18 novembro 2012

guillevic / subúrbio


  

A custo de pé se mantêm os muros
Ao longo desta rua
Íngreme, cheia de curvas.

Dir-se-ia que vieram todos, os do bairro,
Enxugar as mãos gordurosas no rebordo das janelas,
Antes de em conjunto penetrarem na festa
Onde parecia cumprir-se o seu destino.

Vê-se um comboio a arrastar-se por cima da rua,
Vêem-se luzes a acender-se,
Vêem-se quartos sem espaço.

Por vezes uma criança chora
Na direcção do futuro.



guillevic
faubourg, terraqué (1942)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



17 novembro 2012

alexandre o´neill / ao rosto vulgar dos dias




Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.

Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.

Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

*

Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente.
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

*

Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.




alexandre o'neill
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



16 novembro 2012

gil t. sousa / nirvana


  

9

segue
o sujo marfim
das horas


e chegarás
à loucura dos
santos



gil t. sousa
água forte
2005 





15 novembro 2012

miguel serras pereira / sobre as ervas



Vem sobre as ervas do silêncio
E desperta a tua mão
─  É apenas o espaço sem dedos entre os dedos
de outra mão ausente

na tua mão de silêncio sobre as ervas
no espaço sem mão entre os teus dedos.



miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993



13 novembro 2012

mário cesariny / movimento


  

movimento de alma
silêncio, emoção
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu leia?

para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença

não há outro sim
que não tem dizer
e é mais movimento?
qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo




mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981


12 novembro 2012

herberto helder / ciclo II




  Não sei como dizer-te que minha voz te procura
  e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
  esplêndida e casta.

  Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
  se enchem de um brilho precioso
  e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
  iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
  pelo pressentir de um tempo distante,
  e na terra crescida os homens entoam a vindima
  - eu não sei como dizer-te que cem ideias,
  dentro de mim, te procuram.

  Quando as folhas de melancolia arrefecem com astros
  ao lado do espaço
  e o coração é uma semente inventada
  em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
  tu arrebatas os caminhos da minha solidão
  como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.

  - E então não sei o que dizer
  junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
  Quando as crianças acordam nas luas espantadas
  que às vezes se despenham no meio do tempo
  - não sei como dizer-te que a pureza,
  dentro de mim, te procura.

  Durante a primavera inteira aprendo
  os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
  correr do espaço -
  e penso que vou dizer algo cheio de razão,
  mas quando a sombra cai da curva sôfrega
  dos meus lábios, sinto que me falta
  um girassol, uma pedra, uma ave -  qualquer
  coisa extraordinária.

  Porque não sei como dizer-te sem milagres
  Que dentro de mim é o sol, o fruto,
  a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
  o amor,

  que te procuram.



 
herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



11 novembro 2012

yorgos seferis / fuga




Não foi outro o nosso amor
fugia tornava a voltar e trazia-nos
uma pálpebra descida muito longínqua
um sorriso
marmóreo, perdido
dentro da erva matutina
uma concha bizarra explicá-la
procurava insistentemente nossa alma.

O nosso amor não foi outro tenteava
quietamente entre as coisas em redor de nós
para explicar porque não queremos morrer
com tanta paixão.

E se nos agarrámos a quadris e se abraçámos
outras nucas com toda a nossa força
e se unimos o nosso hálito com o hálito
dessa pessoa
e se fechámos os nossos olhos, não foi outro
apenas este anseio mais profundo de nos agarrarmos
dentro da fuga.   



yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




10 novembro 2012

valter hugo mãe / ainda pensamos no amor




ainda pensamos no amor
quase só atiçando no
corpo uma loucura pelo
seu próprio
coração

  

valter hugo mãe
a cobrição das filhas
quasi
2001




09 novembro 2012

sylvia plath / medusa





Longe nesta língua de terra de crateras pedregosas,
Olhos revolvidos por paus brancos,
Ouvidos que absorvem as incoerências do mar,
Albergas a tua cabeça sem vida ─ bola de Deus,
Lente de misericórdias,

Os teus parasitas
Fortalecem as suas células descontroladas à sombra da minha
     quilha,
Forçando-me como fazem os corações,
Estigma vermelho mesmo no centro,
Cavalgam na maré agitada até ao ponto mais próximo da partida,

Arrastando os seus cabelos de Jesus,
Será que escapei, pergunto-me.
O meu pensamento vai no vento ter contigo
Meu velho cordão umbilical cheio de lapas, cabo do Atlântico,
Que parece manter-se em miraculoso estado remendado.

Em qualquer caso está sempre lá,
A trémula respiração no fim da linha,
Curva de água crescendo
Diante da minha vara de água, deslumbrante e grata,
Tocando e sorvendo.

