20 novembro 2015

ruy belo / o valor do vento


Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em Agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto


ruy belo
o país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




19 novembro 2015

leopoldo maría panero / o lamento do vampiro



Vós, todos vós, toda
essa carne que na rua
se amontoa, sois
para mim alimento,
todos esses olhos
cobertos de remelas, como de quem não acaba
nunca de despertar, como
olhando sem ver ou tão só pela sede
da absurda aprovação de um outro olhar,
todos vós
sois para mim alimento, e o espanto
profundo de ter como único espelho
esses olhos de vidro, essa névoa
em que se cruzam os mortos, esse
é o preço que pago pelos meus alimentos

Last River Together, 1980


leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014





18 novembro 2015

fiama hasse pais brandão / novembro também


Novembro também na Europa
tão soalheiro, tão cheio
de memórias amargas,
forçado Estio,
aziago e malsão mês,
que nos prediz os séculos
de Caos novo.

Nov. 95

  
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




17 novembro 2015

alda merini / acordar com a febre altíssima



Acordar com a febre altíssima
num delírio de amor,
e ouvir ao longe
as pessoas falarem de ti como poeta
de precisa e indómita escrita,
mas que te importa enfim
a meta está alcançada
podes amainar as velas
e finalmente apaziguar-te,
e dizer que o teu comprimento
é um metro e cinquenta de estatura
e o teu peso é 80.

Está tudo, do resto
não vai ficar mais nada, as folhas
dirão que escreveste, sofreste, amaste,
que desesperadamente pediste ajuda
e a ajuda não veio.
Então mede a quadratura do círculo
ocupa-te finalmente da tua esquizofrenia,
é o bem que te ficou
é a verdadeira fecunda poesia
depois ficará um caixão
um e cinquenta de comprimento
para acolher-te, um nada dentro da espécie,
e oxalá fique a tua memória
no coração de Giacinto Spagnoletti.

(de A terra santa e outros poemas, Lacaita 1984)



alda merini
tradução de marco bruno
relâmpago
revista de poesia, nr. 17 10/2005
fundação luís miguel nava
outubro de 2005



16 novembro 2015

heiner müller / vampiro


As máscaras estão gastas fin de partie
Proletário e assassino camponês e soldado
das bocas emprestadas não sai um único pio
desvaneceu-se o poder onde o meu verso
se quebrava como a rebentação da cor do arco-íris
na cerca dos dentes o último grito morreu
BEM-VINDO A WORKUTA COM ( M ) ISSÁRIO
Em vez de muros há espelhos à minha volta
O meu olhar procura o meu rosto O vidro permanece vazio.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp




15 novembro 2015

narcís comadira / as cidades



Li uma vez que Morosini,
general, embaixador
de Veneza, quis
levar consigo as esculturas
do frontão do Pártenon.

Mandou montar um andaime,
mandou trepar os escravos
e, no momento mais difícil,
alguma escora falhou.
Tombaram homens e estátuas.

Decepcionado, o general
abandonou o seu projecto.
Ele queria-as inteiras.
Os pedaços assim espalhados
serviram para construir casas.

Muitos sábios meditaram
sobre o mistério surpreendente
de poder criar beleza
a partir de um bloco de mármore.
Poucos sobre o caminho contrário.

Obter um silhar adequado
do torso de algum deus antigo,
converter em cascalho uma vénus,
poder pisar paralelepípedos
feitos de membros sagrados...

Assim se fizeram as cidades:
lentamente construídas
com pedras que ontem foram
vidas humanas: amores,
sofrimentos que ninguém recorda.


narcís comadira
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994



14 novembro 2015

rené char / um pássaro



Um pássaro canta sobre um fio
Essa vida simples, à flor da terra.
Com isso se alegra o nosso Inferno.

Depois o vento começa a sofrer
E as estrelas dão-se conta.

Ó loucas, por percorrerem
Uma tão profunda fatalidade.

  
rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000




13 novembro 2015

josé antónio almeida / à mesa



À mesa do restaurante, sentado com o meu pai,
sem trocarmos entre nós uma única palavra,
chamei o empregado para pedir o almoço.
Então uma coisa inesperada aconteceu:
uma cara angélica aproximou-se de mim.
Via-se a silhueta do corpo sob a camisa
transparente e de mangas curtas, desabotoada
no colarinho e os primeiros botões de cima.
Concentrei-me com atenção nas oportunidades
Todas que me dava aquela situação de freguês
para olhá-lo e falar-lhe e até sorrir-lhe.
Encheu-me uma felicidade incongruente
Com aquela refeição que não era o banquete
que o outro pai partilhou com o filho pródigo.


josé antónio almeida
poemas
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990




12 novembro 2015

gil t. sousa / passagem



e se nas mãos fechadas
as grandes portas se abrissem

e passasses tu
como este silêncio passa!



