruas que falta escalar,
Galerias, atravessam veias de tempo,
Quase familiares, onde rastejo
Para o sono como nevoeiro, através do nevoeiro como sono.



thom gunn
tradução de cecília rego pinheiro





09 outubro 2013

juan luís panero / música silenciosa da cor,



Música silenciosa da cor, rumor do pincel e da tela,
símbolo simples, segredo azul e cinzento.
O tempo passa, mas não fere, parece flutuar,
suave nos contornos, detido nas formas,
reflexos onde a realidade se sonha,
inventada luz, por isso mais intensa.
Milhares de olhos e um único olhar
para pintar esta garrafa, depurar o branco daquela cerâmica,
despir, transparente pele cálida, fulgor acariciado,
o vidro, a toalha, a madeira, as frágeis flores,
para sonhar diferente e única,
repetida e comum, esta matéria eterna,
as suas marcas e espuma, a sua pálida cinza.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d'água
2003



08 outubro 2013

fernando martins mendes / transição



Escoa-se o tempo
na clepsidra verde-rubra
gota a gota
na cirurgia das horas.

Um pano vermelho
flutua no templo
iluminado
por estrelas
cor de milho.

O pão atenua
a fome de incertezas
fermentam-se esperanças
à mesa de jantar
à luz do luar.

A eternidade
custa a passar
na hora da transição
da tradição.

Caixeiros-viajantes
vendem quimeras
ao entardecer
dos raios solares.

No fio do escuro a clepsidra
muda de cor.
Começa a viagem
sem retorno.


fernando martins mendes
hotel lisboa
papiro editora
2007




07 outubro 2013

giacomo leopardi / a si mesmo



Repousa para sempre,
exausto coração. Morto é o engano extremo
que eu supusera eterno. É morto. E sinto
que em nós de enganos caros
a mais da esp'rança, o desejar é extinto.
Repousa. Já bastante
hás palpitado. Coisa alguma vale
o teu bater, nem de saudade é digna
a terra. Tédio amargo
a vida, e nada mais; e lama é o mundo.
Quieto, pois. Desespera
por urna última vez. À raça humana o fado
não deu mais que o morrer. Ora despreza
a natureza, o triste
brutal poder que contra nós impera,
e o infinito vácuo do que existe.



giacomo leopardi
poesia de 26 séculos
2º volume / de bashô a nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972



06 outubro 2013

hans-ulrich treichel / a fidelidade das palavras



A fidelidade das palavras
já não sonho com ela, vão
e vêem, fogem, troçam,
que terias, se não fôssemos nós,
na tua boca branca de calcário, na tua
língua seca, elas zumbem, sibilam,
até eu lhes dizer, a essas traidoras,
sonoras, ciciadas, mudas, que seríeis
vós se eu não insistisse
em seguir-vos o rasto leviano?

  

hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



05 outubro 2013

alberto caeiro / quando eu



Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor -
Tu não me tiraste a Natureza ...
Tu mudaste a Natureza ...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

  

alberto caeiro




04 outubro 2013

josé miguel silva / a caminho do fogão



Adoro essa paixão absurda que tens por Hitchcock,
o ar despenteado com que chegas a casa e me dizes:
outra vez sopa de nabos; adoro a impaciência com
que me arrancas aos diálogos com o nada, quando
me contas os teus feitos na república do frio; adoro
a tua insónia, os teus escrúpulos morais, a tua esponja
de banho, o teu espírito lavado por agudos desenganos;
outrossim acompanhar-te nas perguntas sublinhadas
pelo tempo, e o teu corpo possuído pela mágica
da música amorosa, quando dança seminu à minha
frente e eu só penso: que bem feito está o mundo.



josé miguel silva
serém, 24 de março
averno
2011




03 outubro 2013

antónio franco alexandre / esse fantasma levantou...



esse fantasma levantou os ladrilhos do corredor, entornando
à passagem o balde de geleia azul. foi esta
a primeira lembrança? ou seria
violeta; violenta; violentada; verde?
as nódoas do passado nunca se calam, apesar
de colocadas debaixo do aparador, junto à tua
cabeça maior.
             ou teremos, um dia, medo
de lhe arremessar objectos grosseiros, alguma
espinha de água verde, ou azul, conforme
o ditarem as circunstâncias? receamos
o nosso destino, e o destino dos nossos
arbustos sem flor. esse fantasma
devorou as sementes, só nos resta
abatê-lo à socapa das mesas. e depois
viveremos na infâmia, no pavor e no nojo.



