25 outubro 2014

álvaro de campos / tabacaria



  Não sou nada.
  Nunca serei nada.
  Não posso querer ser nada.
  À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

  Janelas do meu quarto,
  Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
  Quem é
  (E se soubessem quem é, o que saberiam?),

  Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
  gente,
  Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
  Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
  Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
  Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos
  homens,
  Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
  nada.

  Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
  Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
  E não tivesse mais irmandade com as coisas
  Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

  A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
  De dentro da minha cabeça,
  E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

  Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
  Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
  À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora.
  E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

  Falhei em tudo.
  Como não fiz propósito nenhum talvez tudo fosse nada.
  A aprendizagem que me deram,
  Desci pela janela das traseiras da casa.
  Fui até ao campo com grandes propósitos.
  Mas lá encontrei só ervas e árvores,
  E quando havia gente era igual à outra.
  Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
  Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
  Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
  E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver
  tantos!
  Génio? neste momento
  Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
  E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
  Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
  Não, não creio em mim.
  Em todos os manicómios há doidos malucos com tanta certezas!
  Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
  certo?
  Não, nem em mim...
  Em quantas mansardas e não mansardas do mundo
  Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
  Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
  Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
  E quem sabe se realizáveis,
  Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
  O mundo é para quem nasce para o conquistar
  E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha
  razão.
  Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
  Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que
  Cristo,
  Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
  Mas sou, e talvez serei sempre o da mansarda,
  Ainda que não more nela;
  Serei sempre o que não nasceu para isso;
  Serei sempre só o que tinha qualidades;
  Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
  uma parede sem porta,
  E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
  E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
  Crer em mim? Não, nem em nada.
  Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
  O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
  E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
  Escravos cardíacos das estrelas,
  Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
  Mas acordamos e ele é opaco,
  Levantamo-nos e ele é alheio,
  Saímos de casa e ele é terra inteira,
  Mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido.
  (Come chocolates, pequena;
  Come chocolates!
  Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
  Olha que as religiões todas não ensinam mais do que a
  confeitaria.
  Come, pequena suja, come!
  Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
  comes!
  Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de
  estanho,
  Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

  Mas ao menos fica a amargura do que nunca serei
  A caligrafia rápida destes versos,
  Pórtico partido para o Impossível.
  Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
  Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
  A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
  E fico em casa sem camisa.
  (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
  Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
  Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
  Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
  Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
  Ou cocote célebre do tempo de nossos pais,
  Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -,
  Meu coração é um balde despejado.
  Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
  A mim mesmo e não encontro nada.
  Chego a janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
  Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
  Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
  Vejo os cães que também existem,
  E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
  E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

  Vivi, estudei, amei e até cri,
  E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
  Olho a cada um dos andrajos e as chagas e a mentira,
  E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
  nem cresses
  (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
  nada disso);
  Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
  cortaram o rabo
  E que é o rabo para aquém do lagarto remexidamente.

  Fiz de mim o que não soube,
  E o que podia fazer de mim não o fiz.
  O dominó que vesti era errado.
  Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
  perdi-me.
  Estava pegada à cara.
  Quando a tirei e me vi ao espelho.
  Já tinha envelhecido.
  Estava bêbado, Já não sabia vestir o dominó que não tinha
  tirado.
  Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
  Como um cão tolerado pela gerência
  Por ser inofensivo
  E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

  Essência musical dos meus versos inúteis,
  Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
  E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
  Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
  Como um tapete em que bêbado tropeça
  Ou um capacho que os ciganos roubam e não valia nada.

  Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
  Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
  E com o desconforto da alma mal-entendendo.
  Ele morrerá e eu morrerei.
  Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
  A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
  Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
  E a língua em que foram escritos os versos.
  Morrerá depois o planeta girante em que tudo isso se deu.
  Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como
  gente
  Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
  coisas como tabuletas,
  Sempre uma coisa defronte da outra,
  Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
  Sempre o impossível tão estúpido como o real,
  Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério
  da superfície,
  Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

  Mas um homem entrou na Tabacaria (pra comprar tabaco?)
  E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
  Semiergo-me energético, convencido, humano,
  E vou tencionar escrever estes versos em que digo o
  contrário.

  Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
  E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
  Sigo o fumo como uma rota própria,
  E gozo, num momento sensitivo e competente,
  A libertação de todas as especulações
  E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
  estar mal disposto.

  Depois deito-me para trás na cadeira
  E continuo fumando.
  Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

  (Se eu casasse com a filha de minha lavadeira
  Talvez fosse feliz.)

  Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
  O homem saiu da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das
  calças?).
  Ah conheço-o, é o Esteves sem metafísica.
  (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
  Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu me.
  Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus é Esteves!, e o universo
  Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da
  Tabacaria Sorriu.



  álvaro de campos





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