21 fevereiro 2013

edmund white / nirvana




(...)

Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.




edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
dom quixote
1996



20 fevereiro 2013

ernesto sampaio / adeus, luz que giravas sobre o mundo




Adeus, luz que giravas sobre o mundo.
Adeus, beleza das horas.
A lua sobre a casa. Os morcegos sobre a lua.
A lua sobre o pântano.
A lua no fundo do pântano.
A lua sobre as árvores.
A brisa nas árvores.
A bruma nos campos.


ernesto sampaio
fernanda
fenda
2005



19 fevereiro 2013

eugenio montale / a história



A história também não é
a escavadeira que destrói como dizem.
Deixa passagens no subsolo, cavernas, covas
e esconderijos. Há quem sobreviva.
A história é também benigna: devasta

o mais que pode: se exagerasse decerto
que seria melhor, mas sempre lhe faltam
notícias, não cumpre
todas as suas vinganças.
A história rapa o fundo
como uma rede de arrasto
com alguns rasgões, e há peixes que fogem.
Por vezes encontra-se o octoplasma
de um que escapou e não parece por isso feliz.
Não sabe que está fora, ninguém lhe falou nisso.
Os outros, apanhados, julgam-se
mais livres do que ele.




eugenio montale
excerto de "a história".
mesa de amigos – versões de poesia
pedro da silveira
assírio & alvim
2002


18 fevereiro 2013

e.e. cummings / a lua esconde-se no




a lua esconde-se no
cabelo dela.
O
lírio
do céu
cheio de todos os sonhos,
desce.

encobre a sua brevidade em canto
cerca-a de intricados débeis pássaros
com margaridas e crepúsculos
Aprofunda-a,

Recita
sobre a sua
carne
as pérolas

da chuva uma a uma murmurando.



e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999



17 fevereiro 2013

manuel alegre / trova do vento que passa


  

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém me diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que eu morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira dum rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.




manuel alegre
praça da canção
centelha
1975


16 fevereiro 2013

paul éluard / a curva dos teus olhos




A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
é uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.

Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.

Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar.



paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977


15 fevereiro 2013

ana merino / a minha intimidade é pequena




A minha intimidade é pequena
cabe na minha boca
e desliza por entre os dentes;

se a descubro a fingir que é saliva
engulo-a,
não quero vê-la alheia nas palavras
nem perdê-la com um beijo.




ana merino
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



14 fevereiro 2013

blaise cendrars / o amor é masoquista



O amor é masoquista.
Esses gritos, essas queixas, essas suaves inquietações,
esse estado de angústia dos apaixonados,
esse estado de expectativa, esse sofrimento latente,
subentendido, apenas manifestado,
essas mil e uma preocupações acerca do ser amado,
essa fugacidade do tempo, essas susceptibilidades,
essas alternâncias de humor, essas divagações,
essas criancices, essa tortura moral
em que a vaidade e o amor-próprio se encontram em jogo,
a honra, a educação, o pudor,
esses altos e baixos do tónus nervoso,
esses desvarios da imaginação, esse feiticismo,
essa precisão cruel dos sentidos
que chicoteiam e que rebuscam,
essa queda, essa prostração,
essa abdicação, esse aviltamento,
essa perca e essa recuperação perpétua da personalidade,
esses embaraços, essas palavras, essas frases,
esse emprego do diminutivo, essa familiaridade,
essas excitações nos contactos,
essa tremura epiléptica, essas recaídas sucessivas e
multiplicadas, essa paixão cada vez mais perturbadora,
tempestuosa e progressivamente devastadora
até à completa inibição,
ao completo aniquilamento da alma,
até à atonia dos sentidos,
até ao esgotamento do tutano,
ao vazio do cérebro,
até à secura do coração,
essa necessidade de prostração, de destruição,
de mutilação, essa necessidade de efusão,
de adoração, de misticismo,
essa insaciabilidade que leva a pedir auxílio à hiper-irritabilidade
das mucosas, ás divagações do gosto,
às desordens vasomotoras ou periféricas
e que apela para o ciúme e para a vingança,
para os crimes, para as mentiras, para as traições,
essa idolatria, essa melancolia incurável,
essa profunda miséria moral,
essa dúvida definitiva e pungente, esse desespero,
todos esses estigmas não constituem porventura os próprios sintomas do amor,
segundo os quais se pode diagnosticar
e seguidamente traçar com mão firme
o quadro clínico do masoquismo?




blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. Ruy Belo
livros cotovia
1992



13 fevereiro 2013

edmundo de bettencourt / ar livre





Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
-  a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!





edmundo bettencourt
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985



12 fevereiro 2013

joan-ives casanova / talvez nunca saibamos…





Talvez nunca saibamos reconhecer no calor do bronze
o gesto que as fez crescer entre oliveiras e puros vinhedos
na sombra do vale onde elas ainda dizem o pulsar da água
e a necessidade do movimento a luz amedrontada de um entardecer
 
admiro aqui pequeninas coisas em companhia dessas mulheres
coisas sensíveis como as migalhas de pão na mesa azul
como os rostos amados da serenidade do cair do dia
os que na certa vêm sem que os vejamos chegar
 
fiz-me árvore e sinceridade do alento para os tocar de leve
vi-me estendido próximo da carícia da mão
para me lembrar acabada a obra da rocha que as havia de guardar
e que seria de certo a única imagem enganadora da pele delas
 
olharei a ternura do horizonte com a queimadura dos seus olhos





joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga




11 fevereiro 2013

pier paolo pasolini / fragmento de carta para o jovem codignola





Querido rapaz, sim, claro, vamos encontrarmo-nos,
mas não esperes nada desse encontro.
Quanto muito, mais uma decepção, mais um
vazio: daqueles que fazem bem
à dignidade narcisista, como uma dor.
Aos quarenta anos sou como era aos dezassete.
Frustrados, o homem de quarenta anos e o rapaz de dezassete
podem, decerto, encontrar-se, balbuciando
ideias convergentes, sobre questões
separadas por dois decénios, uma vida inteira,
mas que aparentemente são as mesmas.
Até que uma palavra, saída das gargantas hesitantes,
paralisada de pranto e vontade de estar só -
lhes revele a disparidade sem remédio.
E, ao mesmo tempo, terei de fazer de poeta
pai, e refugiar-me na ironia
- que te embaraçará: porque o homem de quarenta anos
é mais alegre e mais jovem do que o rapaz de dezassete,
sendo já senhor da sua vida.
Para além desta aparência, deste disfarce,
nada mais tenho a dizer-te.
Sou avarento, o pouco que possuo
está bem fechado neste meu coração diabólico.
E os dois palmos de pele entre a face e o queixo,
por baixo da boca torcida de tanto sorrir
de timidez, e o olhar que perdeu
a sua doçura, como um figo que azedou,
parecer-te-iam o retrato
fiel dessa maturidade que te faz sofrer,
uma maturidade não fraterna. De que pode servir-te
alguém da tua idade - mas entristecido
na magreza que lhe devora a carne?
O que ele deu, está dado, o resto
é árida piedade.




pier paolo pasolini
poemas
de «poesia in forma di rosa»
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



10 fevereiro 2013

erich fried / na capital




"Quem manda aqui?"
perguntei
Responderam:
"O povo, é claro"

Eu disse:
"É claro, o povo
mas quem
manda de facto?"




erich fried
(áustria, 1921-1988)
tradução de m. f. quintão portela




09 fevereiro 2013

alberto caeiro / a água chia no púcaro…


  

A água chia no púcaro que elevo à boca.
«É um som fresco» diz-me quem me dá a bebê-la.
Sorrio. O som é só um som de chiar.
Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta.




alberto caeiro
poemas inconjuntos