09 maio 2007

alma simétrica




faremos um pacto
alma simétrica
jamais vista em
qualquer horizonte

selaremos o pacto
com a linfa em que se banham
os nossos sentimentos
eriçados de tremendas
hesitações

guardaremos o pacto
no cofre mágico
das coisas verdadeiras
das coisas desejadas
na nossa decrepitude

esqueceremos o cofre
o pacto
as coisas verdadeiras
desejadas
nos limbos
das perdições

encheremos de ouro
os ramos
desfolhados das
árvores sem raízes
das árvores esvaziadas
da volátil seiva
do frágil fio
de prata
que une as coisas
desunidas

faremos uma cúpula
de águas
em sinfonias
transparentes
e luzes de palcos
habitados

seremos
os construtores das nossas
harmonias
os pais dos imanentes
regatos
da nossa hidrografia

novos deuses seremos
minha alma simétrica








m.f.s.

07 maio 2007

senhor…




Senhor, o amor é uma coisa que mete medo
não sabeis pois que se trata de um trabalho difícil
exige uma coragem e uma fé além do improvável
uma humanidade indizível
uma fraternidade cega
dinheiro e garrafas
crianças ao acaso
olhares nem sequer fulminantes
e charcos de céu
e festas campestres
quando o tempo permite
o amor quer idas à pesca, patins e chocolate negro
o amor quer a curva suave e a facilidade
é tão difícil, Senhor
não poderia descrevê-lo
em toda a sua volúpia
para lá dos seus mártires
e dos seus desastres hipócritas
o amor é pleno de alegria
e segue o seu caminho
na névoa dos primeiros passos
na roupa pendurada no inverno
na corda tensa
vai para onde calha
e muito lentamente
lentamente demais o amor segue
como um ouriço do mar oco cheio de areia
como um botão que se deixa por coser
é miserável
é uma pluma
move-se ao vento
quando o coração bate
é esplêndido lavado pela maré
mesmo na maré odiosa
é onda
e é belo
é onda e é belo e cheio de algas
é o silêncio
é a luz
uma coisa assim vulgar







hélène monette
poemas
tradução de rosa alice branco







06 maio 2007

desenterrar




IV

Noite, como se saboreada
por dentro. E cada mentira nossa
seria pela língua conhecida
quando recuasse, e naufragasse
no próprio veneno.
Dormiríamos, lado a lado
com tamanha fome, e desde o fruto
que guerreamos, seríamos os nomes
das coisas que nomeamos. Como se um crime,
por nós sonhado, pudesse no frio medrar,
e despenhar estas negras, crepitantes árvores
que sorvem a história das estrelas.







paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002

05 maio 2007

água-forte



5)



cheia
da lentidão das facas


a tua sombra
a cortar o tempo






gil t. sousa




03 maio 2007

há uma pedra feroz




Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.







luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
películas
publicações dom quixote
2002




01 maio 2007

a flor da solidão




Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos









ruy belo
obra poética de ruy belo, vol.2
presença
1990






28 abril 2007

o desejo agarrado pelo rabo



«Medo dos saltos de humor do amor e humores dos saltos de cabrito da raiva. Tampa colocada no azul que se desprende das algas que cobrem o vestido engomado com ricos pedaços de carne despertada pela presença dos charcos de pus da mulher que subitamente apareceu estendida no meu leito. Gargarejo do metal fundido dos seus cabelos gritando de dor toda a sua alegria pela posse. Jogo de azar dos cristais mergulhados na manteiga derretida dos seus gestos equívocos. A carta que segue passo a passo a palavra inscrita no calendário lunar dos seus envelopes presos a espinhos faz estalar o ovo cheio de ódio e as línguas de fogo da sua vontade cavada na palidez do lírio no ponto exacto onde o limão exasperado desfalece. Duplo jogo das pedrinhas tingidas com o vermelho da cercadura do seu manto, a goma arábica que lhe goteja da calma atitude rompe a harmonia do ruído ensurdecedor do silêncio apanhado na armadilha.

O reflexo dos seus esgares pintados na vidraça aberta a todos os ventos aromatiza a dureza do seu sangue sobre o frio voo das pombas que o recebe. O negro da tinta que envolve os raios de saliva do sol que batem na bigorna das linhas do desenho adquirido a preço de ouro desenvolve, na ponta da agulha do desejo de a tomar nos braços, a força obtida e os meios ilegais de a atingir. Corro o risco de a ter morta nos meus braços, desabrochada e louca.» Carta de amor, se se quiser. Escrita cedo de mais, cedo de mais rasgada. Amanhã, ou esta noite ou ontem, mandá-la-ei para o correio graças aos cuidados dedicados dos meus amigos. Cigarro 1, cigarro 2, cigarro 3, um dois três, um mais dois mais três igual a seis cigarros; um fumado, outro grelhado e o terceiro assado no espeto. As mãos dependuradas no pescoço da corda descida a correr da árvore que levanta voo chicoteiam à grande o seu puro corpo de Vénus tão mal enjorcado. A pés juntos, o dia descarrega a carga destes anos no poço, cheio de sombra. As tripas que Pégaso arrasta após a corrida desenham-lhe o retrato sobre a brancura e a dureza do mármore brilhante da sua dor.

