24 abril 2012
23 abril 2012
josé emílio pacheco / alta traição
Não amo a minha pátria.
O seu fulgor abstracto
não se deixa agarrar.
Mas (ainda que soe mal)
daria a vida
por dez lugares seus,
certa gente,
portos, bosques, desertos, fortalezas,
uma cidade desfeita, cinzenta, monstruosa,
várias figuras da sua história,
montanhas
- e três ou quatro rios.
josé emílio pacheco
tarde o temprano (poemas 1958-2000)
fondo de cultura económica
edição de ana clavel, 3ª edição
picacho-ajusco
2004
(versão de luís filipe parrado
22 abril 2012
benjamin péret / a desonra dos poetas
[…] O poeta luta contra toda a espécie de opressão:
em primeiro lugar a do homem pelo homem e a opressão do seu pensamento pelos
dogmas religiosos, filosóficos ou sociais. Ele luta para que o homem atinja
definitivamente um conhecimento perfectível de si próprio e do Universo. Não se
conclua disto que o poeta deseja pôr a sua poesia ao serviço de uma acção
política, mesmo revolucionária. Mas a sua qualidade de poeta faz dele um
revolucionário que deve combater em todos os terrenos: no da poesia pelos meios
que a esta são idóneos e no terreno da acção social sem jamais confundir os
dois campos de acção, sob pena de estabelecer a confusão que importa dissipar
e, por conseguinte, de deixar de ser poeta, isto é, revolucionário.
benjamin péret
a desonra dos poetas
o surrealismo na poesia
portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
21 abril 2012
paula almada-negreiros / canção
Longe, muito longe onde as minhas mãos serão cúpulas para
[abrigar corujas
onde meus olhos asas de águia para abrir livros antigos
onde meus braços serão novas árvores daqui a
milhões de anos para uma nova floresta virgem
onde minha cabeça será o campanário duma igreja aldeã
antiquíssima para os homens do
centésimo vigésimo quinto
[século depois de mim
onde minha boca será a gruta do lado de fora da Terra
[do lado de dentro do mar
onde se esconderão traineiras navegadas por sereias
de meus braços algas do princípio do mundo
onde minha cama será o barco para navegar em toda a Terra
[cinzenta
com dunas que taparão árvores de deserto
onde num mundo em que EU se diz ALFABETO NÚMERO
asteróide com um número
incapaz de se ler
paula almada-negreiros
ângulo poente
o surrealismo na poesia
portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
20 abril 2012
gil t. sousa / não saber
50
todas as
noites não saber
em que hora
parar
em que
degrau de sombra
largar o
recado para o nada
que nos
queima
as mãos
gil t. sousa
falso lugar
2004
19 abril 2012
dórdio guimarães / guerra e civilização
II
revolver o sangue até a língua ser revólver
revirar os olhos com endereço revoltar a lua
revelar em fotograma ao retardador o céu
rodopiar em árvore um réquiem solar
revoar em ave a rápice aventura
revolver o universo no rito de morrer
redigo refazer reunir recomeçar
(remorso foi não amar de mais) repercutir
ah grande organista é a flor
dórdio guimarães
a idade dos lilases
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
18 abril 2012
eugénio de andrade / somos folhas breves onde dormem
Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
17 abril 2012
hermes trismegisto / tabula smaragdina
Isto é a realidade não falseada mas certa e verdadeira.
O que está em cima é igual ao que está em baixo e o
que está em baixo é igual ao que está em cima para
realizar os milagres de uma coisa.
E da mesma forma que todas as coisas estavam sujeitas
à contemplação de uma, assim todas as coisas, por um
simples acto de contemplação, apareceram daquela.
O pai disto é o Sol. A mãe, a Lua. O vento transpor-
tou-a nas suas entranhas e a Terra foi a ama dedicada.
E a causa de todos os maravilhosos trabalhos espalha-
dos pelo mundo.
O seu poder é perfeito.
Se se entregar à terra, separará o elemento da terra do
fogo, o subtil do grosseiro.
Com grande sagacidade proporciona uma subida agra─
dável da terra para o céu.
Novamente proporciona a descida à terra e reúne em
si a força das coisas superiores e inferiores.
Assim, possuirás a glória do
esplendor de todo o mundo
e toda a obscuridade fugirá de ti.
Assim, intensamente se robustece toda a fortaleza. Com
ela dominarás tudo o que é subtil e penetrarás em toda
a substância sólida.
Assim se criou este mundo.
Tal é a maneira de conseguir maravilhosas adaptações.
Por esta razão me chamam Hermes Trismegistus, porque
possuo três partes da sabedoria do mundo.
