20 janeiro 2010
josé tolentino mendonça / side of the road
Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos
minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender
as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores
tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos
josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005
18 janeiro 2010
egito gonçalves / imagens de um inverno indocumentado
A vida tem lágrimas pesadas como árvores…
A sombra avança no atalho como um formigueiro.
Tuas pernas estão vermelhas de frio na paragem do eléctrico.
Felizmente existe a noite e a tua chegada.
O anjo estático não é mais que um boneco de pedra.
O calor da tua boca reinventa o estio.
egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971
16 janeiro 2010
antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano
6
quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
14 janeiro 2010
daniel faria / ando um pouco acima do chão
Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo
Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito
Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo
Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema
Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe
daniel faria
poesia
explicação das árvores e de outros animais
quasi
2003
12 janeiro 2010
antónio gancho / música
A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada faria prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.
antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995
10 janeiro 2010
laurie anderson / lírio branco
Em que filme do Fassbinder é que é? Um homem sem um braço
Entra numa florista e diz:
Qual é a flor que exprime
A passagem dos dias
Os dias que se sucedem sem fim
Puxando-nos
Para o futuro?
A infinita
Passagem dos dias
Puxando-nos infinitamente
Para o futuro.
E a florista diz:
O lírio branco.
laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997
06 janeiro 2010
maria do rosário pedreira / não voltei a esse corpo
Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiam antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.
Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.
Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.
maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro dos livros
gótica
2002
04 janeiro 2010
herberto helder / última ciência
Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua
arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia,
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
- Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca
numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.
herberto helder
ofício cantante
poesia completa
assírio & alvim
2009
03 janeiro 2010
gil t. sousa / será esse o teu inverno
12/
nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.
foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.
e será esse o teu Inverno.
gil t. sousa
falso lugar
2004
gil t. sousa
falso lugar
2004
02 janeiro 2010
sophia de mello breyner andresen / um pálido inverno
Um pálido inverno escorria nos quartos
Brancos de silêncio como a névoa
Um frio azul brilhava no vidro das janelas
As coisas povoavam os meus dias
Secretas graves nomeadas
sophia de mello bryner andresen
dual
caminho
2004
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