02 março 2009

josé tolentino mendonça / me and my brother








Percorria os lugares daquela fotografia
a muralha de silvas, a quinta reencontrada
os finais de ano
e aquilo que depois não está
onde antes existiu

Tinha esquecido para que serve
a infância
não é uma terra protectora
ao contrário do que dizem
com os seus céus que vemos cair
os fragmentos selvagens
em que mais tarde pensamos
vezes sem conta
o pudor já então reconhecível
que nos faz trair a vida
um pouco como tudo isto










josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006








28 fevereiro 2009

henri michaux / voltar





Hesitei em voltar a casa dos meus pais. Como é que eles fazem quando chove? pensei eu. Depois lembrei-me que havia um tecto no meu quarto. «Não importa!» e, desconfiado, não quis voltar.
É em vão que agora me chamam. Assobiam, assobiam na noite. Mas é em vão que utilizam o silêncio da noite para chegar até mim. É absolutamente em vão.







henri michaux
la nuit remue (1935)
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



26 fevereiro 2009

ezra pound / cathay















Poema junto à ponte em Ten-shin




Março chegou ao contraforte da ponte,
Sobre mil portões pendem ramos de pêssegos e de alperces,
Pela manhã há flores de cortar o coração,
E o anoitecer leva-as com as águas para leste.
Há pétalas nas águas já passadas e nas que passam,
E no retornar dos redemoinhos,
Mas os homens de hoje não são os homens de outros tempos,
Embora de modo igual se debrucem sobre a ponte.

A cor do mar move-se ao amanhecer
E os príncipes ainda estão em filas, junto ao trono,
E a lua cai sobre os portais de Sei-jõ-yõ,
E pega-se às paredes ao topo do portão.
Com capacetes cintilantes contra a nuvem e o sol
Os nobres saem da corte, para fronteiras distantes,
Montam cavalos que parecem dragões,
Cavalos com cabeçadas de metal amarelo,
E as ruas abrem alas para que passem.
Altiva a sua passagem,
Altivos os seus passos a caminho dos banquetes,
Dos grandes salões com comida esquisita,
Do ar perfumado e raparigas a dançar,
Das flautas límpidas e do cantar límpido;
Da dança dos setenta pares;
Das perseguições loucas pelos jardins.
A noite e o dia são dados ao prazer
Que eles pensam durará por mil Outonos,
Inesgotáveis Outonos.
Para eles os cães amarelos uivam presságios em vão,
E que são eles comparados com a senhora Ryokushu,
Que foi causa de ódio!
Quem entre eles é um homem como Han-Rei
Que partiu sozinho com a amante,
Ela de cabelo solto, e ele o seu próprio barqueiro!


(Rihaku)







ezra pound
cathay
tradução gualter cunha
relógio d´água
1995





22 fevereiro 2009

jürgen theobaldy / poema sobre o amor









Hoje de manhã, ao acordar,
pensei:
hoje, o amor vai assaltar-te
embora não soubesse como ele é
nem o que vale.

Eu acho que as coisas realmente grandes na história
(tanto na história UNIVERSAL
como na história pessoal
mas talvez eu esteja errado)
de modo nenhum são feitas por amor
ou em amor ou qualquer coisa assim;
eu acho que as coisas realmente grandes
se fazem por razões completamente diferentes.
Por exemplo, a SIEMENS não constrói por amor
uma barragem em Cabora Bassa, e também
uma revolução do amor não
levará a nada.
Claro que se pode tentar
mas eu não acredito nisso.

E tentei
explicar isto à mulher-do-meu-amor
(que acordou logo a seguir a mim
talvez eu a tenha acordado
ao erguer-me para olhar para o despertador
passava pouco das onze e era sábado)
e ela disse
que não fazia SENTIDO
eu estar AGORA a explicar-lhe isto
e eu dei-lhe razão
e
ela
deitou a mão à minha piça. Depois
fizemos amor até ao meio-dia-e-meia
sem que daí
resultasse
nada de verdadeiramente grande
digamos: pelo menos com metade da grandeza
dos esforços de Leviné em Munique em 1919.