antónio franco alexandre
os objectos principais
centelha
1979



02 outubro 2013

györgy somlyó / cavafy escreve os seus primeiros poemas



        Alexandria, anos 900

 
Ele não esperava os bárbaros
sabendo no entanto que viriam,                                          
hei-los já nos degraus do império.
Ele sabia que em vagas sucessivas
   inexoráveis afogariam o século.
Isso o decidiu a não publicar os seus poemas
   - nem aquele em que agora trabalhava -;
mandou imprimir apenas alguns exemplares para os amigos
mas esses em papel Héliona, com caracteres
   Héraclite, copiados das estelas arcaicas e
   classicizantes.
Os bárbaros: ele sabia que a história os aguarda sem descanso
e os envia, e sempre os bárbaros chegam,
mas não trazem consigo qualquer solução.
Apenas com esses caracteres estranhos, impressos
   com cuidados especiais em luxuoso papel artesanal 
   se torna possível combatê-los
só através deles, colocados num ângulo preciso em face
   da luz que transparece em filigrana, esse saber
permite assinalar aos homens do futuro
que os bárbaros estarão sempre ali,
mas que a solução - se acaso existe - estará sempre
   algures,
sempre nesses caracteres gravados à mão, nesses papéis
Héliona de uma brancura de linho, tirados manualmente
   do banho sujo da história.



györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves 



01 outubro 2013

golgona anchel / vim porque me pagavam



Vim porque me pagavam,
e eu queria comprar o futuro a prestações.

Vim porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos de Páscoa e pulseiras
de lata.

A bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
Quanto mais morríamos,
mais liberdade tínhamos para matar.
Matava porque estavas perto,
porque os outros ficaram na esquina do supermercado
a falar, a debater o assunto.

Com estas mãos levantei a poeira
com que agora cubro os nossos corpos.

Com estas pernas subi dez andares
para assim te poder olhar de frente.

Alguém se atreve ainda a falar de posteridade?
Eu só penso em como regressar a casa:
e que bonito me fica a esperança
enquanto apresento em directo
a autópsia da minha glória.



golgona anchel
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012



30 setembro 2013

al berto / filhos de rimbaud



II


Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro.
Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras,
esta hiena que me devora o sonho.

Pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
Um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim
-vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
Sei, neste instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação.
Afastados - tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.
O que dissemos perdeu o sabor e o sentido.

Harrar, Aden, Lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo...
o canto sublime das miragens.
Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.
Abri a janela. Avisto uma nesga de céu limpo.
Lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso,
ou por um insulto. Imitávamos assim a felicidade...

(Mas) O sol fulmina a memória. Limpa-a da crueldade do passado.
(E) A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas,
ideias que se evaporam lentamente.
Enfim, o mundo não é assim tão grande...
E a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.

Mas estou cansado. Os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
Imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras -
imagens de neve e de miséria, de cidades, de fome e de violência, de sangue,
de aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos...
talvez uma voz... o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.
E embarquei num cargueiro, desertei em Java, pensei mesmo construir uma casa
Mas não foi possível.

Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos,
e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.
Escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.
E digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie...
e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.



al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997 




29 setembro 2013

e e cummings / as horas levantam-se



as horas levantam-se despindo-se de estrelas e é
o amanhecer
na rua do firmamento a luz caminha espalhando poemas

sobre a terra uma vela é
apagada                a cidade
desperta
com uma canção sobre a
boca tendo a morte nos olhos

e é o amanhecer
o mundo
sai para assassinar sonhos...

vejo a rua onde vigorosos
homens se alimentam de pão
e vejo os brutais rostos de
pessoas contentes hediondas desalentadas cruéis felizes

e é dia,

no espelho
vejo um frágil
homem
sonhando
sonhos
sonhos no espelho

e é
o anoitecer            sobre a terra

uma vela é acesa
e está escuro.
as pessoas estão em casa
o frágil homem está na cama
a cidade

dorme com a morte sobre a boca tendo uma canção nos olhos
as horas descem,
vestindo-se de estrelas....

na rua do firmamento a noite caminha espalhando poemas


e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999