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014




11 novembro 2015

dick davis / subida



Entra na claridade que tu amas –
O ar ténue das alturas sobre as nuvens
Que dispersam ao vento do inverno,
Assim dealba um entendimento, se extingue
Uma ilusão amada
                                para que vejas
O mundo com olhos desimpedidos.

Aqui, no cimo, a teus pés,
Estende-se o lago que foi vulcão,
O sombrio Avernus do eu.


dick davis
trinta e dois poemas
trad. joaquim manuel magalhães
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990




10 novembro 2015

josé carlos ary dos santos / o futuro



Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente
Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.



ary dos santos
vinte anos de poesia
o sangue das palavras 1979
círculo de leitores
1983



09 novembro 2015

antónio franco alexandre / estas algumas horas


1

recordaremos estas algumas horas, o seu intacto
celofane. dentro
com inquietação nos apercebemos da sapatilha azul,
e as figuras cromadas da simetria: um tigre
a dilacerara, não fôra o estridente apito
dos parafusos. "foolish things". quantas horas
escolhendo os fósforos, a marca
secreta das conservas, e estas imagens
igualmente fúteis. eis como
um osso curva
           o teu choro no meio das gruas,
os longos alicates, e em cima da mesa
a luz era clara, eis a marca, o teu
           uivo.

2

o mais ligeiro é o gnomo que pinta acessos
de ironia no tapume. algumas estas horas
o visitaremos, abrindo
          rapidamente a caixa onde o sabão
nos esteve atraiçoando.
e ainda as impressões digitais espalhadas na mesa
não teriam permitido reconhecê-lo; tanto
o pavor nos inclina os ramos mais altos,
perturbando a passagem dos navios.

3

algumas estas horas os resultados surgem
a meio da mesa, breves pastilhas brancas
que envenenam os teus
                            carinhosos insectos.
foi então que o amei? estes ligeiros
aeroplanos,
                   as naus,
                                o azul hipopótimo,
estas coisas incolores abrem ouvidos
na arrogância dos sinos.
e estes lugares sem água, quem dentro
da silenciosa sinagoga
                 deixaria de escutá-los?


4

longas estas algumas horas telescópicas quando
a limonada empalidece nos vastos balcões abertos
sobre a nossa impaciência. seguramos
com alguma razão os telefones
intactos da areia,
derramando no tapete estridentes migalhas.
de petrópolis, alguma esta hora nos trará
o celofane branco,
                             a gelatina,
                                             o sopro.
deitaremos o corpo nas esquinas cromadas, respirando
a desolação dos laços, os estreitos
canais do ciclone. ou será
que me iludiu o seu abismo?
estas garrafas de celulóide e lágrimas, quem
nos virá dar em troca os desejados
pesadelos? algumas estas horas
estamos sentados no azebre com uma torquez
em cada mão, e os telefones luminosos.
os nossos filhos crescem
com barbatanas, olhos verdes, sensações de imortalidade:
será possível entendê-los? ou foi excessivo
o consumo dos aromas, das vistas sobre o lume,
das esplanadas quentes ao lado do mar?
                                                               quem
de tão cerca, nos visitará nas estas
algumas horas de sofrimento ter-mi-nal? e os
cromos implacáveis, a colecção de passaportes?
o daguerreótipo das miniaturas?
algumas horas estas alongam-se nos passeios
e nos muros, ouvindo ao telefone
o consolo de muitas aves.
"não! não é possível! veja: esta
limonada transparente, dir-se-ia de água!"