jürgen theobaldy
(alemanha, n. 1944)
versão de joão barrento
lido aqui









18 fevereiro 2009

m. fernanda silva / essas mulheres









as mulheres que se deitam à noite
nos quartos levemente amarelecidos do fumo
dos cigarros
daqueles homens que as
frequentam
lhes exigem excitações inéditas
lhes gritam
lhes choram nos colos
e soluçam
desamparados
lhes atiram alguns euros
sobre os lençois encardidos
das camas murchas

as mulheres de todos os homens e mais
um
e menos um
que nem sonhos têm
pois morrem todos os dias
e noites
nas gélidas camas

essas mulheres são como sombras
translúcidas

não se recortam em nenhum
horizonte
em paisagem alguma

não desenham corações
nas janelas embaciadas
quando há inverno
não esperam os fulgores
dos ocasos
nos verões intermináveis

e só cheiram as flores dos
anúncios televisivos
dos outdoors convidativos
das revistas cor de rosa que
às vezes espreitam
nos quiosques superlotados
entre notícias
artes banais
economias em desastres
revistas informáticas
vídeos mais baratos
armadilhas de mexericos
de ridículas damas botoxadas
nas maçãs
dos rostos anciãos


as mulheres das noites paralelas
dos dias de sonos agitados
com filhos na berma das cidades
pais velhos em aldeias
quase extintas
elas também
permanentemente
extintas
corpos de almas esvoaçantes
buscam não sabem o quê
porque já nada sabem
excepto que lhes é proibido
ser mulheres









m.f.s.









15 fevereiro 2009

edgar lee masters / hod putt







Aqui jazo eu junto à campa
do velho Bill Piersol,
que enriqueceu no comércio com os índios e que
depois tirou proveito da Lei das Falências
para emergir mais rico que nunca.
Eu, cansado de trabalhos e miséria
ao ver o velho Bill, e outros, cada vez mais ricos,
ataquei certa noite um viajante, junto a Proctor’ Grove,
para o roubar, e matei-o sem querer,
pelo que me condenaram a morrer na forca.
Foi esta a minha maneira de declarar falência.
Nós os dois, que aproveitamos, cada um a seu modo, a lei das
falências,
dormimos agora em paz, lado a lado.









edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




11 fevereiro 2009

fernando lemos / as novas leis










Atrás de qualquer porta
está sempre o mar alto que me espreita
Ou então a capa em que o vento abate
a dúvida ou a suspeita

Linhas rectas seguem cidades
quebrando fazendo nós
quando um homem lança mão num estrado
de abelhas completamente sós

Criaram-se novas leis
novos modelos de calçado
Fotografias com cores
décors do patriarcado

Mas as facas de cortar fruta
que correm a praia de extremo a extremo
dançam em pontas sobre o pequeno
E as mães que já não sabem
fazer as suas contas
deitam-se ao mar pelo que vêem
e julgam-no sereno

Saem dos astros pés das ondas mãos
a taparem os rostos os medos
As fardas que andam nuas
sobram armas lugares amenos

O mundo não previa tanto
e esgotou-se a lotação
Vão pelos canos correndo pardais cegos
como convém à perseguição

Criaram-se novas leis
há pânico pelas nossas varandas
nascem entretanto árvores nuas
tantas
Mas os dentes ainda são de pedra
apesar da nova lei que os não respeita
Embora a máquina de fazer peças para novas peças
seja o mar alto que atrás da porta me espreita.







fernando lemos
teclado universal
morais
1963







09 fevereiro 2009

robert musil / o pensar



















(…)

Infelizmente, não há nada mais difícil em literatura do que descrever um homem a pensar. Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas: «pensando ininterruptamente nelas». E de facto bem pode dizer-se que as ideias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas, vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau; o mesmo acontece connosco, apenas com a diferença de que não fazemos tantas tentativas ao acaso, mas sabemos já, por experiência, mais ou menos como fazer as coisas. E se uma cabeça inteligente, como é óbvio, revela muito mais habilidade e experiência nas voltas que dá do que uma cabeça estúpida, o momento em que consegue passar não é para ela menos surpreendente; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa, em vez de esperarem pelo autor. A essa sensação desconcertante chamamos nós hoje em dia intuição, depois de, antes, outros lhe terem chamado inspiração, e julgamos ver nisso algo de suprapessoal; mas trata-se antes de qualquer coisa de impessoal, concretamente da afinidade e da coerência das próprias coisas que se encontram na nossa cabeça.

