07 setembro 2008
john ashbery / eco tardio
sós com a nossa loucura e a flor preferida,
vemos que não há mais nada sobre que escrever.
ou antes, é preciso escrever sobre as mesmas coisas de sempre,
do mesmo modo, repetindo vezes sem conta as mesmas coisas,
para que o amor continue e a pouco e pouco vá mudando.
colmeias e formigas têm de ser eternamente reexaminadas
e a cor do dia aplicada
centenas de vezes e variada do verão para o inverno
para que o seu ritmo desça ao de uma autêntica
sarabanda e ela aí se feche sobre si mesma, viva e em paz.
só nessa altura a crónica desatenção
das nossas vidas nos poderá envolver, conciliadora
e com um olho posto naquelas longas opulentas sombras amareladas
que falam tão fundo para o nosso mal preparado conhecimento
de nós próprios, máquinas falantes dos nossos dias.
john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992.
03 setembro 2008
konstandinos kavafis / deus abandona antónio
Quando bruscamente, nas trevas da noite,
Ouvires passar o tropel invisível das vozes puras,
O coro celeste das sublimes harmonias,
Abandonado definitivamente pela fortuna,
Desfeitas em pó as últimas esperanças,
Esvaída em fumo uma vida de desejo.
Ah! não sucumbas lastimando um passado
Que te traiu, mas como um homem
Que se prepara há muito tempo,
Despede-te corajosa mente
De Alexandria que te abandona.
Não te deixes iludir e não digas
Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos,
Deixa as súplicas e os lamentos para os poltrões,
Abandona vãs esperanças.
E como um homem que se prepara há muito tempo,
Resignado, altivo, como te compete
E a uma cidade como esta,
Abre a janela e olha para a rua
E bebe a taça inteira da amargura
E a derradeira embriaguez da multidão mística
E despede-te de Alexandria que te abandona.
konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007
Ouvires passar o tropel invisível das vozes puras,
O coro celeste das sublimes harmonias,
Abandonado definitivamente pela fortuna,
Desfeitas em pó as últimas esperanças,
Esvaída em fumo uma vida de desejo.
Ah! não sucumbas lastimando um passado
Que te traiu, mas como um homem
Que se prepara há muito tempo,
Despede-te corajosa mente
De Alexandria que te abandona.
Não te deixes iludir e não digas
Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos,
Deixa as súplicas e os lamentos para os poltrões,
Abandona vãs esperanças.
E como um homem que se prepara há muito tempo,
Resignado, altivo, como te compete
E a uma cidade como esta,
Abre a janela e olha para a rua
E bebe a taça inteira da amargura
E a derradeira embriaguez da multidão mística
E despede-te de Alexandria que te abandona.
konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007
01 setembro 2008
29 agosto 2008
luís nunes / guardanapo
éramos nós
lagos desertos
de cabelos longos
saltando montanhas
quase nascemos
entre cores ruidosas
e paisagens de calendários
de oficinas de carros
em segunda mão
mas deixamos os corpos lá fora
quando nos deitamos na cama
de folhas verdes
tardes vestidas de perfume
que tínhamos desvendado
num olhar
mesmo que duas
crianças no mar
perdidos em castelos
sem pressa de fugir
ao encontro das marés
desafiávamos o sol
e já na vertigem
descíamos ruas
saltando muros
sempre pintados de branco
e nunca me falaste nele
digo isto agora que acordei
para a visão desse guardanapo
que tinha tido o cuidado
de arrumar no fundo de uma gaveta
onde se guardam as coisas
que não devem ser vistas
nem em dias de arrumações
luís nunes
controversosentidos
25 agosto 2008
álvaro de campos / o florir do encontro casual
O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos
O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida…
O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída…
As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem…
Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados…
Caminho sem fim…
fernando pessoapoesias de álvaro de campos
edições ática
1980
19 agosto 2008
kiki dimoulá / como quem escolhe
É sexta-feira hoje vou à praça do mercado
dar uma volta nos jardins decapitados
a ver o perfume dos orégãos
cativos nos molhos.
