(...)
Não, do que eu gostava era do
budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras
instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em
sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma
chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que
odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma
e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde
foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com
as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por
diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes
proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de
bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este
aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais
veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse
precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo,
dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à
reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a
que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava
à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o
matava nunca.
Sentia a necessidade de me
libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima
de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a
esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento.
Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo
a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios
deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos
deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem
para zero.
edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
dom quixote
1996