5

a conclusão parece próxima, mas
poderá o gnomo recusá-la? estas questões
sujam indevidamente as douradas vidraças
do envelhecer. como evitar
o que recordaremos, estas algumas horas?
and yet
            these foolish things
                                         remind me of you
tu que pousas os meus olhos e as minhas mág
oas
e estes embrulhos transparentes, de ligeiras
asas na sapatilha azul.
ó que estas algumas horas sentadas no choro
não quebrem a aniurada das amáveis
chávenas!
assim as recordaremos, e o celofane amarrotado.


antónio franco alexandre
os objectos principais
centelha
1979




08 novembro 2015

ana luísa amaral / a cerimónia

  
Sagrei-os, aos meus filhos.
Fiz o que era esperado de mim,
mas a minha lembrança era do avesso,
para o futuro,
e estava toda nas rosas
que o tempo haveria de trazer,
em forma das guerras do meu país.
Dessas guerras me lembro,
mas nunca cheguei a ver a guerra
que a ambição e os sonhos lhes doaram.

Sagrei-os na minha mente,
antecipando o gesto de outra
que teria o meu nome.

Nesse dia, de manhã cedo,
era ainda escuro, e no quarto,
mesmo descerradas as cortinas,
quase não entrava a luz.
As aias ajudaram-me a vestir, e eu,
como sempre acontecia depois de acordar
e enquanto não chegavam as horas do dever,
lembrei-me do meu pai, do meu país,
dos seus campos muito verdes atravessados
por rebanhos, da chuva do meu país,
tão contínua como as minhas saudades.
Quando acabei as recordações
e o choro de silêncio,
chamei-os na minha mente.

A todos ofereci prendas.
Ao primeiro dei um ceptro
enfeitado de papel e de palavras,
ao segundo, uma espada
de aço brilhante,
ao terceiro, o gosto pelo mundo,
e ao último contei-lhe o caminho de
água verde e espuma alta
por onde eu tinha chegado;
mostrei-lhe o mar,
ao longo das muitas tardes
em que eu própria sonhava
com as margens que havia deixado
para trás.

Se pudesse sentar-me novamente
junto àquela janela,
a espada brilhante que dei a esse meu segundo filho
tê-la-ia transformado em arado,
ou em pequena lamparina,
porque, ao dar-lhe a espada,
dei-lhe também o resto de matar e de morrer.

Antes lhe tivesse dito vezes sem conta como é belo o mundo
e poder falar dentro dele.
Ou antes lhe tivesse mostrado só o mar,
como fiz com esse filho
junto de quem me cansava
das saudades da minha terra.

Uma prenda, porém, me é boa na memória:
a do papel e das palavras. Dispensaria o ceptro,
mas era ele que segurava palavras e papel.
Dessa prenda não me arrependo,
e quase me regozijo um pouco
por aquilo que fiz nessa manhã fria e escura
em que os chamei aos quatro
para junto da minha mente
e do meu coração.
Mas o que fizeram de mim,
naquele dia há tantos anos, quando, quase menina,
me ajudaram a subir para o bote
e depois para o navio
que me haveria de levar a uma terra que eu não conhecia,
a uma língua que não era a minha língua?

Onde ficaram as minhas tardes molhadas de chuva?
E a memória que de mim ficou,
porque não fala ela dos meus campos verdes
e das sombras dos rebanhos que os atravessavam?
Porque me nega essa memória
as rosas que, em futuro,
e ditas como guerra,
haveriam de dizimar tanta da minha gente?

Por que outra noite trocaram
o meu escuro?


ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011



07 novembro 2015

josé gomes ferreira / poema


(O Eugénio de Andrade espera-me num Café.
Atravesso as ruas do Porto – a cidade onde
nasci – com os punhos cerrados de dor.)



Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E  principalmente
não cheira a museu azedo
ou musgo embalado
pela chuva da boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.

Porto
 – cidade de luz de granito.

Tristeza de luz viril
com punhos de grito.



josé gomes ferreira
daqui houve nome portugal
antologia de verso e prosa sobre o porto
organizada e prefaciada por eugénio de andrade
editorial inova
1968




