13 novembro 2009

edward t. hall / a arte como história da percepção





(…)

A maior parte dos pintores sabe que operam a partir de diversos níveis de abstracção; a sua produção depende inteiramente da vista, não podendo dirigir-se directamente aos outros sentidos. Um quadro jamais pode dar directamente o sabor ou o perfume de um fruto, o contacto ou a textura de uma carne, ou a nota que na voz do bebé faz romper o leite da mãe. No entanto, a linguagem, tal como a pintura, dá destes factos representações simbólicas, por vezes tão convincentes que suscitam reacções próximas das provocadas pelos estímulos originais. O artista é muito hábil e, se o espectador possuir a mesma cultura que ele, poderá, pelo seu lado, suprir o que falta no quadro. O escritor e o pintor sabem que o seu papel consiste em fornecer ao leitor, ao auditor ou ao espectador sinais cuja escolha é ditada pela respectiva pertinência não só em relação aos acontecimentos descritos, mas, sobretudo, em relação à linguagem implícita e à cultura do público. A tarefa do artista consiste em suprimir os obstáculos que se interpõem entre os acontecimentos que descreve e o seu público. Deste modo, extrai do mundo natural elementos que, convenientemente organizados, podem tomar o lugar da totalidade e constituir uma afirmação cuja coesão e cuja potência não se encontram ao alcance do profano. Noutros termos, uma das funções maiores do artista é auxiliar o profano a estruturar o seu universo cultural.
A história da arte é quase três vezes mais longa que a da escrita, e a relação entre os dois tipos de expressão surge nas primeiras formas de escrita, como os hieróglifos egípcios. Porém, são raros os que vêem na arte um sistema de comunicação cuja história se encontra ligada à da linguagem. A arte seria considerada de maneira completamente diferente se tal fosse o ponto de vista adoptado. O homem está habituado a admitir a existência de línguas que não compreende à primeira vista e que necessita de aprender; mas, pelo facto da arte ser essencialmente visual, espera em geral poder captar imediatamente a sua mensagem, irritando-se quando assim não acontece.

(…)




edward t. hall
a dimensão oculta
tradução de miguel serras pereira
relógio d´água
1986


10 novembro 2009

vicente valero / teoría solar





XXIX




(epitáfio)


Só, mas não morto, quase morto diríamos,
mas ainda ofegante, com as mãos inúteis
e o rosto azul. Vencido, mas ansioso. O mar
pôs palavras velhas nas minhas orações. Onda,
madrepérola, medusa, alcantil… Fui
o afogado mais duro de roer. Debaixo de água,
digno, ia cantando os poemas de Shelley.
E quando as gaivotas queriam devorar-me,
dava-lhes pão limpo de sonhos incompletos.
O mar era um deus lento, não me merecia.







vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






08 novembro 2009

pedro mexia / rotina






Este é o meu número:
telefonem-me.
Este é o sítio
onde passo as tardes:
encontrem-me.
Ou não me telefonem
nem me encontrem
mas pensem em mim
enquanto estiverem a viver.








pedro mexia
eliot e outras observações
gótica
2003







03 novembro 2009

david mourão-ferreira / equinócio






Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe








david mourão-ferreira
do tempo ao coração
guimarães editores
1966



01 novembro 2009

àlex susanna / natureza morta








Livros repousam sobre a mesa,
óculos, um caderno, um lápis:
os instrumentos do escritor que consumiu
o seu tempo a ler, a pensar, a escrever
tentando estruturar algum breve poema
onde entrar, repousar, retirar-se talvez
na ponta final de um dia atribulado...


Muito antes, erigiam-se templos
e até mesmo grandes catedrais:
hoje, quando a noite chega, contentamo-nos
com um abrigo, uma qualquer arcada
onde evitar esse excesso de intempérie
e enganar o frio que nos corrói os ossos.







àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves





29 outubro 2009

joan-ives Casanova / pelos passos na areia…







pelos passos na areia molhada ao fim do dia poder-se-ia pensar
que estou aqui, presente, mas parti por entre brisas fugidias
e estou junto às asas do anjo no azul assustador do mar,
do céu e das sombras; e o peso triste da carne parece-se com o espelho
quebrado dos gestos e das horas, a imagem da presença dos corpos,
uma mão, uma pálpebra, o desenho da pele e a voz escutada do tempo;
o ar do dia dilui-me com frequência no fumo dos limites
e entre duas vagas algodoadas, se parece que sou real, vereis,
entrelaçar-se na tristeza o olho do desejo e o da morte,
e eu estou algures entre dois azuis gémeos que vêm apagar a noite.



seja como for o leve vento de neve voltará de certeza
êxito estranho do avesso dos dias; um anjo pousou
a mão na mesa, à beira-mar, e a cortina
dança entre o azul e o branco, encantamento do ar,
e seja como for as mãos nuas das horas alisadas
não dizem quase nada, levadas pelo anjo triste de cabelos
de ouro, e sopro de pássaros; pousada, a mão parece-se
com a sombra do mar porque ainda aí vivem homens, asas cortadas,
no côncavo da palma do deus grego, a gota de orvalho
que o caminho cego dos dias nos deixou para estancar a sede








joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga







28 outubro 2009

per aage brandt / livro da noite










*

(Silêncio).


