04 dezembro 2012

ângelo de lima / eu ontem vi-te...


  
Eu ontem vi-te...
Andava a luz
Do teu olhar,
Que me seduz
A divagar
Em torno a mim.
E então pedi-te,
Não que me olhasses,
Mas que afastasses,
Um poucochinho,
Do meu caminho,
Um tal fulgor
De medo, amor,
Que me cegasse,
Me deslumbrasse,
Fulgor assim.



ângelo de lima
poesias completas
editorial inova
1971


03 dezembro 2012

ezra pound / portrait d' une femme


  

O teu espírito e tu são o nosso mar dos Sargaços,
Londres passou rápida por ti durante todo este tempo
E barcos brilhantes deixaram-te isto ou aquilo em paga:
Ideias, velhos mexericos, restos banias de tudo,
Estranhos mastros de sabedoria e baças mercadorias de valor.
Grandes espíritos te procuraram - à falta de outrem.
Sempre ficaste em segundo lugar. Trágico?
Não. Preferias isso ao costumeiro:
Um só homem insípido, babado e embotante,
Um espírito mediano, com um pensamento a menos cada ano.
Oh, tu és paciente, tenho-te visto sentada
Durante horas, onde algo poderia ter vindo à superfície,
E agora pagas. Sim, pagas muito bem.
Tu és uma pessoa com algum interesse, quem te procura
Retira um estranho lucro:
Troféus recuperados do mar; uma qualquer sugestão curiosa;
Factos que a nada conduzem; e uma história ou duas,
Prenhes de mandrágoras ou de qualquer outra coisa
Que podia vir a ser útil, e, contudo, nunca o é,
Que nunca se arruma a um canto nem mostra utilidade,
Nem vê chegar a sua hora no tear dos dias.
Antigas coisas sem brilho, vistosas, admiráveis;
Ídolos e âmbar pardo e raros embutidos,
São estes os teus bens, a tua grande riqueza; e contudo,
Apesar de todo este tesouro marinho de objectos caducos,
Estranhas madeiras meio molhadas e novas bugigangas mais
                                                                               [ berrantes,
No lento boiar de diferente profundidade e luz,
Não! Não há nada! No conjunto de tudo,
Nada que seja propriamente teu.
                 Contudo, isto és tu.





ezra pound
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d'água
1993



02 dezembro 2012

fernando luís sampaio / ao entrar no bar



Deixa a tua mão renascer na curva
Da paisagem, nos alicerces desertos
Da paixão ─ como as longas cartas que escrevias ─ ,

Deixa que os lábios sobrevoem
As palavras incapazes de alegia
─  que me calaste no auge do beijo ─ ,

Deixa, por uma vez, que tudo flua
Como o fogo na minha mão
E se escoe pelos corações mais queimados
Pela vida.

Deixa, numa manhã assim,
Sem razão aparente e aparada
Nas pontas que a tua mão
Corrija a órbita desta paisagem

Que pronuncia a indecifrável
Respiração da morte.




fernando luís sampaio
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2912




01 dezembro 2012

ângela canez / suspendamos um pouco a alma




Suspendamos um pouco a alma
     à semelhança de um objecto pesado e enorme

     Aonde chega a matéria severa
     forja um bem aparente
     dá forma a um signo artificial
     Os elementos primários criam o cheiro da ameixa no susto mole
          — cera nos punhos rotos
     jugo da fome perseguindo a fortuna
     assistindo ao seu declínio
     o visível sustém-se pela seiva
     vespertina, o visível abomina o jejum
     persiste como um insulto indigno
     Algures um sentido repousa
     mais fundo, permanece até que o tempo finde
     — Aquela criança desagregada
     não cabe à mesa
     não se segura sozinha raiada de espuma
     porque aplaude o gesto póstumo o gesto
     que se esboça antes das próprias mãos

     Desse seu costume informe de arrastar
     um destino interdito, à margem do que
     é normal e é homem

          — Assistimos ao riso crescente daqueles
          para quem a criança está para além
          um ser nulo, fragmentário


