24 novembro 2022

pedro homem de mello / cabra-cega

 



 

 

À volta de incerto fogo
Brincaram as minhas mãos.
… E foi a vida o seu jogo!
 
Julguei possuir estrelas
Só por vê-las.
Ai! Como estrelas andaram
Misteriosas e distantes
As almas que me encantaram
Por instantes!
 
Em ritmo discreto, brando,
Fui brincando, fui brincando
Com o amor, com a vaidade…
 
– E a que sentimentos vãos
Fiquei devendo talvez
A minha felicidade!
 
 
 
pedro homem de mello
jardins suspensos (1937
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




23 novembro 2022

jorge roque / pouca terra

 



 
I

Rosto anónimo, esbatido pelo movimento, olha para o exterior do comboio, mas não observa nada em particular, tem o olhar parado na contínua viagem ou então perscruta a noite interior, reconstitui a casa que não chegou a conhecer, cada um dos quartos, átrio, corredor, a sombra dos móveis estendida no soalho, o trabalho secreto dos ruídos contra o fundo de silêncio, percorre vagarosamente as raízes que se estendem sinuosas escuro adentro, segue-as ao correr dos dedos, o seu curso interrompe-se abruptamente, há um corte, uma falta, e ele olha-as nesse preciso momento, e o que vê são as mãos vazias. A fotografia, recortada de um convite, não tem referência ao autor ou à exposição a que pertencia. Atrás, a suportar a fotografia, o candelabro de sete braços. Atrás, a história do candelabro de sete braços. Atrás, o grito desde o primeiro homem, vibrado por vozes que se repetem e extinguem. Olha-me de cada vez que passo pela mesa do telefone. Olha-me e não me vê, esquece-me sem nunca me ter visto. Está ali para não me lembrar nada. Está ali para me esquecer de ti nos gestos que, dia a dia, te apagam.
 
 
 
jorge roque
nervo/16
colectivo de poesia
os comboios são meros pensamentos
outubro 2022
 






22 novembro 2022

ángél gonzález / o inverno



 

O Inverno
de largas luas e pequenos dias
está sobre nós. Há tempos
era eu uma criança e nevava muito,
muito. Recordo-o
ao ver a terra negra que repousa,
apenas pelo gelo
de um charco iluminada.
 
É incrível: mas tudo isto
que hoje é terra dormente sob o frio,
amanhã vai ser, com o vento,
trigo.
             E rubras
papoilas. E vergônteas…
 
Sem esperança:
a terra de Castela está à espera
– crescem os rios –
e tem certezas.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 




 

21 novembro 2022

jorge luís borges / amorosa antecipação

 



 
Nem a intimidade da tua fronte clara como uma festa,
nem o hábito do teu corpo, ainda de menina e misterioso e tácito,
nem a sucessão da tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso
como olhar o teu sono envolvido
na vigília dos meus braços:
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono,
serena e resplandecente como a alegria que a memória escolhe,
dar-me-ás essa margem da tua vida que tu própria não tens.
Entregue à serenidade,
divisarei essa praia última do teu ser
e ver-te-ei acaso pla primeira vez
como Deus te verá,
já dissipada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
lua defronte  (1925)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




20 novembro 2022

josé saramago / outono

 



 
Não é agora verão, nem me regressam
Os dias indiferentes do passado.
Já primavera errada se escondeu
Numa dobra do tempo amarrotado.
É tudo quanto tenho, um fruto só,
Sob o calor de outono amadurado.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





19 novembro 2022

fernando namora / disjunções

 



 
O espaço abre-se
quando os olhos se fecham.
As águas extinguem-se
no fogo que as habita.
No arco da ponte
desviam-se os rios
convergentes.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984





 


18 novembro 2022

laureano silveira / imperfeição

 



 

não é preciso voltar o rosto
para a transparência dos olhos que passam
porque as coisas renunciam ao mistério
e à louca exaltação das personagens.
 
Como se nada houvesse inviolável
nem branco nem silêncio nem imagens
crescem corpos queimados de insónia
e em seu soberbo abismo há claridade.
 
Onde porém subir ao pensamento
àquele que deseja, àquele que arde
e iluminar a face da inocência
enchê-la de pavorosa insubmissão?
 
Como perder a boca nessa espuma
e com ela as palavras invisíveis
e ser-se ainda inabitável corpo
cabeça faca espelho idioma?
 
Não é preciso voltar o rosto
quando o próprio rosto é excessivo
os olhos se espantam em remoinhos e tumultos
e os espelhos se enchem de gritos
 
 
 
laureano silveira
hífen 3 out 88 mar 89
a poesia / as outras artes
cadernos semestrais de poesia
1988






 

 

 

 


17 novembro 2022

gabriel bustilho / o amor e a morte são um mesmo

 



 
o amor e a morte são um mesmo
lugar, são precisamente este lugar
onde podemos ser crianças
outra vez, e quem sabe por uma última
vez, e talvez ainda outra, para que possamos
dizer de novo, e de novo, e de novo,
uma volta que não cansa de se repetir.
mas o rabo que mordemos é cada vez
mais doce, nos leva cada vez a uma outra
espinha, a uma outra vida, a uma outra árvore
de onde extraímos seiva, saliva.
 
