08 novembro 2013

augusto meneghin / boletim meteorológico do amor




nada de ser perfeito,
medir as coisas pela fita métrica
e dizer te amo demais. a maresia,
o ritmo bastam para solucionar
estes desencontros habituais dos lábios.
ninguém precisa amar um estofado
cuja cor nos obriga a alegria.
é insuportável que a louça esteja
sempre limpa e guardada no armário.
pela manhã é bom que a xícara
tenha um café seco em seu fundo
onde se enxerga um mapa-múndi das
brigas desde o início de nossa relação.
sim, viver é insuportável se não houver
ao menos uma chuva que destrua parte
da casa ou deixe uma estrada de barro
pela sala de estar. outra coisa misteriosa
é como gritar sem que ninguém perceba,
sofrer por alguma desconfiança tola
e sorrir escondido quando o destino
nos mostra que a imaginação humana
não passa de um alçapão bem elaborado.
como investigar uma beleza de bruços?
seduzir com algum filtro secreto
estando com um pijama rasgado?
e conciliar a aliança com essa vontade
insaciável de despir outras pessoas?
em algum momento avançado da velhice
talvez os orgãos parem de funcionar
e uma ereção torne—se um evento glorioso,
quem sabe? morrer antes não é má ideia
se colocarmos o abandono como única possibilidade.
nenhum asilo com cerca cor de rosa
conseguiu me convencer que o corpo pode
esperar o fim depois da poesia.
mas não é curioso como o amor
nos conduz envolventemente
por uma linha temporal inventando
imagens de morte,
esquecimento e abandono?
a cor, neste caso, é velocidade.
o botão da camisa, um pretexto,
a gema mole, um desgosto,
o cachorro, um dilema,
o sexo, um hábito.
por que este capítulo de ventos
ainda é surpreendente?
já não basta de poemas, literatura,
psicologia e traição?
por que os olhos ainda brilham depois
de tantos anos secando lentamente
e as roupas no varal sendo molhadas
por deus quem as esqueceu novamente?
vai longe o balão
tocar o teto de uma nuvem.
é sempre assim.

  

augusto meneghin
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013




07 novembro 2013

thom gunn / o concerto ao ar livre



Na orla
da compreensão
está o segredo.

Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.

O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.

O segredo
é ainda segredo

não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa intercepção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,

um deus existindo
apenas na sua criação.




thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



06 novembro 2013

gil t. sousa / memória


21

e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

em lugares mais seguros
que fotografias
ou poemas


gil t. sousa
água forte
2005



05 novembro 2013

cesare pavese / paisagem VI



Este é o dia em que as brumas do rio saem
para a bela cidade no meio de prados e colinas
e a esfumam como uma recordação. Os vapores confundem
os verdes, mas as mulheres das cores vivas ainda
caminham por ela. Vão na branca penumbra
sorridentes: na rua tudo pode acontecer.
Pode acontecer que o ar embebede.

A manhã
ter-se-á aberto num dilatado silêncio
atenuando as vozes. Até o pedinte,
que não tem cidade nem casa, o terá respirado,
como aspira o copo de aguardente ao desjejum.
Vale a pena ter fome ou ter sido traído
pela boca mais doce, só para sair com aquele céu
e voltar a encontrar no hálito as mais diáfanas recordações.

Cada rua, cada simples esquina
na bruma conserva um antigo tremor:
quem o sente não pode abandonar-se. Não pode abandonar
a sua embriaguês tranquila, feita de coisas
duma vida cheia, descobertas ao acaso
duma casa ou duma árvores, dum súbito pensamento.
Também os grandes cavalos que passarão
entre as brumas de madrugada falarão daquele tempo.

Ou talvez um rapaz fugido de casa
volte precisamente hoje em que a bruma
se eleva sobre o rio e esqueça toda a vida,
a miséria, a fome e as lealdades traídas,
para parar a uma esquina bebendo a manhã.
Vale a pena voltar, mesmo que seja diferente.



cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997




04 novembro 2013

heinrich heine / bom conselho




Põe sempre os nomes aos bois
Nas histórias que contares.
Ou logo os burros depois
Se queixam de os retratares:

"Mas são as minhas orelhas!
Este azurrar é o meu!
Se estas são minhas guedelhas!
Ai este burro sou eu!

Não me nomeie ele embora,
Toda a Pátria vai agora
Saber-me por burro, hin-hã!
Ai que eu, hin-hã, hin-hã!"

