24 outubro 2014

gil t. sousa / no lado maior do que não há



ir
no redondo da vela mais branca

navegar
o silêncio dos clarões

passar
por nenhuma ponte

morrer
no lado maior do que não há





gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014





23 outubro 2014

jorge de sousa braga / o frigorífico branco



O frigorífico estava vazio
Apesar desse aspecto desolador
foi ao mercado
e com todo o dinheiro que lhe restava
comprou um enorme ramos de junquilhos



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991





22 outubro 2014

vittorio sereni / nevoeiro



Aqui o trânsito treme
suspenso na luz
dos semáforos imóveis.
Eu venho do lado
onde a cidade se adensa
e um sopro de alto-forno a esconde.
Peço ao coração uma voz, responde-me
um ruído constante
de fundições, de martelos.

E o tempo passa a inverno
eu bato as ruas
que aos dias de raposas meigas
outono de feltros verdes florescia,
as avenidas celestiais do depois da chuva.
Ao sinal de luz avança
e fica um ano, nestas terras.
Acende-se a um canto um sol efémero,
um tufo de mimosas
na branquíssima névoa.



vittorio sereni
frontiera
edizione di corrente
milano 1941


(versão de stefano cortese e gil t. sousa)




21 outubro 2014

antónio maria lisboa / uma vida esquecida



Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada.

Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.




antónio maria lisboa
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985





20 outubro 2014

leopoldo maría panero / le bon pasteur(haikú)



É duro o trabalho do pesadelo,
                                               é duro
arrastar de dia o carro das marionetas,
de noite; e ser uma delas
pela manhã, quando abrem os olhos
                                                         para não ver
que a bailarina de corda que dança entre elas
move ela mesma a mola.

      Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979



leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014




19 outubro 2014

bernardo soares / trovoada



59

[s.d.; 1930?]


Este ar baixo de nuvens paradas. O azul do céu estava sujo de branco transparente.

O moço, ao fundo do escritório, suspende um minuto o cordel à roda do embrulho eterno…
«Como está […],» comenta estatisticamente.

Um silêncio frio. Os sons da rua como que foram cortados à faca. Sentiu-se, prolongadamente, como um mal-estar de tudo, um suspender cósmico da respiração. Parara o universo inteiro. Momentos, momentos, momentos. A treva encarvoou-se de silêncio.
Súbito, aço vivo, (…)

Que humano era o toque metálico dos eléctricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo.

Oh, Lisboa, meu lar!




fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares
ática
1982



18 outubro 2014

stéphane mallarmé / sinfonia literária (*)




No inverno, quando sinto um torpor envolver-me, mergulho cheio de prazer nessas tão queridas páginas das FJeurs du mal. Mal abro o meu Baudelaire sou lançado numa paisagem surpreendente que revive aos nossos olhos com a intensidade das que têm a sua origem no ópio ou na sua profundeza. No horizonte, ao alto, estende-se um céu lívido de aborrecimento, com rasgões azuis neles feitos por uma Oração proscrita. No caminho, única espécie de vegetação, penam algumas raras árvores em cuja casca, dorida, se entrelaçam nervos despidos: o seu crescimento visível, apesar da estranha imobilidade do ar, é interminavelmente seguido por um choro tão dilacerante como o de violinos e que, atingida a extremidade dos ramos, sob a forma de folhas musicais estremecesse. Assim que penetro nesse domínio, descubro langorosos lagos dispersos corno canteiros de um eterno jardim: no granito negro das suas cercaduras, em que se encastram pedras preciosas da India, repousa uma água morta e metálica, com fontes de cobre maciças, onde um raio bizarro se vem tristemente reflectir, com a graça das coisas fenecidas. Nenhumas flores, em volta, por terra — mas apenas, de longe em longe, penas de asas de algumas almas decaídas. O céu, que um segundo raio, logo seguido de outros, finalmente ilumina, perde rapidamente a sua lividez e desprende o azul claro desses dias de Outubro, magníficos, enquanto a água, o granito de ébano e as pedras preciosas depressa flamejam como só o fazem, ao entardecer, os pavimentos da cidade: é o Sol que se põe! E, oh prodígio!, uma vermelhidão singular, em torno da qual alastra o odor enervante de cabeleiras que se soltam, cai em cascata do céu obscuro! Tratar-se-á de um dilúvio de rosas corruptas de que o pecado constituísse o único perfume? —Sangue?, ou uma pintura?— Estranho pôr do Sol! Ou iimitar-se-á esta inundação unicamente a ser o rio das lágrimas avermelhadas pelo fogo de artifício de um Satã saltimbanco que, escondido, mexe os cordelinhos? Ouçam como cai com um ruído de beijos, lascivo... Por fim trevas de tinta invadem tudo e ouve-se apenas, com o remorso e a Morte, esvoaçar o crime. Então cubro o rosto e um choro arrancado menos da minha alma por tal pesadelo do que por uma amarga sensação de exílio, atravessa o negro silêncio. Pátria—O que é para nós afinal o país mais íntimo?