06 novembro 2015

josé de almada negreiros / ode a fernando pessoa



Tu que tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Foste de verdade, não de feito, a voz de Portugal.
De verdade, e de feito só não foste tu.
A Portugal, a voz vem-lhe sempre depois da idade
e tu quiseste acertar-lhe a voz com a idade
e aqui erraste tu,
não a tua voz de Portugal
não a idade que já era de hoje.
Tu foste apenas o teu sonho de ser a voz de Portugal
o teu sonho de ti
o teu sonho dos portugueses
só sonhado por ti.
Tu sonhaste a continuação do sonho português
somados todos os séculos de Portugal
somados todos os vários sonhos portugueses
tu sonhaste a decifração final
do sonho de Portugal
e a vida que desperta depois do sonho
a vida que o sonho predisse.
Tu tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Tu ficaste para depois
E Portugal também.
Tu levaste empunhada no teu sonho
a bandeira de Portugal
vertical
sem pender para nenhum lado
o que não é dado pra portugueses.
Ninguém viu em ti, Fernando,
senão a pessoa que leva uma bandeira
e sem a justificação de ter havido festa.
Nesta nossa querida terra onde ninguém a ninguém admira
e todos a determinados idolatram.
Foi substituído Portugal pelo nacionalismo
que é maneira de acabar com partidos
e de ficar talvez o partido de Portugal
mas não ainda talvez Portugal!

Portugal fica para depois
e os portugueses também
como tu.


josé de almada negreiros 




05 novembro 2015

italo calvino / já não há cidades de província


Escusado será dizer que já não há cidades de província e que talvez até nunca tenha havido: todos os lugares comunicam instantaneamente, só se tem uma sensação de isolamento durante o trajecto de um lugar para outro, isto é quando não se está em lugar nenhum. Eu, justamente, encontro-me aqui sem ter um aqui nem um algures, reconhecível como um estranho pelos não estranhos pelo menos como os não estranhos são por mim reconhecidos e invejados. Sim, invejados. Observo de fora a vida de uma noite numa pequena cidade qualquer, e percebo que fui posto fora de todas as noites quaisquer durante sabe-se lá quanto tempo, e penso em milhares de cidades como esta, em centenas de milhares de locais iluminados onde a esta hora as pessoas deixam que tombe o escuro da noite, e não lhes passa pela cabeça nenhum dos pensamentos que tenho eu, se calhar têm outros que não são de maneira nenhuma invejáveis, mas neste momento estaria pronto a fazer a troca com qualquer uma delas.


italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço barreiros
publico
2002




04 novembro 2015

mário avelar / promenade-outono (jasper johns)



Às vezes sento-me na
sala a ouvir Coltrane
in a sentimental mood…

Procuro então o teu
olhar, o teu olhar d´águia,
suspenso algures na

azáfama das vindimas,
suspenso algures num
ponto além da azáfama

das vindimas… ponto sem
regresso neste lugar.
Would you know my name

if I saw you in heaven?
Onde as veredas do
céu estão repletas de

anjos… onde, agitando
e gesticulando, tu
serás por certo um deles?



mário avelar
poezz
almedina
2004




03 novembro 2015

isidore ducasse conde de lautréamont / cantos de maldoror



Andava em busca de uma alma semelhante à minha. E não podia encontrá-la. Procurava por todos os recantos da terra: era inútil a minha perseverança. E, no entanto, não podia continuar só. Precisava de alguém que aprovasse o meu carácter; precisava de alguém que tivesse as mesmas ideias que eu. Era de manhã; o sol ergueu-se no horizonte em toda a sua magnificência, e eis que diante dos meus olhos se ergue também um jovem cuja presença gerava flores quando passava. Aproximou-se de mim estendendo-me a mão: “Vim a ti, a ti que me procuras. Bendigamos este dia feliz.” Mas eu respondi-lhe: “ Vai-te; eu não te chamei; não preciso da tua amizade…” Era de tarde; a noite começava a estender o negrume do seu véu sobre a natureza. Uma bela mulher, que eu mal distinguia, estendia igualmente em meu redor a sua influência encantatória, e olhava-me compassiva; porém, não ousava falar-me. Eu disse: “Aproxima-te de mim, para que distinga com nitidez os traços do teu rosto, porque a luz das estrelas não basta para os iluminar a esta distância.” Então, com passos modestos e de olhos baixos, ela pisou a relva do chão dirigindo-se para o meu lado. Disse-lhe logo que a vi “Vejo que a bondade e a justiça fizeram morada no teu coração: não poderíamos viver juntos. Agora admiras a minha beleza, que já transtornou a muitas; mas, mais tarde ou mais cedo, havias de arrepender-te de me teres consagrado o teu amor; porque não conheces a minha alma. Não que te seja alguma vez infiel: àquela que a mim se entrega com tanto abandono e confiança, com tanta confiança e abandono, a ela me entrego; mas convence-te disto, e nunca mais o esqueças: os lobos e os cordeiros não se olham com doces olhos.”

(canto II, excerto)



isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
trad. pedro tamen
fenda
1988