- Quiseste a um burro poupar...
Logo doze hão-de zurrar.



heinrich heine
poesia de 26 séculos
segundo volume
de bashô a Nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972




03 novembro 2013

álvaro de campos / acordar da cidade de lisboa



Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 
Acordar da Rua do Ouro, 
Acordar do Rossio, às portas dos cafés, 
Acordar 
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 
 
Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.  
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se  
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,  
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 
 
Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, 
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,  
Seja 
 
A mulher que chora baixinho 
Entre o ruído da multidão em vivas... 
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 
Cheio de individualidade para quem repara... 
O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 
Tudo isto tende para o mesmo centro, 
Busca encontrar-se e fundir-se 
Na minha alma. 
 
Eu adoro todas as coisas 
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 
Tenho pela vida um interesse ávido 
Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 
Para aumentar com isso a minha personalidade. 
 
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 
E a minha ambição era trazer o universo ao colo 
Como uma criança a quem a ama beija. 
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 
Do que as que vi ou verei. 
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 
 
Dá-me lírios, lírios 
E rosas também. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também, 
Crisântemos, dálias, 
Violetas, e os girassóis 
Acima de todas as flores... 

Deita-me as mancheias, 
Por cima da alma, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 

Meu coração chora 
Na sombra dos parques, 
Não tem quem o console 
Verdadeiramente, 
Excepto a própria sombra dos parques 
Entrando-me na alma, 
Através do pranto. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 
 
Minha dor é velha 
Como um frasco de essência cheio de pó. 
Minha dor é inútil 
Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 
E minha dor é silenciosa e triste 
Como a parte da praia onde o mar não chega. 
Chego às janelas 
Dos palácios arruinados 
E cismo de dentro para fora 
Para me consolar do presente. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 
 
Mas por mais rosas e lírios que me dês, 
Eu nunca acharei que a vida é bastante. 
Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 
Sobrar-me-á sempre de que desejar, 
Como um palco deserto. 
 
Por isso, não te importes com o que eu penso, 
E muito embora o que eu te peça 
Te pareça que não quer dizer nada, 
Minha pobre criança tísica, 
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também..


álvaro de campos





02 novembro 2013

sylvia plath / ovelhas na névoa



As colinas penetram na brancura.
Homens ou estrelas
olham-me com tristeza, desiludo-os.

O comboio deixa um rastro do seu alento.
Oh vagaroso
cavalo da cor da ferrugem.

Cascos, dolorosos sinos...
Toda a manhã
a manhã obscureceu

uma flor abandonada.
Os meus ossos absorvem a quietude, longínquos
campos enternecem o meu coração.

Ameaçam
levar-me para um céu
sem estrelas e sem pai: uma água negra.


sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990




01 novembro 2013

sarah kane / falta



B   Aquilo que eu receio acaba por me acontecer.
C   Odeio-te,
B   Preciso de ti,
M   Preciso de mais,
C   Isto tem de mudar.
A   Toda a completa e previsível e enjoativa futilidade que é a nossa relação.
M   Quero uma vida verdadeira,
B   Um verdadeiro amor,
A   Com raízes e a crescer à luz do dia.
C   O que é que ela tem que eu não tenho?
A   A mim.
B   As coisas que eu quero, quero-as contigo.
M   Não. Sou. Eu.
A   Não há segredos.
M   Só há cegos.
A   Apaixonaste-te por uma pessoa que não existe.
C   Não.
M   Sim.
B   Não.
A   Sim.
C   Não.
B   Não.
M   Sim.
C   Eu sabia,
B   Eu sabia,
C   Por que é que não consigo aprender?
A   Não aceito uma vida nas trevas.
B   Não olhes para o sol, não olhes para o sol.
C   Amo-te.
M   Tarde de mais.
A   Acabou.



sarah kane
teatro completo
trad. pedro marques
campo das letras
2001



31 outubro 2013

natércia freire / a morte de calar



As viagens que sou prenderam-se em redomas
Ao corpo das palavras. À morte de calar.
Do alfabeto meu ignoro as cristalinas
Formas de aladas letras nestes versos finais.
São fantasmas de sol. São fantasmas de sede
Que chegam alta noite para nenhum lugar.

Decifro nas entranhas das trevas migradoras
O solstício da vida além da morte clara.
Mas quem me vem cegar, com setas voadoras
Nega-me agora a paz das secretas paisagens.

Meus Irmãos de astronaves, guiadas por um morto,
Que me esperam e estão, que me cantam e falam.
Que na vazia Cruz crucificam meu corpo
E abandonam a flor, mesmo a meio da sala.
À janela rasgada, para as cinzentas águas,
Encostam-me, sem olhos, e deixam-me ficar.