Não te chamei.
Não te chamei mesmo.
Todavia, todavia
Tu navegaste até mim por sobre o mar
Gorda e vermelha, placenta

Inibindo a excitação dos amantes.
Brilho de cobra de capelo
Retirando a respiração às campainhas do sangue
Da fúchsia. Eu não podia tomar alento,
Morta e sem dinheiro,

Demasiadamente exposta, como numa radiografia.
Quem pensas que és?
A hóstia da comunhão? A Maria chorona?
Não vou aceitar nenhum bocado do teu corpo,
Garrafa onde vivo,

Sinistro Vaticano.
Estou farta de sal quente.
Vedes como eunucos, os teus desejos
Silvam nos meus pecados.
Fora, fora, tentáculos de enguia!

Não há nada entre nós.
  


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996


08 novembro 2012

mário-henrique leiria / ida sem volta




Acordar na cidade logo da manhã
e esperar a noite com exactidão
no encontrar do último comboio
que parte conciso para outro dia
sair na estação que é central
de outra cidade já a anoitecer
onde talvez seja o lugar habitual
do vendedor ambulante das sortes
quase grandes
no caminho designadamente antecipado
pelo voo dos pássaros migradores
que agora mesmo se vão de partida
para outra cidade de amanhecer definitivo
e depois da viagem sempre conhecida
da porta em porta na cidade
adormecer ao aviso da madrugada
e esperar o sinal propício indicado
pelo caminho persistente dos peixes
a subir o rio exaustivamente nele
acordar na noite da noite na cidade
até chegar o momento muito matinal
de partir no primeiro comboio efectivo
da manhã de outra cidade a entardecer



mário-henrique leiria
contos do gin tonic
editorial estampa
1973



07 novembro 2012

ana luísa amaral / comunicações


  

Entra por essa porta e vem sentar-te
aqui, como daquela vez em que te disse:
os vulcões são pirâmides de luz,
ou campos cheios de sol iluminado.

Terás morrido, sim, e tanto faz
se a sério, se a fingir, os outros o dirão.
Quanto a mim, és fenómeno de gelo
resistente a calor e primavera.

Entra então neste dia, que o sol
resiste ao brilho mais do que neste mês
lhe resistiu, e eu preciso de luz,
não se vê bem agora, é muito tarde,
as luzes nesta sala são baixas e cruéis.

Toma, uma cadeira boa (como a chama
que chega sinuosa): as formas são castanhas,
em perfeita esquadria, e as costas mais direitas
que um icebergue azul na vertical.

Talvez te diga: pirâmides de luz,
estes vulcões. Ou não.
Se eu não estiver, ou não estiveres em casa,
deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua ─




ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011




06 novembro 2012

tamara kamenzain / freud




“Sigo para a luz”
dizia-me em sonho meu pai morto.
Seu sorriso se esfumava em dupla lonjura,
trazia no entanto uma tranquilidade luminosa:
havia uma mensagem literal
enunciado claríssimo onde a luz é a luz é a luz é a luz
e aonde ir é desdobrar-se em eco
como só um pai sabe fazer
envolve a alma em branco estende uma fronha
e apoia  dos filhos em branco a cabeça
aí escreve premonições futuras
um destino de grandeza uma via régia
que ele firma e confirma como um médico
deixando-nos numa cura formidável
sua desaparição.



tamara kamenzain
o gueto
trad. carlito azevedo e paloma vidal
livros cotovia
2003



05 novembro 2012

al berto / filhos de rimbaud




I

Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos,
recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular
por dentro deste silêncio de água e de estrelas.

A noite está próxima.

Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.

Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon,
com suas traições... ouço hélices de barcos,
motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.

A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade,
com um sussurro cortante nos lábios.
E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes
que ligam uma treva a outra treva.

Caminho como sempre caminhei, dentro de mim
─ rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.

O absinto... esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros.
E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar regressar
ao porto - mas os portos são olhos enormes
que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.

A noite está próxima.

Vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.

Sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas
cidades queimadas, desertas... e o vento... o vento cintila
onde cresce o lobo que me ronda o sono.

Estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.
De nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras,
de nada me serviria saber a geometria exacta dos
cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.

Fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas.
O regresso nunca foi possível. - O verdadeiro fugitivo não regressa,
não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais.
Aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando
o tormentoso destino dos homens.

Pressinto uma sombra, a envolver-me. Ouço músicas...
espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
E acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado,
e renego a alegria.

Não semearei o meu desgosto, por onde passar.
Nem as minhas traições.



al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997