06 julho 2023

fernando alves dos santos / pela beira do mar

 
 
Pela beira do mar ando
suspenso de areia
segredada nas palavras
eco de convívios
sem promessas sem finalidades.
Diz-me o mar responsável
pelas mesmas vozes
pelas repetidas cores
pelas iguais névoas
que entre as areias e os limos
vivem o desespero.
Afronto com as virtudes
que acodem à minha voz
e pelo mar se imitam
no meu entendimento.
– O meu trabalho é pescar a semente
às vezes informe mas sucessiva.,
às vezes paradoxo da razão,
clara, acentuada, humana
nova dimensão do mar.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005
 





05 julho 2023

luís quintais / ética

 



 
Vou falhando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
Deixa-nos demasiados sós,
visitados pelo pensamento.
 
 
 
luís quintais
lamento
livros cotovia
1999



04 julho 2023

olga ivanova / encontro-me comigo todos os dias

 
 
Encontro-me comigo todos os dias
Nunca me deixo sozinha a mim mesma
Não fico nem um segundo longe da minha vista
Por isso não consigo compreender
O que pode ter acontecido
A este rosto
Que me devolve o olhar
A partir destas velhas fotografias.
 
 
 
olga ivanova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 


03 julho 2023

joão pedro grabato dias / a arca

  
XII
 
Poderemos então ser simples como
as leis do universo, simples como
o nascer e viver e o morrer
simples como sempre o desejamos
simples como um esperma derramado
dentro ainda da órbita do desejo
simples como um fruto consumido
no perímetro da sede, ou denso mosto
ingurgitado num tempo de riso
logo após o desejo e aquém do tédio.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021





02 julho 2023

rosa alice branco / amor cão

  
 
                                       Num dia frio de Inverno,
                                             observei a seguinte cena
 
 

A pele renova-se tão pouco
longe dos centros urbanos. O vento
que vem do mar evapora-se nas ruas desertas
onde alguém escreveu o meu nome em sal e escamas,
um pedinte na boca do metro e o cão sentado
como se soubesse que os seus dias são ao desbarato
enquanto o vagabundo esboça umas notas
na garganta cheia de pigarro. Um chapéu com
algumas moedas. Ser dono requer alguma propriedade,
neste caso feita de moedas baratas. É visível
que ambos têm a boca escancarada de outras fomes.
Tudo depende da linha: amarelo, azul, malmequer.
Bem! Nem tudo pode ser azul, ninguém nos prometeu
nomes como «felicidade». Por isso prepara-te
para esta hora em que o metro regressa vazio
sem uma paragem que abrigue as bocas no amor.
 
 
 
rosa alice branco
amor cão
e outras palavras que não adestram
assírio & alvim
2022





01 julho 2023

antónio pedro / igual

 
 
Eu já nem sei quem sou. Se o soube um dia
Foi um engano leve de momento:
Vi através de mim um pensamento,
E imaginei que já me conhecia.
 
Eu não sinto na alma um só tormento,
Nem a dor – é mentira – me assedia,
Só uma calma imensa anestesia
O meu crime maior: o sentimento.
 
E eu posso lá dizer que sei quem sou!
Nunca mudei, a vida não mudou.
Eu hei de ser eternamente igual…
 
Nasceu a minha mágoa só de mim…
A minha vida há de seguir assim
E hei de ser sempre o mesmo por meu mal!
 
 
 
antónio pedro
exílio d’ alma
poesia (1926-1929)
edições cosmorama
2016
 



30 junho 2023

juan manuel bonet / escrever

 
 
Escrever – como se nada fosse importante –
o simples passar das horas
sentado na esplanada de um café
de uma província espanhola.
Escrever, como se estivesse escrito
que o ruído dessas chávenas no mármore
tivesse que passar o arroio límpido
de uns versos.
Escrever, como se nada fosse.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




29 junho 2023

paul bowles / cena VII

 
 
Secar é a única missão do sol.
Não é o prazer dos insectos ou o chicote dos morcegos.
A salgada erupção depois do amor,
Que sabes tu dessas coisas, tu que o devias saber?
O fogo lento, o banho dormente,
A tua ignorância do porvir, a tua surda bondade.
Os farrapos do sol esvoaçam para ferir os teus olhos.
A cama é um refúgio, mas há mosquitos no quarto.
Ranger de dentes, ausência de lágrimas, inércia.
Um forte abraço, nenhuma faca, a tua falsa surpresa.
O sol movia-se, e a terra, noutros tempos.
Agora os abutres voam muito alto, mudos, sobre os sinos.
 