Vou ao meidia quando caem as cotações
encontra-se fácil o verde
entre feijões abóboras malvas e lírios.
Ouço ali com que coragem falam as árvores
com a língua cortada dos frutos
oradoras empilhadas as laranjas e as maçãs
e alguma convalescença começa a ganhar cor
nas faces amareladas
de uma mudez interior.
Raramente compro. É que nos dizem escolhe.
Isso é facilidade ou problema? Escolhemos e depois
como levantar o peso insustentável
que tem a nossa escolha?
Ao passo que aquele aconteceu, que pluma! No princípio.
É que depois as consequências põem-nos de rastos.
Também insustentáveis. No fundo é como quem escolhe.
Quando muito compro um pouco de terra. Não para flores.
Para me ir habituando.
Nisto não há escolha. Nisto, é de olhos fechados.
kiki dimoulá
grécia (n. 1931)
trad . de manuel resende
15 agosto 2008
henri michaux / ideogramas na china
(…)
De uma certa maneira semelhante à água, ao que ela tem de mais forte e de mais leve, de menos perceptível, como o são as rugas da sua ondulação, que sempre foram um tema de estudo na China.
Imagem do desprendimento: a água que não se apega a nada, sempre pronta a instantaneamente voltar a partir, água que, mesmo antes da chegada do budismo, falava ao coração do chinês. Água, vazia de forma.
Yi Tin, Yi Yiang, tche wei Tao
Um tempo Yin, um tempo Yang
Eis a via, eis o Tao.
Via para a escrita.
Ser calígrafo, como se é paisagista. Melhor. Na China, é o calígrafo que é o sal da terra.
(…)
henri michaux
ideogramas na china
trad. ernesto sampaio
cotovia / fundação oriente
1999
07 agosto 2008
marguerite yourcenar / safo ou o suicídio
(…)
desce a correr
as ruas cheias de despojos e de lixo
que conduzem até ao mar,
mergulha na vaga dos corpos.
sabe que nenhum encontro
lhe trará salvação,
pois não poderá,
para onde quer que vá,
voltar senão a encontrar Átis.
aquele rosto desmesurado
tapa-lhe todas as saídas
que não dão para a morte.
a noite cai
semelhante a uma fadiga
que lhe baralhasse a memória;
um pouco de sangue
persiste do lado do poente.
repentinamente
ressoam tímbalos, como se a febre
os fizesse chocar
dentro do seu coração:
contra sua vontade,
um longo hábito levou-a de volta ao circo,
à hora onde todas as noites ela luta
contra o anjo da vertigem.
uma última vez
enche-se daquele cheiro de animal selvagem
que foi o da sua vida,
daquela música enorme e desafinada
como é a do amor.
(…)
marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995
05 agosto 2008
valter hugo mãe / recipiente para guardar o mar
nunca sabotei a vontade de
deus, e vejo ainda
o inferno, um qualquer
poema mais difícil de coleccionar
valter hugo mãe
três minutos antes da maré encher
quasi
2000
03 agosto 2008
arsenii tarkovskii / 8 ícones
Íamos, sem saber para onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta aos nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.
arsenii tarkovskii
8 ìconesversão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987
30 julho 2008
sophia de mello breyner andresen / no tempo dividido
Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol
E a palidez da Lua.
sophia de mello b. andresen
no tempo dividido
caminho
2003
29 julho 2008
rené char / partilha formal
XL
Atravessar com o poema a pastoral dos desertos, o sacrifício às fúrias, o fogo bolorento das lágrimas. Correr atrás dele, implorar-lhe, injuriá-lo. Identificá-lo como sendo a expressão do nosso génio ou ainda o ovário esmagado da nossa penúria. Por uma noite irromper atrás dele, finalmente, nas núpcias da romã cósmica.
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000
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