Fecho o livro, os olhos, e procuro-a. Diante de mim ergue-se a aparição do sábio poeta que m’a aponta por meio de um hino misticamente ascendente, como se fosse um lírio. O ritmo desse canto assemelha-se à rosácea de uma velha igreja: no meio da ornamentação de cantaria antiga, com um seráfico sorriso ultramarino que parece mais  ser a oração que dos seus olhos azuis se desprende do que o nosso costumado azul, anjos, fazendo-se acompanhar de harpas, imitação das suas asas ou címbalos de um ouro primitivo, da brancura das óstias o seu êxtase entoam — puros raios agora modelados como trombetas e tamborins onde ainda ressoa a virgindade dos trovões imaturos. — As santas trazem palmas, e embora eu não levante o olhar mais alto do que as virtudes teologais — de tal forma a santidade do lugar é inefável —, ouço ribombar infindavelmente o agradecimento: Aleluia!



(*) Este texto de Mallarmé, quo aqui apenas reproduzimos parcialmente, foi publicado pela primeira vez sob a forma de artigo» no número de 1/2/1865 do jornal L’artiste. Neste texto Mallarmé, além de Charles Baudelaire, refere-se também a Théophile Gautier e a Thóodore Bainville. Posteriormente Mallarmé corrigiu a redacção inicial do «artigo», tendo anotado à margem uma nova sugestão de título: «No meu divã, com três livros — invocação, seguida de solilóquio». (N. do T.)




stéphane mallarmé
baudelaire
escritos íntimos
tradução de fernando guerreiro
editorial estampa
1994




17 outubro 2014

herberto helder / queria fechar-se inteiro num poema



queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima


herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014




16 outubro 2014

boris vian / rua transversal



Na Rua Transversal
Cresciam rosas
E uma data doutras coisas
Que ninguém via


Na Rua Transversal
Havia um velho bébé
Que chorava à janela
Poqu´ia cair


Na Rua Transversal
Havia uma avó
Que mostrava o traseiro
Por duzentos e trinta e cinco francos


Na Rua Transversal
Em silêncio junto de um pórtico
Havia um militar
Com os pés no bicórnio


Na Rua Transversal
Havia um inventor
Que fabricava balões
A preto e a cor


Na Rua Transversal
Havia uma guilhotina
Que cortava o charuto
Para o papá da Alina


Na Rua Transversal
Havia namorados
Debaixo dos umbrais
Olhos nos olhos fixados


Na Rua Transversal
Havia leões ferozes
Vestidos de cossacos
Para irem para a boda


Na Rua Transversal
Nunca se lá passava
Não era uma rua a sério
E todos estavam mortos...

  

boris vian
canções e poemas
tradução de irene freire nunes e fernando cabral martins
assírio & alvim
1997




15 outubro 2014

sylvia plath / o jardim do solar




As fontes estão secas e as rosas acabaram.
Incenso da morte. O teu dia aproxima-se.
As pêras engordam como pequenos budas.
Uma névoa azul prolonga o lago.

Moves-te através da era dos peixes,
dos presumidos séculos do porco...
A cabeça, os dedos dos pés e das mãos
saem nítidos da sombra. A História

alimenta estas caneluras quebradas,
estas coroas de acantos,
e o corvo vem arranjar as suas vestes.
Tu herdas a urze branca, uma asa de abelha.

Dois suicidas, os lobos da família,
horas de escuridão. Algumas estrelas isoladas
já iluminam os céus.
A aranha na sua própria teia

atravessa o lago. Os vermes
abandonam as suas casas habituais.
As pequenas aves convergem, convergem
com as suas dádivas para um difícil nascimento.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





14 outubro 2014

josé gomes ferreira / extrai do todos-os-dias


I

                               (Didáctica.)

Extrai do todos-os-dias
o hoje de todo-o-sempre
até ao fim do mundo
quando o sol gelar
a última eternidade.

Embala amanhã nos braços dos outros
a criança esquecida
que foi agora atropelada
por mil automóveis
em todas as ruas do mundo…

Procura nas lágrimas recentes
os olhos que hão-de chorá-las
daqui a dez mil anos…

E se queres a glória
de ser ignorado
pelo egoísmo do futuro
ouve, Poeta do Desdém Novo:
canta os mortos das barricadas
e a volúpia das dores do tempo.

(Mas pede às rosas
que continuem a repetir-se
até ao fim das pedras…
─  em memória do sangue apagado dos homens.)



josé gomes ferreira
pessoais 1939-1940
poesia III
portugália
1971




13 outubro 2014

antónio cândido franco / carta do céu



O céu precisa de uma câmara escura
para revelar a sua vida terrestre
e por isso imagina a noite absoluta e nua

O céu é como um espelho da terra
Onde os astros parecem os animais terrestres




antónio cândido franco
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002




12 outubro 2014

ricardo reis / vem sentar-te comigo, lídia, à beira do rio




Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                   (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
                  Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
                  E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                 E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
               Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbulo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio -,
                  Pagã triste e com flores no regaço.




ricardo reis