 
                                                                              1940
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 


28 junho 2023

wislawa szymborska / engano

 
 
Ressoou na galeria de retratos o telefone,
ressoou à meia-noite na sala vazia;
se alguém aqui dormisse logo acordaria,
mas aqui só há profetas insones,
só rainhas a empalidecerem para a lua
e olhando o que lhes é igual sem respirar;
e a aparentemente agitada mulher do usurário
para aquele preciso objecto, no armário, a tilintar –
mas não, não pões de lado o leque
e fica como os outros suspensos no seu ócio.
Eméritos ausentes, em pêlo ou de armadura,
passam pelo alarme nocturno a distracção
na qual eu juro haver mais humor negro
do que se o próprio castelão saltasse da moldura
(de resto, for o silêncio nada mais lhe soa nos ouvidos).
E que interessa se alguém na cidade há já bocado
aplica ingenuamente o bocal à orelha
porque marcou o número errado? Só se engana quem está vivo.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



27 junho 2023

louise glück / telescópio

 



 
Há um momento após desviares o olhar
em que te esqueces de onde estás
pois tens vivido, parece,
noutro lado, no silêncio do céu nocturno.
 
Deixaste de estar aqui no mundo.
Estás num lugar diferente,
um lugar onde a vida humana não tem sentido.
 
Não és uma criatura num corpo.
Existes como as estrelas existem,
participando na sua quietude, na sua imensidão.
 
Até que volta a estar no mundo.
De noite, numa colina fria,
a desmontar o telescópio.
 
Só depois percebes
que não é falsa a imagem
mas a relação.
 
Vês de novo como cada coisa
fica tão longe de todas as outras.
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




26 junho 2023

eunice de souza / dizei-me




 
 
Morte, dizei-me
Dia, Hora, Local.
Tenho de procurar
As minhas cuecas pecaminosas,
Marcar uma consulta
Com um pedicuro
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018
 


 

25 junho 2023

manuel antónio pina / morada

 
 
Sozinho na grande cama,
perdido nos seus frios corredores,
ouço, de quartos interiores,
a tua voz que me chama.
 
Do fundo da noite enorme
onde pouso a cabeça por fora
a tua voz de alguém acorda-me
como num sono insone.
 
Como se a tua voz agora
antigamente me chamasse
e tudo, menos a tua voz, faltasse
fora da minha memória.
 
 
 
manuel antónio pina
o caminho de casa (1989)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012




 

24 junho 2023

vasco graça moura / sobre a minha cidade


antonio cruz, sem título 1941

 

 
sobre a minha cidade, falei-te ontem mostrei-te
as esquinas do tempo, a imagem de fachadas
que ainda conheci, de outras que
eu próprio ignorava; sobre
 
a minha cidade e suas pedras, seus espaços
de árvores graves; e o que foi arrasado,
ou está a desfazer-se; as manchas do presente, a
poluição dos homens; e o que foi
 
violentamente arrancado por negócios sucessivos,
erros, brutalidades: o que era e o que foi
o que é dentro de mim o seu obscuro,
imaginário ser: costumes e conflitos,
 
maneiras de falar, a gente
e a confusão das ruas, as casas do barredo;
sobre a minha cidade achei que tu
tiveste gratidão, a viste.
 
que percorreste as pontes que da minha
cidade a ti me trazem, entre
gaivotas alastrando e músicas diferentes,
e foste nascer nela.
 
 
 
vasco graça moura
os rostos comunicantes
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007