Assim se completa tudo o que tinha a dizer sobre a
operação do Sol.
hermes trismegisto
tabula smaragdina
16 abril 2012
fernando grade / aqui no planeta encontrado
Aqui no planeta encontrado todos sabem tudo sobre
nós
e as raparigas tremendo de cio e de outras coisas
mais
pedem-me poesia e bravas rosas bravas bravíssimas
Pouco se fala de electrões e de bombas
─ não vale a pena falar de coisas que incomodam as
pessoas
Aqui as raparigas distribuem sorrisos pelas ruas
e há uma ternura especial nos seus olhos quando
falam no amor
Dói o corpo e o sexo por não ter trazido coisas da
Terra
Vim nu sem abraços navalhas ou mordeduras de pulga
Apenas trago dois versos do meu amigo Jorge
─ poeta anónimo que morreu sem ninguém dar por isso
Mas os versos do Jorge cabem dentro de um bolso
e a poesia não pode caber dentro de nada
Aqui no planeta todos sabem tudo sobre nós
mas há sempre quem pergunte que forma geométrica
tem
[a fome terrestre
a fome espanhola portuguesa ultramarina
querem saber se Lisboa ainda é uma cidade de dez
mil
[coitadinhos
e se a mesa de pé-de-galo serve para abrir caminho
na literatura
Há pouco uma criança castanha chegou-se a mim e
disse:
─ Fernando como foi aquilo em Nagasáqui?
E vem gente de muitas bandas oferecer-me cogumelos
e calor de seios e tranças vermelhas
bacteriologicamente puras
[e vermelhas
Aqui todos os cogumelos são objectos turísticos
pois nunca mataram ninguém
Agora mesmo acabo de ser beijado por uma moça
Aqui qualquer pessoa pode beijar outra
mesmo sem a conhecer
É preso quem não tiver estômago para entrar neste
ritual
há uma multidão de impotentes pelas ruas
beijando as virgens e as mulheres parideiras
Já me perguntaram que satisfação moral existe
em fazer filhos no Sena
fernando grade
desintegracionismo
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
14 abril 2012
carlos drummond de andrade / amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
carlos drummond de andrade
claro enigma
ed. record
1996
13 abril 2012
josé blanc de portugal / homenagem ao conde drácula ou a lua dos mortos
Velhos estão os dias; cheios
De caras rasgadas ‘inda servidoras…
Transbordam dos olhos, meios-
-Cheios de crescentes, mouras
Luas servidores de brancos altares
A deuses da noite, mortos
Nos dias solares e vivos quando
Sobe nos ares para os seus portos,
Argênteo, o disco de seu astro pertinente
E brilha a palidez escaldante, a luz dormente,
De seus rostos-jaspe de sangue vazios…
Das mortalhas-mantas pendem nastros
Iguais às cores das bocas f´ridas e dos olhos turvos,
Iguais às das bandeiras de seus grandes navios
Estivando a carga, sempre igual,
P´r´o céu dos mortos onde seu planeta
Outras luas vê e outros deuses
A boiarem nas ondas da mareta
Da esteira silente dos adeuses…
Velhos estão os dias; cheios
De caras rasgadas, ‘inda servidoras…
josé blanc de portugal
odes pedestres
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
12 abril 2012
tiago nené / a criança de neandertal
uma rua por baixo dos cabelos
onde coloco os pulmões ruivos dos dedos;
com o deus das unhas acedo
ao olhar submarino que deixaste à porta;
a infância tem as persianas p'ra cima,
os teus nervos estão poligâmicos,
e assim proibidos;
e desço com os dedos respirando
o ar dessa rua de colecção,
sem uma única parede embriagada,
ou um amor cubista;
estarias a cem mil anos de mim, criança
de neandertal, inconsciente ao meu
sábado; mas aqui estás tu, dormindo
na minha revista científica, sobre a qual os
pulmões dos meus dedos te escutam
a rua que me aparece nas ruínas
da minha solidão;
tiago nené
relevo móbil num coração de tempo
lua de marfim
2012
11 abril 2012
raul de carvalho / para um novo livro de cesário verde
ao Sebastião Fonseca
Eles tomam cerveja, ambrosia, licores,
oleosos, sagrados como discos lunares.
Do azul da gravata ou da fímbria das ondas
retiram pensamentos ociosos e puros.
Recolhem-se de noite às oliveiras mansas
duma infância passada em louco desafio.
Ou então, nos portais, em amoroso convívio,
fingem que já não temem a noite nem o frio.
Já não têm família e mastigam, sozinhos,
um jovial jantar, colorido e minúsculo,
que haviam de comer, num domingo qualquer,
entre amigos cantando, entre mulheres amando.
Têm as caudas leves e subtis dum peixe,
têm um planeta adormecido e exangue,
têm os olhos líquidos, de asfódelo ou de cobre,
esses seres mitológicos que asfixiam a Terra.
São eles que caminham, irreais e aos tombos,
pondo nódoas de espanto por cima dos telhados.
Eles é que me deram o título deste poema:
A Cidade Está Cheia de Homens Assassinados.
raul de carvalho
o surrealismo na poesia portuguesa
organização de natália correia
frenesi
2002
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