13 dezembro 2018

wislawa szymborska / amor feliz



Amor feliz. Será normal,
será sério, será útil? —
que tem o mundo a ver com duas pessoas
que não vêem o mundo?

Erguidos ao seu céu sem mérito nenhum,
os melhores entre milhões e convencidos
que assim tinha que ser — a premiar o quê? Nada;
de algum ponto cai a luz —
e porquê logo sobre estes e não outros?
Ofenderá isto a justiça? Sim.
Perturbará os princípios estabelecidos com cuidado?
Derrubará do seu púlpito a moral? Perturba e derruba.

Olhem-me bem estes felizardos:
se ao menos se mascarassem um pouquinho,
fingissem melancolia dando assim algum ânimo aos amigos!
Ouçam bem como se riem — é um insulto.
A linguagem que usam — entendivel, pelos vistos.
E aquelas cerimónias, etiquetas,
obrigações rebuscadas um para com o outro —
parece mesmo um acordo nas costas da humanidade.

É difícil até de prever no que daria
se um tal exemplo pudesse ser seguido.
Com que é que poderiam contar as religiões, a poesia,
de que nos recordaríamos, de que desistiríamos,
quem quereria pertencer ao círculo?

Amor feliz. Assim terá que ser?
Tacto e bom senso mandam omiti-lo
como a um escândalo nas altas esferas da Existência.
Magníficas crianças nascem sem a sua ajuda.
Nunca por nunca ele poderia povoar a terra
já que tão raro é acontecer.

Deixem que quem não conheceu o amor feliz
afirme que não há amor feliz.

Com esta crença mais leve lhes será tanto viver como morrer.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







12 dezembro 2018

sylvia plath / papoilas em outubro




Esta manhã nem mesmo as nuvens entre o sol podem pôr estas
     saias.
Nem a mulher na ambulância
De coração vermelho a florescer assombrosamente através do
     casaco –

Uma oferenda, uma oferenda de amor
Jamais pedida
Nenhum céu

Esmaiado e em chamas
Pondo a trabalhar o seu monóxido de carbono, nenhuns olhos
Estáticos, em sentido sob chapéus de coco.

Ó meu Deus, o que sou eu
Possam as últimas bocas gritar alto
Numa floresta de gelo, num amanhecer de centáureas.


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996








11 dezembro 2018

anna akhmatova / tantas vezes maldizia



Tantas vezes maldizia
Este céu e esta terra,
As mãos do moinho com musgo
Agitando-se pesadas!
No anexo está um morto,
Hirto e grisalho, num banco,
Como há três anos atrás.
Os ratos roem os livros,
Para a esquerda verga a chama
Da vela de estearina.
E canta e canta odioso
O guizo de Níjni-Novgorod
Uma singela canção
Da minha alegria amarga.
E pintadas vivamente
Erguem-se rectas as dálias
Pelo carreiro de prata
Com caracóis e absinto.
Foi assim: a reclusão
Tornou-se segunda pátria,
Mas da primeira não ouso
Nem nas preces recordar.

Julho de 1915
Slepnevo




anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003







10 dezembro 2018

steve klepetar / mille feuille




Ando à procura de alguém nesta
rua deserta, perto dum café onde
um dia comemos o melhor Mille Feuille

de sempre, mas ela desapareceu há horas,
muito depois de todos os camiões passarem,
os autocarros arquejarem e se sumirem no calor.




steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










09 dezembro 2018

alberto caeiro / não basta abrir a janela





Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

4-1923



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946






08 dezembro 2018

eugénio de andrade / branco no branco




XLIX

As casas entram pela água,
a porta do pátio aberta à estrela
matutina, em flor
os espinheiros,

nas janelas apenas a cintilação
juvenil do mar antigo,
esse que viu ainda as naves
do mais errante de quantos marinheiros

perderam norte e razão
a contemplar a reflectida estrela
da manhã:
só na morte não somos estrangeiros.




eugénio de andrade
branco no branco
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






07 dezembro 2018

juan gelman / nota XXII




     ossos que deram fogo a tanto amor
exilados do sul sem casa ou número
agora dessonham tanto sonho destruído
uma fadiga distrai sua alma

     passeiam pela dor como crianças
sob a chuva alheia / uma mulher
fala em voz baixa com seus pedacinhos
como embalando-os não ser / ou nunca

     partiram do país ou pátria ou puma
que percorria a cabeça como
dita infeliz / país de memória

     onde nasci / morri / tive substância /
ossinhos que juntei para acender /
terra que me enterrava para sempre



juan gelman
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. josé bento
assírio & alvim
2001






