13 dezembro 2010

josé miguel silva / piazza della signoria






Ora, pobres sempre houve, senhor.
E todos sabemos, foi assim ordenado,
que não há mal que não venha por bem.
Muito mesquinhos seríamos nós,
muito egoístas, se não nos alegrasse
que do nosso suor tenha nascido a arte
de gastar dinheiro, para que dentro
de cem ou mil anos também os nossos
descendentes possam ter o direito de
cagar sentados, ouvir música de câmara
ou sair do dentista com um sorriso
nos dentes. Se valeu a pena o sacrifício?
Isso nem se pergunta. Pessoalmente,
só lamento não ter podido dar mais
do que uma vida, mas era a única que tinha,
e morro, por isso, de consciência tranquila.




















josé miguel silva
erros individuais
relógio d´água
2010






09 dezembro 2010

eduardo moga / onde dormem os trovões?





[…]

Onde dormem os trovões? Onde estão
as chamas que bebemos? Onde foram
as crianças despojadas das suas têmporas,
as ânforas sem vísceras, as serpentes
de olhos como fuzis, as dulcíssimas
úlceras? Por que não encontra nunca a água
o seu limite? Por que é descontínua
a rocha, por que existe só a rajadas,
a dentadas, quando antes percorria
o vasto labirinto da pulsação?
Nada escapa à fuga: nem os dedos,
que tão longe estão das esferas;
nem a mãe, que esquece o seu baptismo;
nem os lábios, fincados no inerte;
nem o vento, demolido. Quando morri?
Por que se oxidou o mar? Para onde foram
as leis, as sementes, as retinas
construídas com mãos e sondas?
A razão não perdura. Os irmãos
não nascem. Dissolve-se a unidade
do amor, reúnem-se os seus vazios,
desmoronam-se, intactos, os seus jardins.

[…]






eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






06 dezembro 2010

mário cesariny / julião os amadores






Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos
fechados a passagem do vento
dizia eu dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os
palácios rasos de água
no escuro no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos,
deitados, sem dizer palavra, morremos de ter-nos
conhecido tanto
e depois? e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a
pedra de um sonho
mas os salões? e a casa?
e o cão que nos seguia?


o teu rosto meu rosto
este homem alto
o Sol






mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981







02 dezembro 2010

margarida vale de gato / a auto-estima de uma corça sozinha num bar







Um olhar arisco talvez não seja metáfora
um olhar melindrado
os cascos de unhas tratadas
tamborilando nos amendoins
diante de uma bebida branca
atrair sem chamar as atenções
agir com singularidade — o cigarro
que já aprendeu a enrolar —
afectar desinteresse sem descurar possível contágio,
a isso chamam os homens mistério.

Pensar na casa vazia como se de sobriedade se tratasse
não pensar sequer na casa vazia
nem nos corpos que lá subiram
troféus que não cumpriram elementar função
de brilhar no espaço
quando para o ocupar bastam gatos
extensos de tédio.

Oscilar levemente os ombros à música saturada
descontracção
os ombros bem torneados
moldura do impecável colo
ombros ebúrneos pescoço esguio
queixo bicudo nariz inflexível boca madura
ossos do esterno rigorosos
olhos levemente abstraídos por matizes de álcool
relaxar inclinar flutuar com cabelos não perder a cabeça
acenar ao sorriso dos lábios da mesa fronteira
o significado do sorriso — convite curiosidade
escárnio compaixão bebedeira
alerta! vulnerabilidade máxima, não sorrir
olhar fixamente para o cartaz da loira
que tem as saias arregaçadas pelo vento:
Uma mulher numa casa vazia contaminada de barbitúricos
o telefone sempre sem descanso a imagem de estar só
o corpo de desejo o desleixo no sofá seminu.

Esvaziada mente
mandar vir outra de espfrito mais forte
convir à discrição ouvir a música fluir ser grácil
o detentor do sorriso adianta-se a chamar o empregado
— avidezes bailando sedutoras —
alguma coisa humedece ao som dos lábios untuosos
pois sim outro gim — mãos imperceptivelmente crispadas
não ceder.
Resguardar-se.
Defender-se da luz para não chocar com as traças
não — para não se mostrar que se envelhece
titubeante
amparar disparo com desdém.





margarida vale de gato
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010







30 novembro 2010

rui cóias / despede-se de outra vida






2.



Despede-se de outra vida, de uma terra já vergada,
quem regressa com a chave do inverno marcada nos seus passos e,
nesta
hora, renuncia ao próprio alento.
Porque esta é mesmo a sua morte. Quando
a paisagem traz a vida para mais alto, a vida em que se move o
devir do tempo
que assim serve os seus próprios fins
quando os jacintos empalidecem nas longas escadarias
como coisas que se tocam, atingidas.
Porque o inverno não se ouve, nem define,
mas sujeita o sangue a todas as histórias que terminam. Porque
o inverno não se lembra,
mas vê fulcros que expandem nas encostas, vê o fio de mel que viaja
na penumbra
de uma ponta da terra a toda a terra.
Porque o inverno não é o que parece. Mas é a bruma dos frutos
novos
e o orvalho em que o passado se efabula no presente
em plenos frios, com raízes entranhadas.
Porque esta é mesmo a sua morte; em tudo o que viu antes, que não
conhece fim,
em tudo o que se afasta a um passo do caminho
abandonado para sempre
no silêncio que quer aproximar-se, que não ouve mais do que silêncio.
Porque a morte regressa doutra vida – porque
sabe-o no sulco em que os passos, vendo atrás as clareiras,
pressentem o flagelo
em que o rosto, no intervalo delas,
é essa vida a chamar das áleas decrescentes,
a recuar em vistas mortais, em quilómetros, nessas vastidões.






