(ao menino morto, eu próprio)
A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.
Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos:
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta…
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria…
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas de erva…)
Oh, não há solidão nas neblinas de Inverno
Pela erma planície…
E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio…
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio…
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo,
Já me confundo contigo.
cristovam pavia
revista árvore, nº. 1
Outono de 1951
22 março 2007
21 março 2007
antónio josé forte (1931-1988)
azuliante
Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte
Choverá muito eu sei choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente
Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabem tão bem quanto eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
os segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente
Digo não Eu digo não
digo o teu nome que diz não
No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore
à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos
passas tu devagar atirando as moedas
que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite mil e uma noites de quem espera
Meu amor países pátrias têm todos um nome
de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir
No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis
que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase da terra
tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão
com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua eu a tempestade
de coração a coração
Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
lisboa 2003
20 março 2007
a árvore
Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.
yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998
19 março 2007
ponto da situação
Um céu tão sujo,
desde há dias sem milagres, só barulho
nas ruas, automóveis imponentes,
em quem hei-de acreditar senão
no meu dentista, um ser
humano tem de ler os jornais,
dou uma dentada e pasmo, há anos
já o vento rugia a pedir clemência
e as chaminés tremem
ainda e sempre de felicidade.
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994
16 março 2007
silêncios
fala-me da ausência do mundo, do enorme silêncio
que me separa do rumor do tempo.
sim, digo-lhe,
semeei dunas brancas ao longo do que existi,
realizei um por um os horizontes
e caminhei.
nos passos,
levei a sabedoria de anoitecer e de madrugar.
exerci-a
na altitude dos que me perguntaram o nome.
naqueles que me questionaram o olhar
ou a palavra
nos que, suspensos da fronteira de sombras,
esperaram para me ouvir
ou para me falar.
e usei a voz como um pássaro usa as sementes.
digo-lhe:
não, não apaguei o mundo da minha vontade
apenas o areei de solidão
e fiz dele um deserto
onde alguém se perdesse.
gil t. sousa
poemas
2001
samuel beckett / sobressaltos
Numa noite estava ele sentado à mesa dele
com a cabeça entre as mãos
quando se viu a si mesmo a levantar-se e a ir-se.
Uma noite ou um dia.
Pois quando se apagou a luz dele
não ficou na escuridão.
Na altura vinha uma espécie de luz
da única janela alta.
Debaixo dela ainda o banco por onde ele subia
para ver o céu até mais não poder
ou não querer.
Se não se esticava para ver
o que havia lá por baixo
era talvez porque a janela não era feita para abrir
ou porque ele não a podia ou não queria abrir.
Talvez ele soubesse até bem de mais
o que havia lá por baixo
e nunca mais o quisesse ver.
E assim mais não fazia
que pôr-se ali de pé bem alto acima da terra
a olhar através do vidro nublado para o céu sem nuvens.
A luz fraca e fixa do céu
como nenhuma outra luz de que ele se lembrasse
dos dias e das noites
em que dia dava em noite
e noite dava em dia.
Então esta luz exterior
quando a luz que ele tinha se apagou
tornou-se na única luz que tinha
até que por sua vez se apagou
e deixou-o na escuridão.
Até que por sua vez se apagou.
(...)
samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso
o independente
05-01-1990
15 março 2007
muro branco
como um muro branco
sobre o deserto
da noite
a morte
escrita na solar pureza
das palavras
a íntima loucura
da dor
o imperativo silêncio
do que brilhava
não sei se volto
perdi o fio das madrugadas
a linha
que dos teus lábios
me descia céus
no olhar
gil t. sousa
poemas
2001
14 março 2007
as riquíssimas horas do Duque de Berry
março
Começam os primeiros trabalhos agrícolas no campo. Por volta de 21 de março, o Sol cruza o equador celestial rumo ao norte; é o equinócio de março, começo da primavera no Hemisfério Norte e do outono no Hemisfério Sul. Ao fundo, o castelo de Lusignan, um dos castelos preferidos do Duque.
13 março 2007
uma fila de árvores caminha pela minha rua...
34.
Uma fila de árvores caminha pela minha rua em direcção ao
Norte.
As árvores caminham lentamente, com o rosto
levantado, arrogantes ou tristes, com essa lentidão do
equilibrista sobre um campo de minas.
Pudessem ser amigos que fugiram da morte,
pois a morte tem apego ao Sul.
Pudessem ser uma fila de homens sem casa nem
família com a convicção do soldado que
avança para a derrota.
Mas são apenas árvores, altas, de folha perene, cujos passos
impassíveis nunca perdem o ritmo,
uma fila que o vento não dissolve nem extingue.
Eu não quero saber que dor as sujeita, nem que
mão imprudente as animou a crescer.
Apenas as observo passar, dia após dia, passar desde
a infância, desde o primeiro amor.
Quereria perguntar-lhes os nomes, mas calo-me.
Quereria que a noite chegasse e as cobrisse:
Que inclinassem apenas a cabeça ao morrer.
jesus urceloy
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
12 março 2007
malas sem atenção
Malas sem atenção: assim parecem
ser a maioria dos poemas.
Malas abandonadas num aeroporto
que ninguém busca ou reclama.
Malas que não se podiam deixar
e por isso mesmo se deixam,
quando nos avisam pelo altifalante:
"... por motivos de segurança
não deixem abandonada qualquer mala
nem se aproximem se virem uma".
Isto é, por sua vez, a leitura de um poema:
o encontro inesperado de um mundo
metido e comprimido num pequeno
concentrado de tempo - coisas de vestir,
vários objectos de companhia,
outros de primeira necessidade,
roupa interior muita, até demais,
e tudo, em geral desordenado, revolvido
contra não sabemos quê ou quem,
mas formando uma estranha unidade -,
o envolvimento e as entranhas de um corpo
desconhecido, uma segunda pele
que gostamos de usar de vez em quando,
- mudados, revestidos com outros olhos -,
ou então nós mesmos mais que nunca
- finalmente despidos do que sobra
e na nossa nudez reencontrados.
àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves
09 março 2007
sob a pluma do poeta
sob a pluma do poeta
ensimesmado
corre a linha
desliza a linha da palavra
que agarra outra linha
outra palavra
e como no tear ancestral
tece a renda do texto
borda as cores
dos inaudíveis sonhares
abismais
entrelaça o pensar
deslumbrado
entontecido de desmaios
singelezas outonais
nos campos
das cegueiras múltiplas
desengonça as infiltrações
escondidas sob as
peles esburacadas
de bailarinas células
constroi e
desconstroi
o universo finito
das imitações criativas
faz-se sombra de deus
seu objectivo final
por vezes
m.f.s.
08 março 2007
sei
Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego
Tu
se o ar é fresco
eu
se deixo de respirar
subitamente
antónio reis
novos poemas quotidianos
edição do autor
1959
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