 
 
gabriel bustilho
eu onça [número quatro]
editora urutau
2022




16 novembro 2022

gil vicente / auto das fadas

 



 
Traz a feiticeira um alguidar e um saco preto
Em que traz os feitiços,
Os quais começa a fazer dizendo
 
 

     Alguidar, alguidar,
que feito foste ao luar
debaixo das sete estrelas,
com cuspinhos de donzelas
te mandei eu amassar:
ó cuspinhos preciosos
de beiços tão preciosos
dai ora prazer
a quem vos bem quer,
e dai boas fadas
nas encruzilhadas.
     Este caminho vai pera lá,
est’outro atravessa cá;
vós no meio, alguidar,
que aqui cruz não há-de estar.
     Embora esteis encruzilhada.
Perequi entrou, pereli saiu.
Bem venhades, dona honrada.
Vai a estrada pola estrada.
Benta é a gata que pariu
gato negro, negro é o gato.
Bode negro anda no mato,
negro é o corvo e negro é o pez,
negro é o rei do enxadrez,
negra é a vira do sapato,
negro é o saco qu’ eu desato.
     Isto é fersura de sapo,
que está neste guardanapo.
Eis aqui mama de porca,
barbas de bode furtado,
fel de morto excomungado,
seixinhos do pé da forca:
bolo de trigo alqueivado
com dous ratos no meu lar,
per minha mão sameado,
colhido, moído, amassado,
nas costas do alguidar.
     Achegade-vos a mim:
que papades, meu qu’rubim?
     Escumas de demoninhado.
Quem vo-las deu?
Dei-vo-las eu.
Fel de morto, meu conforto,
bolo cornudo, vós sabedes tudo,
bico de pego, asa de morcego,
bafo de drago, tudo vos trago,
eu não juro nem esconjuro,
mas galo negro suro
cantou no meu monturo.
E ditas as santas palavras,
ei-lo Demo vai, ei-lo Demo vem
co’as bragas dependuradas.
 
 
 
gil vicente
o surrealismo na poesia portuguesa
organização de natália correia
frenesi
2002




15 novembro 2022

eugéne guillevic / o gosto da paz (fragmento)

 



 
ROUXINOL, rouxinol,
Que temos um com o outro, rouxinol?
 
Um velho conflito, um caso muito antigo,
Rouxinol.
 
Uma história do tempo em que tu aparecias
Por entre as coisas demasiado belas.
 
E quem não ousava, rouxinol,
Quem não ousava acreditar nelas,
 
Em certas noites,
Em certos fins-de-dia?
 
Quem não ousava acreditar nelas,
Ao ouvir o teu canto que provoca a felicidade,
 
Que se arremessa contra o peso
E paredes derruba a caminho da alegria?
 
Rouxinol das noites, rouxinol
Dos fins-de –dia – e a lua
 
Recordas-te? entre as pedras
E a planície e tu,
 
O que tu nos dizias, rouxinol,
O que tu prometias,
 
Quando na estrada o ruído das patrulhas nazis
Não estava longe todavia.
 
Rouxinol, o teu canto, meu belo artista,
                                                     [rouxinol,
O teu canto que faz vogar o espaço em
                                          [em direcção ao tempo
 
Que já se não teme, em direcção ao tempo
Em que se enlaça o que mais se deseja,
 
Rouxinol, rouxinol, também a alegria
nos faz soluçar. E a lua lá está. No alto,
                                                     [a espiar,
 
A ver quando passam as patrulhas inimigas,
Enquanto continuas a cantar.
 
Que temos um com o outro,
Rouxinol?
 
Solucionado o velho conflito,
Voltei a fazer-te meu aliado.
 
Se tanto te evoco, rouxinol,
Se tu regressas como um remorso,
 
Se o teu canto, onda azul e amarela,
Tanto de mim exige,
 
Não será, rouxinol,
Por causa das noites e dos fins-de-dia,
 
Não será também
Por causa dos canhões,
 
Dos que continuam a cuspir metralha
Ou daqueles que apenas estão à espera?
 
Não será pelo facto de o teu canto
Poder vir a ser coberto,
 
Rouxinol, meu velho,
Pelo ruído das bombas
 
E pelo ruído alucinado do incêndio ateado
Através das herdades?
 
Rouxinol, o teu canto,
Recorda-te, meu velho,
 
Quando ela aí estava, tremendo também,
Por causa de ti, por causa de mim.
 
Rouxinol, o teu canto,
É dele agora que precisamos.
 
 
 
guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965
 



14 novembro 2022

rui diniz / de lembrar-me

  
Nos cafés em Madrid vi suceder o Outono. A chuva
demorava-se suave sobre o contorno esquecido
dos teus lábios, a Vania de anos passados junto à
obscuridade das brasseries da margem, em Córdova.
Ninguém compreendeu a comprida cidade que
era o teu olhar escuro – diferente em tudo do meu.
Ninguém compreendeu porque não escreveste sequer
uma palavra e tuas palavras eram tão difíceis
de dizer. Era simples: o vento crescia sobre a solidão
do teu quarto decorado com os quadros de Mondrian.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




13 novembro 2022

federico garcia lorca / gazel do amor desesperado

 




 

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
 
Mas eu irei,
inda que um sol de lacraus me coma a fronte.
 
Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.
 
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
 
Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.
 
Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridade.
 
Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
 
 
 
federico garcia lorca
romanceiro gitano e outros poemas
divã do tamarit (1936)
trad. de oscar mendes
editora nova fronteira
1985
 



12 novembro 2022

fernando alves dos santos / novo

 



 

Novo é aquilo que o desejo diz
o texto que existe
no subterrâneo das palavras
que se escrevem no espaço da sede.
Novo é o verbo que me encontra
e respira            e não cessa
e regressa
seara orvalhada.
Novo é o tronco
que não demora a crescer
para os olhos do sol.
Novo é a seiva
que no tronco circula pertinaz.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005