Não tenho nada mais a escrever sobre as ondas.
E mesmo que tivesse, ninguém leria o mar.



natércia freire
foi apenas ontem
1977-1987




30 outubro 2013

raul brandão / a outra coisa



O que era vida irreal, é agora realidade,
o que era vergonha, ninharia e ridículo, é vida agora.
O que toma pé são os sonhos,
o que se agita são as paixões desregradas.
Não há limites nem peias.
Vêem-nos como eu te vejo a ti.
Tenho diante de mim este espectáculo,
como se fosse possível aos homens desdobrarem-se
e tomarem corpo, ideias e paixões.
Eles são aquilo que ocultamente desejavam ser,
são o que não se atreviam a ser.
Sob um mundo de verdade há outro mundo de verdade.
É esse mundo invisível e profundo
que passa a ser o inundo visível.
É esse.
Todo o homem é uma série de fantasmas
e passa a vida a arredá-los.
Chegou a vez dos fantasmas.
As nossas ideias e paixões
é que formam as figuras que actuam na vida.

(...)



raul brandão
húmus
a outra coisa, fragmento
frenesi
2000





29 outubro 2013

konstandinos kavafis / fui



Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.

E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.




konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994


28 outubro 2013

heiner müller / hiena



A hiena gosta dos blindados imobilizados no deserto
porque as suas tripulações estão mortas.
Ela pode esperar.
Ela espera até que mil e uma tempestades de areia
tenham corroído o aço.
Então chega a sua hora. A hiena
é o animal heráldico das matemáticas.
Ela sabe que não deve haver resto.
Seu deus é zero.

  

heiner müller





27 outubro 2013

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)



I

  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  (...)

  que morderam detectives no pescoço e guincharam com deleite em carros da polícia
  por terem cometido nenhum crime a não ser a sua própria pederastia falsificada e intoxicação,

  que uivaram de joelhos no metro e foram arrastados para fora do tejadilho
  acenando genitais e manuscritos,

  que se deixaram ser fodidos no rabo por motociclistas santificados, e
  gritaram de prazer,

  que brocharam e foram brochados por aqueles serafins humanos, os marinheiros,
  carícias do Atlântico e amor Caraíbeano,

  que deram cambalhotas de manhã nas tardes em roseirais e na relva
  de jardins públicos e cemitérios disseminando livremente o seu sémen a

  quem quer que viesse que fosse possível,

  que soluçaram sem fim tentando rir sem motivo mas que acabaram com um soluço
  atrás de uma divisória num Banho turco quando o anjo louro & despido veio para os atravessar com uma espada,

  que perderam os seus rapazes de amor para as três velhas víboras do destino a víbora
  zarolha do dólar heterossexual a víbora zarolha que pestaneja para fora
  do útero e a víbora zarolha que não faz nada senão sentar-se no seu
  rabo e cortar os dourados fios intelectuais do tear do artesão,

  que copularam estática e insaciavelmente com uma garrafa de cerveja uma namorada
  um maço de cigarros uma vela e caíram da cama abaixo, e
  continuaram pelo chão fora e através do corredor e terminaram desmaiando na
  parede com uma visão de cona derradeira e vieram-se eludindo a última
  fase de consciência,

  que fizeram transpirar as rachas de um milhão de raparigas estremecendo no
  pôr-do-sol, e que estiveram de olhos avermelhados na manhã mas preparados para fazer transpirar a racha do nascer-do-sol,
  exibindo as nádegas ao abrigo dos celeiros e despidos no interior do lago,

  que se foram prostituindo pelo Colorado numa miríade de carros nocturnos roubados,
  N.C., herói secreto destes poemas, homem-picha e Adónis de Denver--júbilo à
  memória das suas inúmeras raparigas deitadas em parqueamentos vazios & quintais traseiros de restaurantes,
  nas filas de assentos das casas de cinema, nos topos de montanhas em grutas
  ou com empregadas de mesa delgadas de saia levantada na borda solitária da estrada familiar & solipsismos de retretes
  na estação de serviço especialmente secreta, & também becos da cidade berço,

  que se esvaíram em vastos filmes sórdidos, foram alterados em sonhos, despertaram
  numa súbita Manhattan, e se pegaram a si mesmos ao colo para fora da cave
  de ressacas com Tokay implacável e horrores de sonhos de ferro de Third Avenue & tropeçaram para agências de desemprego,

  que caminharam toda a noite com os seus sapatos cheios de sangue na margem
  coberta de neve das docas esperando que uma porta no East River se abrisse para uma sala cheia de vapores quentes e ópio,

  que criaram enormes dramas suicidas no apartamento dos bancos íngremes na
  margem do Hudson debaixo da luz azul diluviana da lua do tempo de guerra
  & as suas cabeças serão coroadas de louro no oblívio,

  que comeram o guisado de cordeiro da imaginação ou digeriram o caranguejo no
  fundo lamacento dos rios da Bowery,

  que choraram perante o romance das ruas com os seus carrinhos de mão cheios de
  cebolas e música de má qualidade,
  (...)


  

  allen ginsberg