- Estás tão ausente.
- Também tu estás ausente.
- Diz-me porquê.
- Diz-me também tu porquê.
- Isso entristece-me tanto.
- E como pensas que me sinto.
- O mesmo te pergunto eu.
- És tu que me tornas ausente.
- Mas eu estou aqui.
- Eu também, deixa lá!


(Silêncio).


*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004

26 outubro 2009

glória gervitz / migrações (fragmentos)







Sou a que sempre fui. O inesperado de estar a ser
Chego ao lugar do início onde o começo
começa
Este é o tempo
É o tempo de despertar
A avó acende as velas sabáticas desde a sua morte
e olha-me
Estende-se o Sábado até nunca, até depois,
até antes
A minha avó que morreu de sonhos
mexe interminavelmente o sonho que a inventa
que eu invento. Uma criança louca olha-me de dentro.
Estou intacta.






glória gervitz
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga

25 outubro 2009

vladimir holan / fica







Fica comigo, não me deixes,
a minha vida é tão vazia
que só tu, orgulhosamente humilde, me podes ajudar
a não perguntar mais nada.

Fica comigo, não me deixes,
tem pena da minha impaciência
que, rabiscada no diário de bordo de um navio-prisão,
perdurará até à eternidade.

Fica comigo, não me deixes
não conheces a raiva e nem a tua raiva durará para sempre –
e para onde irias, como te sentirias
quando estivesses farta? Espera um pouco, espera,
espera pelo menos até
que o carteiro chegue com as cartas que só a ti pertencem.






vladimir holan
mirroring: selected poems of vladimir holan
tradução de miguel gonçalves
wesleyan university press
1985






22 outubro 2009

rené char / alívio









“Eu vagueava no ouro do vento,
declinando o refúgio das aldeias
onde o meu coração fora violentamente despedaçado.

Da dispersa torrente da vida estagnada extraíra eu o leal significado de Irene.

A beleza desfraldava-se
do seu fantasioso invólucro,
dava rosas às fontes."


A neve surpreendeu-o.
Ele debruçou-se sobre o rosto aniquilado,
bebeu dele a superstição em longos tragos.
Depois afastou-se,
movido pela perseverança daquele marulho,
daquela lã.







rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000









21 outubro 2009

joaquim pessoa / balada das onze e meia







Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.

Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.

Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.

Às Onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.

Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.

Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.

Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.

Às onze e meia da noite
os Ódios nunca estão fartos.

Às onze e meia da noite
a morte anda lá por fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.

Onze e meia. Está na hora.

No relógio ainda é cedo.

Os ponteiros não deslizam.

Às onze horas e meia
esperamos por amanhã.
Chega a noite para a ceia
com dois pezinhos de lã.

Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.

Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.

Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.

Não passa. Nunca mais passa.
Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!

São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.

Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.

Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.

Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.

Bateram as onze e meia.

Só faltam trinta minutos.

Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.

São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.

Fincar no flanco uma espora.

Cavalgar por meia hora.

Dar rédeas ao coração.

Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.

E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como um padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.

Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
às onze e meia matou-se.

Em ponto. São onze e meia.

Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.

Bem comidos e bebidos
não tardam a adormecer.

E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo o que sabia
para subir de ordenado.

Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas as putas que são putas.
Não as que têm a fama.

São onze e meia da noite.

Já só falta meia hora.

Apenas trinta minutos.

Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.

Quero ouvir cantar o fado.

Quero dar uma facada
no galo da consciência.

Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.

E enquanto são onze e meia
ainda dura a pancada
no bar da rua das pretas
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidade
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.

Feitos aqui e agora.

Quando falta meia hora
para acabar o passado.









joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982

15 outubro 2009

frank o´ hara / a um passo de distância







É a minha hora de almoço, vou pois
passear por entre os táxis pintados
de ruído. Primeiro, pelo passeio
onde trabalhadores alimentam os troncos
sujos brilhantes com sanduíches
e Coca-Cola, usando capacetes
amarelos. Acho que os protegem
da queda de tijolos. Depois pela
avenida em que saias rodopiam
nos calcanhares e levantam voo sobre
os gradeamentos. O sol queima, mas
os táxis agitam o ar. Observo
pechinchas em relógios de pulso. Há
gatos que brincam na serradura.
Para
Times Square, onde o anúncio
sopra fumo sobre a minha cabeça e no alto
a cascata jorra suavemente. Um
Negro numa portada com um
palito, mexe-se langorosamente.
Uma corisca loura faz soar um estalido: ele
sorri e esfrega o queixo. De súbito
tudo buzina: são 12:40 de
uma Quinta-feira.
Neon de dia é um
grande prazer, como Edwin Denby
escreveria, como são as lâmpadas eléctricas de dia.
Paro para um cheeseburger no JULIET'S
CORNER, Guilietta Masina, mulher de
Federico Fellini, è bell' atrice.
E chocolate com malte. Uma senhora que
em tal dia usa pele de raposa mete o cão d'água
dentro de um táxi.
Há vários Porto
Riquenhos na avenida hoje, o que
a torna bela e quente. Primeiro morreu
Bunny, depois John Latouche,
depois Jackson Pollock. A terra
está tão cheia deles, como a vida esteve?
Comeu-se e passeia-se,
passa-se pelas revistas com nus
e os cartazes de TOURADA e
a Manhattan Storage Warehouse,
que em breve demolirão. Antigamente
pensava que nela se exibia o
Armony Show.
um copo de sumo de papaia
e volto para o trabalho. O meu coração está no
meu bolso, é Poemas de Pierre Réverdy.










frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço

trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995