19 dezembro 2019

herberto helder / há dias...



Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas
para vê-las golfar sangue. É quando
a pedra está a prumo, quando a estaca
solar se crava atrás das casas e amadurece
como uma árvore.
Mas também ouvi a água bater directa
nas trevas. Por um abraço do sangue eu estava
condenado
ao extravio mortal. Era um dom que me fundia
à substância primária
do terror.
E à riqueza e energia. E à tremenda
doçura humana. Vejo algerozes escoando a massa
das cúpulas, a forma, supremas rosas de pedra
rotativa.




herberto helder
flash
empira
roma
1987








18 dezembro 2019

leopoldo maría panero / leitura




Eu não falo do sol, mas da lua
que ilumina eternamente este poema
onde um bando de crianças corre perseguido pelos lobos
e o verso entoa um hino ao pus.
Oh, amor impuro! Amor das sílabas e das letras
que destroem o mundo, que o livram
de ser verdadeiro, de estar aí para nada,
como um regato
que não reflecte a minha imagem,
espelho do vampiro
daquele que, de dentro da página
vai chupar o teu sangue, leitor
e convertê-lo em lágrima e em nada:
e fazer-te comungar com o aço.



leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019






17 dezembro 2019

jacques roubaud / o sentido do passado




O sentido do passado nasce
                                    de objectos-já.

Em todos os momentos evidentes
                                            procurei-te

E também em ténues
                          interregnos

Procurei quem?
                 onde
                 estás?

quem?

quem, deixou de fazer sentido

nem o quê    (sem nome, em nenhuma língua)

Eu voltaria, dando alguns passos atrás, ficaria
                                    num lugar
                                    diferente, num sentido precário.

Como se o som, ao atravessar a água,
                                    baixasse uma quarta.



jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016





16 dezembro 2019

alain morin / 5 de julho…




     Estou a lavar a louça. Arranco um último grito aos pratos afogando-os na espuma. As facas serrilhadas que vou buscar às profundezas da tina todas sujas de queijo ou de manteiga, hei-de esfregá-las até não restarem os mais ínfimos vestígios, para que subsista apenas o futuro da mesa posta, onde elas e os garfos estarão, como uma mecânica de luto, de cada um dos lados do disco gelado onde assenta o miserável coração do mundo. São elas o presente do metal – bem como eventualmente o seu futuro – e a sua dinâmica no estreito espaço onde serão utilizadas determinará a abstracção da refeição.



alain morin
trad. luís miguel nava
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





15 dezembro 2019

isabel meyreles / o retrato do marinheiro



                        I

Os olhos são cinzentos,
palhetados de negro,
o ciúme os pinta
de um verde azul boreal
o nariz é curto
as maçãs eslavas
os lábios cheios.
Nos dias em que mais seduz
ri muito e forma
três rugas no canto da boca.



isabel meyreles
poesia
o rosto deserto 1966
tradução de natália correia
quasi
2004





14 dezembro 2019

valter hugo mãe / a terra pesa os mortos avalia-os



6
atiro a cabeça ao
chão como flecha entre o
arco dos braços.
quisera tragar o mundo, passar
pela boca a rotação da terra, como
uma mãe que nascesse todos
os dias


valter hugo mãe
estou escondido na cor amarga do fim da tarde
campo das letras
2000





13 dezembro 2019

charles bukowski / o milagre



Trabalhar com uma forma de arte
não significa
mandriar como uma ténia
de barriga cheia,
nem justifica grandeza
ou ganância, nem seriedade
a toda a hora, creio antes
que é um apelo aos melhores homens
nos seus melhores momentos,
e quando eles morrem
e outra coisa não morre,
assistimos ao milagre da imortalidade:
homens que chegaram como homens
partiram como deuses –
deuses que sabemos que aqui estiveram,
deuses que agora nos permitem continuar
quando tudo o mais nos diz para parar.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





12 dezembro 2019

marianne moore / o retiro do mágico




de mediana altura
(que eu vi)
fosco mas lá dentro luz
tal pedra da lua
enquanto fulgia um halo
de frecha de um estore
e um brilho azul do lampião
junto à porta de entrada.
Não dava razão de queixa,
nada mais para obter,
consumadamente chão.


Um maciço de árvores negras por trás
quase tocando as caleiras
com a nitidez de Magritte,
era sobretudo discreto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018





11 dezembro 2019

roberto juarroz / às vezes parece




Às vezes parece
que estamos no centro da festa.
No entanto
no centro da festa não há ninguém.
No centro da festa está o vazio.


Mas no centro do vazio há outra festa.



roberto juarroz
trad. arnaldo saraiva
hífen 7 abril
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992






10 dezembro 2019

joão almeida / só



Encontrei Georges, meio profeta
Meio cavalo, estendido no chão

Olhos inofensivos de longa vigília
Cheirava a mofo e a rim

Levantou a cabeça para me ver mijar

Lembrava-lhe a infância
As histórias do pai
Mulheres que mijavam de pé
Em aldeias extintas

Mais droga, porno e poesia
Fomos conversando.


joão almeida
canto skin
língua morta
2019





09 dezembro 2019

joão do nascimento / são poucas as coisas que são-tudo




são poucas as coisas que são-tudo. uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. a rua onde mora. o lembrar. as-telhas de ver porque apenas reflexo, e o silêncio da cor, que não-mais do que uma ausência muito constante de livros-à conversa com os pássaros. quando a conversa dos pássaros é tudo é-mais do que tudo. e o mar é-sempre
          porque saber mentir é semelhante a escrever nas costas-dos postais. é semelhante a demorar muito nos sítios-de passagem. é semelhante a acreditar nas árvores. no tempo de que são feitas as árvores. é quase igual a acreditar. e depois. e depois, são poucas as coisas que são-tudo. como: uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. e se alguma semelhança existe entre a gaveta e as coisas que guarda. a semelhança é possivelmente mais, e o mar é-sempre

15/03/01



joão do nascimento
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002





08 dezembro 2019

bernardo soares / a literatura, que é a arte casada com o pensamento,



A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.

s.d.





fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







07 dezembro 2019

cesare pavese / oficio de viver



3 de Fevereiro de 1941

Que existe afinal, na minha ideia fixa de que tudo consiste no secreto e amoroso «em si», que cada criatura oferece a quem a sabe penetrar? Nada, porque esta amorosa comunhão nunca a pude realizar.

No fundo, o segredo da vida é fazer como se tivéssemos o que mais dolorosamente nos falta. O preceito cristão está aqui inteiro. Convencermo-nos de que tudo foi criado para o bem, que a fraternidade humana existe – e se não é verdade, que importa? O conforto desta visão consiste em acreditar-se nela, não no facto de que seja real. Porque se acredito, se tu, se ele, se eles acreditam, tornar-se-á verdadeira.





cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004