O ruído das persianas soltas tangendo os seus ébrios sinos sobre os lençóis amarrotados das pedras arrancam à noite gritos desesperados de felicidade. As marteladas das flores e o fedor tão belo das suas tranças temperam o guisado dos seus louros e cravinhos. Mãos volantes, mãos soltas das mangas de renda do corpete posto tão cuidadosamente dobrado sobre o veludo do sofá, apoiadas tão firmemente nas faces do machado cravado no cepo copiam melancolicamente, numa bela caligrafia redonda, a lição aprendida. Pedra dura das anémonas devorando a cal viva da cortina adormecida sobre a escada apoiada ao enxofre do céu agarrado à moldura da janela. As razões mais válidas, a iminência do perigo, os temores e os desejos que a impelem não impedem agora a alegria morosa de se instalar cómoda e para todo o sempre no sofá verde da esperança.»







pablo picasso
teatro - o desejo agarrado pelo rabo
trad. vítor silva tavares
& etc
1975


27 abril 2007

uma solidão mortal...




(...)

...«uma solidão mortal»...


Na taberna podes dizer graças,
brindar com quem quiseres, qualquer um.
Mas o Anjo anuncia-se e deves isolar-te
para o receber. Para nós, o Anjo é a noite
que desceu à pista fulgurante.
Que a tua solidão paradoxalmente se ilumine toda
e pouco importe a escuridão feita de milhares de olhos
que te julgam, temem e esperam que caias;
vais dançar sobre e dentro de uma solidão deserta,
de olhos vendados, se possível com as pálpebras agrafadas.

Mas nada - nem mesmo aplausos ou risos -
pode impedir-te de dançares para a tua imagem.
És um artista - ai de mim - não podes recusar-te
ao precipício monstruoso dos teus olhos.


Narciso dança?

Sim, mas é coisa totalmente alheia à graça sedutora,
ao egoísmo e amor de si próprio.

E sendo a Morte, em pessoa?

Deves dançar sozinho. Empalidecido, na ânsia
de agradar à tua imagem:
ou a tua imagem é quem dança para ti.

(...)








jean genet
o funâmbulo
hiena editora
1984



georges-pierre seurat (1859–1891)





circus sideshow, 1887–88



22 abril 2007

a máquina fotográfica





É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água
água imagem
água nítida e fixa
água paisagem
boca nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.


Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.


Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra à minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contratada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.


Moras aonde eu sei. É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a pista
trago a minha tristeza a tiracolo.


Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays
the sun is shinning
love.


Emendo-te rasuro-te preencho-te
assino-te destino-te comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.


Invento-te desbravo-te desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sentido à vogal do tema à consoante
sem presença no espaço sem diferença na hora.
És a rota da Índia o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro o erro do sextante
o acaso a maré o mapa a descoberta
num novo continente itinerante.










josé carlos ary dos santos
o surrealismo na poesia portuguesa
organiz. natália correia
assírio & alvim
2002






17 abril 2007

luar





o luar
era tão perto dos olhos cegos

e o teu chão

um mimo

no meu passo tão sozinho





gil t sousa
falso lugar
2004



16 abril 2007

papeis selvagens




10


De súbito, surgiram as ovelhas.
Num instante, num de baixar de olhos.
Por toda a paisagem e pela encosta do monte.
Eram cor de rosa, celeste. Sépia ou cor de platina;
as outras, brancas, negras.
Embora, por momentos, as coisas parecessem ao contrário.

Pensei que sonhava.
O que via num papel, desenhos em forma de ovelhas.
Mas não; era verdade.
Na paisagem.
E ao fechar os olhos aparecia a seguir, no ecrã negro,
um rosto rectangular, oval, e o corpo gordo, multiplicado,
sabiamente.

Pareciam ter acorrido à concentração,
convocatória, sem espanto, com alguma tristeza.

Não podia ir embora, por onde iria!
Não podia chamá-las, porque já aqui estavam.
Não podia afugentá-las, porque eram imóveis.
Não podia esquecê-las, porque não me esqueço.
Não podia aceitá-las, porque havia qualquer coisa
que não estava bem.