06 dezembro 2018

richard zenith / só coisas boas



Nas ruas das grandes cidades do Brasil
Ninguém carrega consigo uma história.
Os rapazes que se esfregam pelo bar à esquina
Respiram leveza, de camisas brancas
Desabotoadas. Já têm idade para
Gostar de cerveja mas ainda não sentem o barulho
E os escapes dos autocarros parando pela Avenida
Abaixo. E nem sequer vêem os mendigos
Estropiados batendo o passeio largo e sujo.
Porém eles (os rapazes) por vezes dão-lhes
Dinheiro, como se fosse natural, ou mesmo,
Uma vez por outra, uma cerveja. E então eles
(Os mendigos) vão andando de mãos
Estendidas, como se fossem elas
A oferecer a vida ao mundo.

Pago a minha cerveja e vou atrás deles
Na torrente pedestre, onde todos
São exactamente o que eu vejo à luz sem nuvens
Do sol subtropical. Esbarro em alguém
E instintivamente volto-me
Com uma desculpa muda, por sua vez recebida
Pela linguagem universal de olhos e mãos,
Que foi sem querer,
Aconteceu, e eu avanço, perdido
De repente no presente entre tantos como eu.



richard zenith
trad. maria irene ramalho
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998








05 dezembro 2018

jane hirshfield / os meus olhos




Uma hora não é uma casa,
uma vida não é uma casa,
não se atravessam como se
fossem portas dando para outra.

Contudo uma hora pode ter forma e proporção,
quatro paredes, um tecto.
Pode deixar-se cair uma hora como se fosse um copo.

Alguns querem tranquilidade como outros querem pão.
Alguns querem sono.

Os meus olhos foram
à janela, como um gato ou um cão deixado sozinho.



jane hirshfield
a mulher do casaco vermelho
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017








04 dezembro 2018

neil curry / sobre a vida em geral




Às vezes parece-me viver a minha vida
Como uma criança no circo, espantada
Com os leões, os malabaristas e os palhaços,
A equilibrista de saia de lantejoulas;
Silenciosa perante tanta animação e
O encanto de tudo; um silêncio
Para o qual tanto desejo encontrar palavras.



neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017









03 dezembro 2018

steve mccaffery / k como em sono



Devia achar difícil
reencontrar o lugar entre estas perdas,
véus,
o que não faz história.

O primeiro bígamo e apontar
para atributos canónicos
onde um corpo vem e se desfaz
dividido em despidas agressões
do espelho.

Não entender
como imobilidade
o signo
que é
ou o fio de cabelo que entre outros
permite
a definição.

Ficar afásico.
Apenas frequentar a linguagem
quando nos perturba.


Aqui ninguém tem por certa
a voz da paixão
o desejo televisivo de permanecer
a criança de serviço
com a lembrança de encomenda, pois
o ódio em agonia é diferente
numa cena possuída
depois reencenada.



steve mccaffery
poesia do mundo/3
trad. graça capinha
edições afrontamento
2001







02 dezembro 2018

alberto caeiro / sim, talvez tenham razão.




Sim, talvez tenham razão.
Talvez em cada coisa uma coisa oculta more,
Mas essa coisa oculta é a mesma
Que a coisa sem ser oculta.

Na planta, na árvore, na flor
(Em tudo que vive sem fala
E é uma consciência e não o com que se faz uma consciência),
No bosque que não é árvores mas bosque,
Total das árvores sem soma,
Mora uma ninfa, a vida exterior por dentro
Que lhes dá a vida;
Que floresce com o florescer deles
E é verde no seu verdor.

No animal e no homem entra.
Vive por fora por dentro
É um já dentro por fora,
Dizem os filósofos que isto é a alma
Mas não é a alma: é o próprio animal ou homem
Da maneira como existe.

E penso que talvez haja entes
Em que as duas coisas coincidam
E tenham o mesmo tamanho.

E que estes entes serão os deuses,
Que existem porque assim é que completamente se existe,
Que não morrem porque são iguais a si mesmos,
Que podem mentir porque não têm divisão [?]
Entre quem são e quem são,
E talvez não nos amem, nem nos queiram, nem nos apareçam
Porque o que é perfeito não precisa de nada.

4-6-1922



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas completos de alberto caeiro, fernando pessoa
presença
1994







01 dezembro 2018

herberto helder / poemacto




III
O actor acende a boca. Depois, os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus,
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente
como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas —
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996