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se dará por ela. É por isso que o pensamento, enquanto estiver em movimento, é um estado deplorável, semelhante a uma cólica de todas as circunvoluções do cérebro; e quando chega ao fim já não tem a forma do processo de pensamento tal como o experienciamos, mas a da coisa já pensada, que, infelizmente, é uma forma impessoal, porque então o pensamento se volta para fora e está preparado para comunicar com o mundo. Quando uma pessoa pensa, torna-se por assim dizer impossível captar o momento entre o pessoal e o impessoal, e é certamente por isso que o pensar é um embaraço tão grande para os escritores que eles preferem evitá-lo.

(…)









robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008




04 fevereiro 2009

josé gomes ferreira











(Deve ler-se este poema depois de pôr a
tocar um disco dos anos trinta.)










E se o tecto abatesse de repente
e víssemos no céu
as nuvens, a lua e as estrelas?


Tudo sonho…


É impossível existir a lua
e aquele saxofone tocado por um preto
com dentes brancos a açucarar a música.










josé gomes ferreira
poezz
almedina
2004











01 fevereiro 2009

marin sorescu / o caracol







O caracol tapou bem os olhos
Com cera,
Meteu a cabeça no peito
E olha fixamente
Para dentro.

Em cima dele
A casca —
A sua obra perfeita
Que lhe mete nojo —

À volta da casca
O mundo,
O resto do mundo,
Disposto aqui e além
Segundo certas leis
Que lhe mete nojo —

E no centro deste
Nojo universal
Está ele —
O caracol,
De que sente nojo.









marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997








27 janeiro 2009

jude stéfan / envio









Eles passam através dos nossos anos
eles perscrutam o fundo dos poços
eles sabem que estão mortos
e vão contemplar o mar
eles exilam-se nos animais
prestam atenção às coisas
e fazem falar as pedras
do seu posto de vigia
eles descrevem as batalhas
e acusam o tempo
eles cantam a loucura
a sua ciência é inovar
eles usam a irrisão
eles sofrem solidão
eles criticam a morte
eles abreviam a sua vida
quando se esgotam as palavras
inclinam-se no ventre das mulheres
têm inveja das nuvens
que se dispersam
e não colhem as flores
convivem com as estações
e saboreiam cada mês
eles procuram o poema
e bebem o vinho novo
eles amam o olvido, a sombra
e estão longe dos amigos
percorrendo as rotas de sede
visitando as divindades
eles assombram outros lugares
e desenham a chuva,
mostrando a vaidade do bem
surpreendem-se, abandonam-se
abraçam a preguiça sobre as camas
afirmam em vez de dizerem
eles contemplam os ratos sob a lua
e naufragam na última manhã







jude stéfan
sud-express poesia francesa de hoje
trad. gastão cruz
relógio d' água
1993










22 janeiro 2009

ernesto sampaio / um texto poético








(…)

O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada
poro da aurora
Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma
Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim
dos tempos
E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o
mar das grandes lanças de água
É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem
véus de rios que começam a vida de gestos no crepúsculo
São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade
É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado
com que abres as pálpebras deixando sair os lagos da tua infância
e a luz louca da crisálida que nos gerou dissimulada em cada pedra
em cada cama onde morremos juntos

Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem
de ver nascer uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível
Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus
pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante
Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em
cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável
Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos
puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra
Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio
que esmaga e canta e ninguém deterá

Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num
sinal vermelho
Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da
porrada que nos deram no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu
Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias
minha jovem eterna de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas
meu grande ventre de movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de meteoros
meu sopro de todas as potências minhas costas de Mar e de Terra
minhas coxas de deboche minha mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos
minha flor de sangue de ferro de esperma minha destruição luminosa
minhas nádegas de noite e de loucura

MEU AMOR

Habito a lealdade dos presságios
Começo a ser um bom leito para o meu sangue

(…)








ernesto sampaio
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




19 janeiro 2009

konstandinos kavafis / velas







Temos à frente os dias do futuro
como uma fila de velas acesas –
quente e vivas e douradas velas.

Ficam atrás os dias passados,
fileira triste de velas sem chama:
ainda sobe fumo das que estão mais perto,
vergadas pelas frias que já se apagaram.

Eu não quero vê-las: tanto me entristece o seu ar de agora
como relembrar o fulgor antigo.
Olho à minha frente as velas acesas.

Não vou voltar-me nem vou ver num arrepio
como cresce tanto a fileira escura,
como é tão veloz o apagar das velas.






konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994