Eu tou entre a espada e a parede,
e isto é um pedido de ajuda.










marosa di giorgio
poemas
tradução de rosa alice branco










15 abril 2007

reflexões / paradoxos do individualismo




(…)

A nossa civilização edificou-se sobre as facilidades da comunicação, as quais ainda são uma surpresa para muitos de nós. Não há fronteiras: tudo se sabe, ainda que muito insuficientemente, e tudo pode ser visto em directo; as viagens deixaram de ser aventuras extraordinárias para se tornarem parte do que é habitual; tivemos de nos acostumar ao uso e manuseamento dos computadores, dos faxes e dos vídeos. E no entanto, temos saudades da vida em comum que já não existe. Os meios de comunicação, por estranho que pareça, não nos fazem comunicar, contribuindo antes para nos isolar no nosso próprio mundo. Nada faz com que o indivíduo se sinta mais compreendido, mais atendido, mais acompanhado. A sociedade da comunicação não é mais solidária nem mais afectiva. Não soube pôr os meios e o progresso técnico ao serviço da democracia e do entendimento mútuo. Muito menos ao serviço do ser humano. A técnica vale por si própria e só se submete ao poder económico.
As descobertas e as grandes viagens com que desponta a modernidade introduziram o relativismo no pensamento. O indivíduo deixou de ter um fim pré-fixado: foi concebido como um ser livre para forjar e escolher a sua própria vida. Nasceu a ideia da tolerância juntamente com a convicção de que o nosso mundo é plural e diverso. Desde então, sabemos que universalidade e individualismo têm de ser compatíveis. Não só é aceitável a projecção em formas de vida diferentes como a diferença é boa em si mesma, enriquece-nos a todos. Este é, no entanto, um ponto de vista que só estamos dispostos a defender em teoria e sempre e quando não nos exija demasiados sacrifícios. Hoje, no mundo desenvolvido, onde o que é diferente poderia ter mais oportunidades de expressão, as diferenças, venham de onde vierem, dissolvem-se rapidamente no crisol da americanização irreversível que engole todas as culturas. O mundo inteiro é Disneylandja. Longe de proporcionar iniciativas, o liberalismo económico homogeneíza as culturas. A moda é cómoda, dizia Ferrater Mora, porque «poupa o trabalho de pensar». Por isso, talvez, nos raros momentos de lucidez, resistimos a segui-la sem reservas e emitimos alguns sinais de oposição à mimese generalizada, à uniformidade do prêt à porter, ao simplismo do quantificável e redutível a números. Começamos a exigir mais qualidade. A qualidade de um passado que começa a parecer mais confortável: com o regresso ao regional, ao que sai da terra, ao caseiro, ao não adulterado. Ou a qualidade de um presente e um futuro menos servis perante os avanços técnicos. A qualidade, por outro lado, que nos tornará mais competitivos quando já quase nada pode ser inventado, mas tudo é muito melhorável.
O mercado não ajuda. A inércia do mercado é o obstáculo mais claro ao desenvolvimento daquilo que se tem vindo a chamar liberdade positiva. Seremos realmente autónomos, autogovernar-nos-emos? É evidente que a liberdade não é um absoluto, que as nossas circunstâncias determinam muitas das nossas preferências e escolhas. Nunca se escolhe a partir de nada. Mas, mesmo assim, escolher é uma obrigação, uma «condenação», disse o trágico Sartre. E poucas vezes se vêem as coisas desta maneira, porque ao mercado só interessam escolhas muito determinadas. O problema é que esse modelo, que só deveria valer para o consumo, vale já para tudo, por que tudo, incluindo os bens mais espirituais, deixam de ser apetecíveis se não se apresentam como bens de consumo.
Em resumo, uma quantidade de paradoxos e ambivalências que reflectem as duas faces do individualismo: a afirmação de um indivíduo autónomo e independente que quer ser expressão da humanidade mais autêntica, e a afirmação do indivíduo que se deixa moldar pelas forças, interesses ou grupos mais dominantes. Este último indivíduo tem as suas raízes teóricas na hipótese moderna, que culmina com a Ilustração, de um indivíduo central e prepotente, sujeito do saber verdadeiro e legislador da conduta justa. Um indivíduo que só entende a sua aceitação das normas sociais através da ficção teórica de um «contrato social». As teorias do contrato são, com efeito, a única explicação possível para sociedades formadas por indivíduos isolados e iguais, sem interesses comuns, sem vontade política prévia, sociáveis contra vontade, livres mas obrigados a usar a sua autonomia a favor do desenvolvimento da essencial dignidade humana. Os desejos, as paixões, as singularidades, o egoísmo, que, na realidade, definem os indivíduos, valem pouco, são obstáculos que devem ser vencidos para obter a harmonia do todo e de todos. Para isso basta que cada um obedeça à razão universal inscrita no próprio ser. A moral é autónoma: a lei moral não depende da religião, nem da lei positiva, nem, muito menos, dos costumes. Depende, contudo, da razão, esse enigma que quisemos converter em garantia da unanimidade em matéria de moral.
