17 junho 2007

praga HIV








Antes do contágio, o hálito do prazer era-me constantemente familiar e os corvos suaves ferviam tolhidos no carro do miradouro. O filamento do vazio, emaranhado no interior do desejo, era o magnífico solo na distribuição de pedaços de jornal, com o meu telefone escrito a azul bebé, ao longo dos sexos molhados. Destrambelhados delitos cometidos, mas do culpado nem rasto sequer. Desrespeitei-me muitas vezes, mas depois do positivismo ao máximo, andamos perdidos com anatomias e angústias semelhantes. Aos corpos desmiolados, atiçados em conferência de imprensa, tudo lhes perdoo, excepto o princípio do vírus. No fundo, somos todos potenciais seres humanos, partilhamos tudo e tudo oferecemos, até a morte lenta. Na mitologia, a materialização da vacina. Aparição estragada, futuro sem lugar, imaginação desabitada para dentro do esqueleto minado. Apalpo-me em múltiplas ocasiões, mas das zonas endógenas inchaços, hematomas, nódoas, quistos. Tenho a protecção física flectida sob todo o tipo de infecções. Estremeço de medo, por detrás da latrina vertebrada. Os comprimidos são ímanes para a loucura, bengalas, hélices no deslocamento entre as várias divisões do lar. Na doença fealdade, tosse, cor amarela, pele amarela, bolor, desastre, estatística da pena. No imprevisto, a criatura amada fugiu antes de ter tropeçado no precipício ininstante. A análise sísmica foi-lhe favorável, nem sei bem como. Naquele dia tocou-me no braço e disse: - Mesmo que não me suicide antes, deixo-te para morreres à vontade, sem perturbações, na proibição dos átomos. Falta somente esculpir a execução. Assunto arrumado.








cláudia afonso
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem

trianual nº- 1 série II
coimbra
julho 2002






16 junho 2007

lucidez impura






numa falésia de silêncio
há um colar de palavras a arder

todos os ventos amargos
vieram morar na minha cabeça

morrem-me nos lábios
um a um
os verbos mais belos

que demoradamente se extinguem
e te arrastam

levam-te de mim
como se fosses todo o verde
que havia num deserto

e eu ergo esta saudade
para não te perder

na crueldade de Dezembro
a construo

porque nenhum outro tempo
te pode incluir








gil t. sousa
poemas
2001



13 junho 2007

espelho negro





Dois corpos que se estreitam e crescem
e penetram na noite de sua pele
e sexo, duas trevas entrelaçadas
que inventam na sombra a sua origem, os seus deuses,
que dão nome e rosto à solidão,
e desafiam a morte sabendo-se mortos
e derrotam a vida ao serem a sua presença.
Diante da vida sim, diante da morte,
Dois corpos impõem uma realidade aos gestos,
braços, músculos, à terra húmida,
vento de chamas, lago de cinzas.
Diante da vida sim, diante da morte,
dois corpos que porfiam exorcizam o tempo
construindo a eternidade que lhes é negada –
supõe eterno o sonho que os sonha.
É negro o espelho em que se replica a sua noite.








juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000








12 junho 2007

cantos de maldoror






Todas as noites, mergulhando a envergadura das minhas asas na memória agonizante, evocava a lembrança de Falmer... todas as noites. Os seus cabelos loiros, o seu rosto oval, os seus traços majestosos estavam ainda gravados na minha imaginação... indestrutivelmente.., sobretudo os seus cabelos loiros. Afastai, afastai pois essa cabeça sem cabelo, polida como a carapaça da tartaruga. Ele tinha catorze anos e eu um ano mais. Essa voz lúgubre que se cale. Porque vem ela denunciar-me?
Mas sou eu mesmo que falo. Servindo-me da minha própria língua para exprimir o meu pensamento, sentindo que os meus lábios mexem e que sou eu mesmo que falo. E sou eu mesmo que, contando uma história da minha juventude e sentindo o remorso penetrar-me o coração... sou eu mesmo, a não ser que esteja enganado... sou eu mesmo que falo. Eu tinha só um ano mais. Quem é então aquele a quem me estou a referir? É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. Sim, sim, já disse o nome dele... não quero soletrar outra vez essas seis letras, não, não. Também é inútil repetir que eu tinha um ano mais. Quem sabe? Repitamos, no entanto, mas com um penoso murmúrio: eu só tinha um ano mais. Mesmo então, a preeminência da minha força física era um motivo para sustentar, através do rude atalho da minha vida, aquele que se me tinha dado, mais do que para maltratar um ser visivelmente mais fraco. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco... Mesmo então. É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. A preeminência da minha força física... todas as noites... Sobretudo os seus cabelos loiros. Muitos seres humanos viram cabeças calvas: a velhice, a doença, a dor (as três juntas ou em separado) explicam este fenómeno negativo de modo satisfatório. Tal é, pelo menos, a resposta que um sábio me daria, se eu o interrogasse a este respeito. A velhice, a doença, a dor. Mas eu não ignoro (sim, também eu sou sábio) que um dia, só porque ele me deteve a mão no momento em que eu erguia o punhal para trespassar o seio de uma mulher, o agarrei pelos cabelos com braço de ferro e o fiz girar no ar, a tal velocidade que a cabeleira me ficou na mão, e o seu corpo, lançado pela força centrífuga, foi embater no tronco de um carvalho... Não ignoro que um dia a sua cabeleira me ficou na mão. Também eu sou sábio. Sim, sim, já disse o nome dele. Não ignoro que um dia cometi um acto infame, quando o seu corpo era lançado pela força centrífuga. Ele tinha catorze anos. Quando, num acesso de alienação mental, corro pelos campos, apertando contra o coração uma coisa sangrenta que há muito tempo conservo como venerada relíquia, as criancinhas que vêm atrás de mim... as criancinhas e as velhas, que me perseguem à pedrada, soltam estes gemidos lamentosos: “Ali vão os cabelos de Falmer.” Afastai, afastai pois essa cabeça calva, polida como a carapaça da tartaruga... Uma coisa sangrenta. Mas sou eu mesmo que falo. O seu rosto oval, os seus traços majestosos. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. As velhas e as criancinhas. Ora, eu julgo que na verdade.., que é que eu ia a dizer?... ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. Com braço de ferro. Aquele choque, aquele choque matou-o? Partiram-se-lhe os ossos contra a árvore... irreparavelmente? Matou-o, aquele choque provocado pelo vigor de um atleta? Continuou vivo, apesar dos seus ossos irreparavelmente partidos... irreparavelmente? Aquele choque matou-o? Temo saber aquilo a que os meus olhos fechados não assistiram. Na verdade... Sobretudo os seus cabelos loiros. Na verdade, eu fugi para longe com uma consciência agora implacável. Ele tinha catorze anos. Com uma consciência agora implacável. Todas as noites. Quando um jovem que aspira à glória, num quinto andar, debruçado sobre a sua mesa de trabalho, à hora silenciosa da meia-noite, sente um ruído que não sabe a que atribuir, vira a cabeça para todos os lados, pesada da meditação e dos poeirentos manuscritos; mas nada, nenhum indício surpreendido lhe revela a causa daquilo que ouve tão baixo, mas que ouve. Vê por fim que o fumo da vela, ao subir para o tecto, provoca, através do ar ambiente, as quase imperceptíveis vibrações de uma folha de papel presa à parede com um prego. Num quinto andar. Tal como um jovem que aspira à glória ouve um ruído que não sabe a que atribuir, assim eu ouço uma voz melodiosa que me diz ao ouvido: “Maldoror!” Mas, antes de desfazer o engano, ele julgava ouvir as asas de um mosquito... debruçado sobre a sua mesa de trabalho. No entanto, eu não estou a sonhar; que importa que eu esteja estendido no meu leito de cetim? Faço com sangue-frio a observação perspicaz de que tenho os olhos abertos, embora seja a hora dos dominós cor-de- rosa e dos bailes de máscaras. Nunca... Oh! não, nunca!.., nunca uma voz mortal fez ouvir estas tonalidades seráficas ao pronunciar com tão dolorosa elegância as sílabas do meu nome! As asas de um mosquito... Como é indulgente a sua voz... Ter-me-á então perdoado?... O seu corpo foi embater no tronco de um carvalho... “Maldoror!”












isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto quarto
trad. pedro tamen
fenda
1988







10 junho 2007

pour faire le portrait d´un oiseau





a elsa henriques





se quiseres pintar o retrato de um pássaro
primeiro pinta uma gaiola
com a porta aberta.
depois pinta
algo engraçado
algo simples
algo bonito
qualquer coisa útil
para o pássaro.
depois encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
e esconde-te atrás da árvore
muito calado
sem te mexeres…
às vezes o pássaro aparece logo
mas também pode levar muitos anos
até decidir aparecer.
não desistas
espera
espera durante anos, se preciso for
a pressa ou a demora do pássaro
não tem influência no resultado
do quadro.
quando o pássaro aparecer
se ele aparecer
guarda o mais profundo silêncio
até ele entrar na gaiola
e quando ele entrar
delicadamente, fecha a porta com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar a plumagem do
pássaro
em seguida, pinta uma árvore
e escolhe o ramo mais bonito
para o pássaro
pinta a folhagem e a frescura do
vento
pinta o dourado do sol
e o alarido das criaturas na relva sob o calor do
verão
e depois espera até que o pássaro se decida a cantar
se ele não cantar
é mau sinal
é sinal de que o quadro é mau
mas se ele cantar é bom sinal
é sinal de que o podes assinar
e então arrancas delicadamente
uma pena do pássaro
e escreves o teu nome num canto do quadro












jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003




a mulher e o lobo










Eduardo Luiz
(1932-1988)
a mulher e o lobo (1971)
óleo sobre tela, 89x116 cm
colecção Manuel de Brito






09 junho 2007

fastos III







artur hipólito morreu com 62 an
os, 20 anos após ter feito 42, mas
na altura quem diria?


heitor fragoso morreu atropelado.
foi levado para o hospital, mas es
queceram-se duma parte do corpo
no local do acidente.

manuel testa morreu sem se ter c
onseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.

arnaldo rodrigues caiu a um bur
aco da canalização e nunca mais
foi visto.

jeremias cabral pôs termo à exist
ência por motivos desconhecidos.

zeca gomes morreu em defesa da
pátria mas a pensar noutra coisa.

antónio de oliveira morreu igual
a si mesmo: triste sinal dos te
mpos!

bernardo leite pôs-se a pensar na
morte e não conseguiu voltar a
trás.

ivo gouveia tinha uma agência f
unerária e escolheu para si um
caixão representativo.

guilherme silva fechou-se no sót
ão, para morrer num lugar eleva
do.

luís dimas respirava saúde, agora
respira um hálito de eternidade.

antónio garcia, o coveiro, teve u
ma síncope e caiu dentro da cov
a que estava a abrir.

bento nogueira engasgou-se com
um pedaço de carne e desapare
ceu do nosso convívio.

paiva de jesus enforcou-se.

joão baptista viu o cunhado lev
antar-se do caixão e teve uma sí
ncope.

lourenço pinheiro estava a ver a
trovoada e um relâmpago entrou
lhe por um olho e saiu-lhe pelo
outro.