     O jugo da busca não é vão
            inanimal apenas



ângela canez
oficina de poesia
nr. 3 Junho 2004
coimbra



30 novembro 2012

alberto caeiro / estou louco




Estou louco, é evidente!
Mas que louco é que estou?
É por ser mais sonhador
que gente que sou louco?
Ou é por ter mais completa
a noção de ser pouco?



alberto caeiro


29 novembro 2012

juan ramón jiménez / universo




Teu corpo: ciúmes do céu.
Minhalma: ciúmes do mar.
(Pensa minhalma outro céu.
Teu corpo sonha outro mar.)



 juan ramón jimenéz



28 novembro 2012

casimiro de brito / finis




Se antes de abrir a boca
Já está tudo dito
Deverei abrir a boca?


Enredar-me nas águas
Se o mar consome as areias por toda a parte?


Levantar-me alucinado
Se as nuvens apagam o fogo
Mais cedo ou mais tarde?


Se não há nada para dizer
Onde se acumulam as palavras
Que não foram ditas?



casimiro de brito
poesia do mundo
afrontamento
1995


27 novembro 2012

antonio gamoneda / um bosque abre-se…


  

Um bosque abre-se na memória e o cheiro a resina é útil
ao meu coração. Vi as esferas do suor e os
insectos na doçura;


depois, o crepúsculo em seus olhos;


mais tarde, o cardo a ferver perante o centeio e a fadiga
dos pássaros perseguidos pela luz



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999


26 novembro 2012

fernando pessoa / já não me importo




Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.



fernando pessoa


25 novembro 2012

josé tolentino mendonça / quatro tiros no coração





Certas manhãs chegava
esmagado pela luz
longo, frívolo, ofensivo
qualquer gesto aludia
a uma espécie de tremor
a tristeza daqueles que não pertencem
a lugar algum

vivia tudo num instante
a solidão, os rancores
as alegrias dos outros
o silêncio do Outono

nunca o amor tocara o seu corpo
com a intensidade do medo
tornou-se parte de um rito
nem perto, nem longe
da palavra justa

ele só pedia
«não me digam nada»




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



24 novembro 2012

antónio barbedo / alexitimia




A dor cessa pelas quatro da manhã.
Acorda mais tarde com
vómitos, borras de café. Em maca,
num quarto diferente. O sangue AB negativo.
Agulha descartável, máscara
de oxigénio. A luz de presença

torna legível – uma existência sem
afectos, a poesia sem  metáforas



antónio barbedo  
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003




23 novembro 2012

fernando alves dos santos / ode



Levantar um homem dum túmulo desprezado;
deixá-lo à minha imagem
tocar no ventre das estátuas
justificando para sempre a queda mitológica das cidades.
Procurar coisa tão pouca
como a minha invenção deserta e ágil
num cigarro de acaso a própria manhã
que entre os dedos levo à minha boca.
Deixar que doa uma gota do meu sangue
e correr
correr
até que os pulsos me rebentem;
tiritar de silêncio
ter raízes que ultrapassem os regaços das mães
fazer de novo a morte no seio das montanhas abertas
e beijar na própria epiderme
a nossa lucidez amatória de universo.




fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998

22 novembro 2012

antónio franco alexandre / agora estou na beira do penhasco...


  
8

agora estou na beira do penhasco e não vou voar
como o sublime bicho estratosférico brilhante
de plumas esmeraldas tentativos braços
apenas eu baço de nenhuma asa debruçado
sobre o vidro de água e em baixo
os corredores, dispostos à partida
em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido

de improváveis azagaias) exclama: é esta
a fonte do trovão!, e aponta
um buraco azul mudo nas paredes da pedra. por fora
de mim regresso ao som silencioso da cidade
onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário
e as patas dos homens pousam na larga secretária
e ficam, em relevo, caminhando no sangue, e eu queria
para ti, uma cidade sem mistério,

o gelo transparente onde mergulha a imagem
dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso
das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados
pela luz, que é uma areia movediça,
este saber de nós sem ócio e sem negócio, iguais
às portas do trovão, onde o mais sábio
se lança nu compacto deus do fogo e ri




antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996