Tudo é pura abstracção. Uma abstracção que a filosofia conseguiu corrigir pouco a pouco: sem renegar o indivíduo como princípio e razão do conhecimento teórico e prático, a filosofia já não o concebe como esse ser sobredotado que contém em si próprio a chave e o poder para se transformar e transformar o universo, se a vontade lhe não falhasse. O indivíduo é hoje, basicamente, um ser que fala, tão ambivalente nas suas manifestações como na sua forma de as exprimir. A linguagem mediatiza tudo: o conhecimento e a relação com o mundo, o conhecimento e a relação com o outro, o autoconhecimento e a relação consigo próprio. A consciência da nossa realidade linguística acabou com o solipsismo — individualismo — metodológico que vertebrou toda a filosofia moderna de Hobbes até Hegel. Nietzche, Freud, Marx, Wittgenstein, Heidegger, Sartre, Foucault puseram em causa, cada um a partir da sua particular perspectiva, a validade teórica da consciência ou do indivíduo como ponto de partida absoluto até ao extremo de proclamar sucessivas mortes do sujeito. A única objectividade reconhecida hoje é a intersubjectividade. A verdade reside apenas no acordo. E dependemos absolutamente da linguagem: uma linguagem herdada de outros, substrato de outras culturas e outros tempos. O indivíduo não ignora os seus limites, sabe que a sua razão não é monológica, mas dialógica, que sozinho não irá a lado nenhum. Tudo isso foi assumido pelas ciências e foi também assumido pela filosofia, mas parece ignorado numa prática obtusa e servidora de outros deuses, que continua a manter entronizado o indivíduo soberano e possessivo. Mostram-no os recentes exemplos famosos como paradoxos e contradições do nosso tempo. À política democrática falta-lhe a interacção e participação que a definem; o trabalho tem como protagonista o homo econoinicus e o tempo livre não é emancipador; a comunicação é unilateral; as diferenças sucumbem à uniformização das modas; as sociedades fecham-se para preservar o que lhes é próprio e as propostas de integração são acolhidas com desconfiança; o indivíduo sente-se mais seguro e confortável na pele de burguês do que na de cidadão. As tendências à comunalidade, à cooperação, à associação com outros são igualmente egoístas e interessadas: a tribo, o clã, a etnia, a empresa, o partido, o sindicato, nada escapa — ou pelo contrário, tudo encoraja — ao corporatismo.
Em teoria, temos todos os ingredientes necessários para reconhecer e ir corrigindo o individualismo, para nos darmos conta do erro que encerra aquilo a que chamei o «preconceito egoísta» instaurado pela modernidade. Temo-los porque a filosofia sabe que ninguém tem razão e que a conduta racional não está previamente determinada. Sem solidariedade, já não só moral, mas também científica, não avançamos, nem é possível tornar real nenhum propósito. Na prática, contudo, continuamos a actuar com prepotência como ignorantes das nossas limitações. Triunfaram os valores liberais convenientes à economia de mercado. Fazemos declarações antirnodernidade, mas o direito de propriedade continua a ser a peça fundamental do credo liberal, tão intocável e prioritário como o foi para os liberais do século XVII.
Contudo, não deve satisfazer-nos por completo o credo individualista pois que o criticamos. Só a cegueira intelectual e o cinismo poderiam fazer derivar os valores individualistas realmente existentes do tronco dos direitos fundamentais. É outra ideologia na qual não lemos outro remédio senão confiar, a ideologia do mercado, a que converteu os valores individuais num individualismo estreito e perverso. É necessário dizê-lo: a ética tem que ser individualista, tem que preservar o indivíduo, mas essa preservação é, ao mesmo tempo, um direito e uma exigência: direito do indivíduo determinar o que quer e deve ser, exigência ao indivíduo de responsabilidade perante os outros como ser humano. Só assim, com essas exigências, pode construir-se uma ética, como propõe Fernando Savater, na base do «amor próprio». Só a partir da responsabilidade do humano se pode arvorar o princípio moral da «dissidência» que propõe Javier Muguerza.
(...)








victoria camps
paradoxos do individualismo
trad. de manuel alberto
relógio d´água
1996