jorge velez de castro finou-se
após uma longa vida de sacrifí
cios, toda dedicada ao bem-comu
m. e foi assim: depois de ter inge
rido o seu sumo de laranja, foi c
onduzido para a cadeira de rep
ouso pelo enfermeiro de confian
ça. nela se conservou, de boca en
treaberta e olhos fechados, até
às onze horas. às onze horas, o e
nfermeiro de confiança aproxim
ou-se com a intenção de o condu
zir ao banho. pondo delicadamen
te a mão nas costas da cadeira,
disse: são horas do banho, senhor
director. como este não desse si
nal de ter ouvido, o enfermeiro
de confiança, com a costumada jo
vialidade, debruçou-se e repetiu:
são horas do banho, senhor direc
tor. posto isto, empurrou a cadei
ra até ao balneário, passou um br
aço pelos rins outro por baixo d
os joelhos do director, e assim o
levou para a água, só então se da
ndo conta de que ele já não vivia.

zé maria, o peidolas, foi expulso
da vida pela autoridade compet
ente.

joão gaspar foi um nobre e val
oroso homem que morreu heroi
camente no campo da honra. p
az à sua alma.

raul santos deitou-se um dia e p
or mais que o sacudissem nunca
mais se levantou.

alfredo penha caiu tão desastrada
mente da cama que nem é possív
el dar pormenores da sua morte.

joaquim perestrelo morreu no me
io da missa, qual quê! ainda a m
issa não ia a metade!

sousa dias morreu de pé, mas en
terraram-no deitado, como toda a

gente.













alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990









05 junho 2007

retiro de cada instante





(…)

digo mais uma vez:


como
se fosses
o vento
passaste
pela minha
vida –



passaste por este bloco apaixonado, primitivo, alucinado, obscuro, rumoroso, desprendido, fatigado, perseverante, abrasado – como se fosses apenas uma visita subtil da brisa irrompeste por este campo silencioso, inquieto, duríssimo, taciturno, abjecto, obstinado, espesso, inventado – como se mais não fosses do que uma fresca brisa matinal visitaste esta pequena ilha cruel, à deriva, transparente, dissolvida no seu sal, estéril, fantástica, humilde, incandescente que foi o meu corpo, o espaço vulnerável do meu comércio.


E abandonaste-me.
Num deserto que não conhecia.
Com uma casa inteira para percorrer com os meus passos por dentro da noite.



Ou fui eu quem te
abandonou?












casimiro de brito
imitação do prazer
publicações dom quixote
1991



02 junho 2007

como é que os loucos podem ter sono!





- Há pessoas, imaginem, que não dormem!
- E porque não dormem?
- Porque nunca têm sono.
- E porque não têm sono?
- Porque são loucos.
- Então os loucos não têm sono?
- Como é que os loucos podem ter sono!








franz kafka
crianças na estrada nacional
(kinder auf der landstrasse)
10-12-1912







hidden secrets



Joy Christiansen
hidden secrets (detail 2)
2002

01 junho 2007

um adeus português





Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti












alexandre o'neill
no reino da dinamarca (1958)
poesias completas
assírio & alvim
2000











30 maio 2007

coisas que nunca vi





quero levar-te nas mãos
coisas que nunca vi

quero cegar

e com a loucura
dos dias iguais

erguer
a muralha das horas

longa
como o longo beijo da noite

lenta
como o lento vermelho das rosas








gil t. sousa
20-05-2002









29 maio 2007

sem medo…






entra o vento na alma.
coalha o poema dentro do corpo
e os dedos deixam de cantar.


param as horas na mente branca.
o riso salva o silêncio
na sombra dos olhos abissais.


cessa a vida calcada,
num livro envolto de miragens.
insignificante o negrume do desejo.


na areia enterra-se o prazer.
pestífero difuso da mágoa
de ser ameaça insuspeita


esquece o acaso inimigo
em dias de discernir ruídos.
o dia cansado senta-se


não há vacuidade no valor de base
da imaginação fluente.
os sonhos não têm peso


a linguagem da morte encalhou,
resta um corpo na poesia despida!









l.maltez