rui cóias
cinco poemas
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010





29 novembro 2010

gil t. sousa / das viagens




28


regresso ao livro
que me declara sábio

que não me abandonem
os ventos
quando de novo navegar
o marítimo corpo
da ausência


é que me abro
à oração dos desertos
e sigo a minúcia dos milagres
até ao deslumbre
do que morre


(que torre é esta
que se atravessa na madrugada
e me serve o oculto canto
da paisagem que te esconde?)






gil t. sousa
falso lugar
2004




26 novembro 2010

ingeborg bachmann / o tempo aprazado






Vêm aí dias difíceis
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefecem ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.


Do outro lado enterra-se-te a amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.


Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães.
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros!


Vêm aí dias difíceis.






ingeborg bachmann
o tempo aprazado
(últimos poemas 1957-1967)
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992






24 novembro 2010

mário cesariny / a 10.000 metros de profundidade




II


A 10.000 metros de profundidade
o rosto deambulador
do soldado
que não quis morrer
grita o seu radioso segredo:

Abre as portas do teu coração
é tão fácil perder
o homem das águias
que nunca mudam

Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido








mário cesariny
pena capital
(estado segundo)
assírio & alvim
1982





23 novembro 2010

arsenii tarkovskii / cresce a névoa da vista – esse poder






Cresce a névoa da vista – esse poder,
Duas luras em diamante invisíveis;
Surdo pela tempestade de outrora
E o bafo da casa de meu pai;
Nós cegos numa trança de músculos
Como bois velhos no campo arado;
E na noite não brilham mais
As asas do meu dorso.





arsenii tarkovskii8 íconesversão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



22 novembro 2010

luis alberto de cuenca / abre todas as portas







Abre todas as portas: a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor, a que oculta o segredo insondável
da felicidade; a que te dá a vida
para sempre no gozo de uma visão sublime.
Abre todas as portas sem te mostrares curioso
nem ligar nada às manchas de sangue
que salpicam as paredes das habitações
proibidas, nem às jóias que revestem os tectos
e aos lábios que na sombra procuram os teus,
nem à palavra santa que espreita nas ombreiras.
Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, secando tuas lágrimas,
no extremo do mundo, no final do caminho,
a ouvir como assobiam as balas inimigas
em volta e como estão cantando os rouxinóis,
não duvides, irmão: abre todas as portas.
Embora não haja nada dentro.






luís alberto de cuenca
tradução de josé bento
canal revista de literatura nr.5
janeiro de 1999
palha de Abrantes







19 novembro 2010

louise glück / paisagem





2.


O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.





louise glück
paisagem
tradução de rui pires cabral
telhados de vidro
nr. 12 maio 2009
averno
2009







15 novembro 2010

carlos eurico da costa / de vermelho a morte






«o rosto anseia pelo canto»

juan barea, cantaor




I

Se vejo o meu ser compelido — gemo. E oro aum deus de coragem e destino. A terra oferece-me o que quero — o seu corpo, os seus rios, e tenho de encerrar o meu destino, aquele destino, empurrar o braço no gesto que o alcance, dizê-lo.
Rainha do céu, minha terra em ti me contenho, tu limitas-me, és um mundo, esfera que brilha no rosário, semente de consolação. Não me alonges, leva-me (chega-me) ao teu seio, deixa, deixa contaminar-te do meu suor, queria renegar mas volto de novo a habitar-te.

II
Que morte apetecida, que boca soluçante pela manhã. Flores a corolar a caveira de cristal e azul. Flores de laranja e metal. Garganta golpeada no canto. Leque de madeira rara e marfim flamejando na cabeça negra, branco, cinza.
O acto de dizer, de não querer a minha vergonha. Trago o meu destino — um sal que me consome — em invenções de mal, sentado no meu trono, despedaçando o reino.
Anavalhe-se o que sobra, em fenda alastrada pelos tecidos, cante-se com coragem e sangue contraindo a vocalidade, os destinos mais estranhos da nossa condição: o que nasce no corpo, o que amamenta a imaginação, célula cerebral, leite da terra — logo, um minério hoje descoberto, a aberração da memória. A morte.








carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973







12 novembro 2010

antónio ramos rosa / que cor ó telhados de miséria






Que cor ó telhados de miséria
onde nasci
de tanta pequenez de tão humildes ovos
de nenhum querer
a que horas nasceram as estrelas que
um dia foram
a que horas nasci?

Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijámos
nunca parti

Não sei que idade tenho






antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985