(…)
A nossa civilização edificou-se sobre as facilidades da comunicação, as quais ainda são uma surpresa para muitos de nós. Não há fronteiras: tudo se sabe, ainda que muito insuficientemente, e tudo pode ser visto em directo; as viagens deixaram de ser aventuras extraordinárias para se tornarem parte do que é habitual; tivemos de nos acostumar ao uso e manuseamento dos computadores, dos faxes e dos vídeos. E no entanto, temos saudades da vida em comum que já não existe. Os meios de comunicação, por estranho que pareça, não nos fazem comunicar, contribuindo antes para nos isolar no nosso próprio mundo. Nada faz com que o indivíduo se sinta mais compreendido, mais atendido, mais acompanhado. A sociedade da comunicação não é mais solidária nem mais afectiva. Não soube pôr os meios e o progresso técnico ao serviço da democracia e do entendimento mútuo. Muito menos ao serviço do ser humano. A técnica vale por si própria e só se submete ao poder económico.
As descobertas e as grandes viagens com que desponta a modernidade introduziram o relativismo no pensamento. O indivíduo deixou de ter um fim pré-fixado: foi concebido como um ser livre para forjar e escolher a sua própria vida. Nasceu a ideia da tolerância juntamente com a convicção de que o nosso mundo é plural e diverso. Desde então, sabemos que universalidade e individualismo têm de ser compatíveis. Não só é aceitável a projecção em formas de vida diferentes como a diferença é boa em si mesma, enriquece-nos a todos. Este é, no entanto, um ponto de vista que só estamos dispostos a defender em teoria e sempre e quando não nos exija demasiados sacrifícios. Hoje, no mundo desenvolvido, onde o que é diferente poderia ter mais oportunidades de expressão, as diferenças, venham de onde vierem, dissolvem-se rapidamente no crisol da americanização irreversível que engole todas as culturas. O mundo inteiro é Disneylandja. Longe de proporcionar iniciativas, o liberalismo económico homogeneíza as culturas. A moda é cómoda, dizia Ferrater Mora, porque «poupa o trabalho de pensar». Por isso, talvez, nos raros momentos de lucidez, resistimos a segui-la sem reservas e emitimos alguns sinais de oposição à mimese generalizada, à uniformidade do prêt à porter, ao simplismo do quantificável e redutível a números. Começamos a exigir mais qualidade. A qualidade de um passado que começa a parecer mais confortável: com o regresso ao regional, ao que sai da terra, ao caseiro, ao não adulterado. Ou a qualidade de um presente e um futuro menos servis perante os avanços técnicos. A qualidade, por outro lado, que nos tornará mais competitivos quando já quase nada pode ser inventado, mas tudo é muito melhorável.
O mercado não ajuda. A inércia do mercado é o obstáculo mais claro ao desenvolvimento daquilo que se tem vindo a chamar liberdade positiva. Seremos realmente autónomos, autogovernar-nos-emos? É evidente que a liberdade não é um absoluto, que as nossas circunstâncias determinam muitas das nossas preferências e escolhas. Nunca se escolhe a partir de nada. Mas, mesmo assim, escolher é uma obrigação, uma «condenação», disse o trágico Sartre. E poucas vezes se vêem as coisas desta maneira, porque ao mercado só interessam escolhas muito determinadas. O problema é que esse modelo, que só deveria valer para o consumo, vale já para tudo, por que tudo, incluindo os bens mais espirituais, deixam de ser apetecíveis se não se apresentam como bens de consumo.
Em resumo, uma quantidade de paradoxos e ambivalências que reflectem as duas faces do individualismo: a afirmação de um indivíduo autónomo e independente que quer ser expressão da humanidade mais autêntica, e a afirmação do indivíduo que se deixa moldar pelas forças, interesses ou grupos mais dominantes. Este último indivíduo tem as suas raízes teóricas na hipótese moderna, que culmina com a Ilustração, de um indivíduo central e prepotente, sujeito do saber verdadeiro e legislador da conduta justa. Um indivíduo que só entende a sua aceitação das normas sociais através da ficção teórica de um «contrato social». As teorias do contrato são, com efeito, a única explicação possível para sociedades formadas por indivíduos isolados e iguais, sem interesses comuns, sem vontade política prévia, sociáveis contra vontade, livres mas obrigados a usar a sua autonomia a favor do desenvolvimento da essencial dignidade humana. Os desejos, as paixões, as singularidades, o egoísmo, que, na realidade, definem os indivíduos, valem pouco, são obstáculos que devem ser vencidos para obter a harmonia do todo e de todos. Para isso basta que cada um obedeça à razão universal inscrita no próprio ser. A moral é autónoma: a lei moral não depende da religião, nem da lei positiva, nem, muito menos, dos costumes. Depende, contudo, da razão, esse enigma que quisemos converter em garantia da unanimidade em matéria de moral.
Tudo é pura abstracção. Uma abstracção que a filosofia conseguiu corrigir pouco a pouco: sem renegar o indivíduo como princípio e razão do conhecimento teórico e prático, a filosofia já não o concebe como esse ser sobredotado que contém em si próprio a chave e o poder para se transformar e transformar o universo, se a vontade lhe não falhasse. O indivíduo é hoje, basicamente, um ser que fala, tão ambivalente nas suas manifestações como na sua forma de as exprimir. A linguagem mediatiza tudo: o conhecimento e a relação com o mundo, o conhecimento e a relação com o outro, o autoconhecimento e a relação consigo próprio. A consciência da nossa realidade linguística acabou com o solipsismo — individualismo — metodológico que vertebrou toda a filosofia moderna de Hobbes até Hegel. Nietzche, Freud, Marx, Wittgenstein, Heidegger, Sartre, Foucault puseram em causa, cada um a partir da sua particular perspectiva, a validade teórica da consciência ou do indivíduo como ponto de partida absoluto até ao extremo de proclamar sucessivas mortes do sujeito. A única objectividade reconhecida hoje é a intersubjectividade. A verdade reside apenas no acordo. E dependemos absolutamente da linguagem: uma linguagem herdada de outros, substrato de outras culturas e outros tempos. O indivíduo não ignora os seus limites, sabe que a sua razão não é monológica, mas dialógica, que sozinho não irá a lado nenhum. Tudo isso foi assumido pelas ciências e foi também assumido pela filosofia, mas parece ignorado numa prática obtusa e servidora de outros deuses, que continua a manter entronizado o indivíduo soberano e possessivo. Mostram-no os recentes exemplos famosos como paradoxos e contradições do nosso tempo. À política democrática falta-lhe a interacção e participação que a definem; o trabalho tem como protagonista o homo econoinicus e o tempo livre não é emancipador; a comunicação é unilateral; as diferenças sucumbem à uniformização das modas; as sociedades fecham-se para preservar o que lhes é próprio e as propostas de integração são acolhidas com desconfiança; o indivíduo sente-se mais seguro e confortável na pele de burguês do que na de cidadão. As tendências à comunalidade, à cooperação, à associação com outros são igualmente egoístas e interessadas: a tribo, o clã, a etnia, a empresa, o partido, o sindicato, nada escapa — ou pelo contrário, tudo encoraja — ao corporatismo.
Em teoria, temos todos os ingredientes necessários para reconhecer e ir corrigindo o individualismo, para nos darmos conta do erro que encerra aquilo a que chamei o «preconceito egoísta» instaurado pela modernidade. Temo-los porque a filosofia sabe que ninguém tem razão e que a conduta racional não está previamente determinada. Sem solidariedade, já não só moral, mas também científica, não avançamos, nem é possível tornar real nenhum propósito. Na prática, contudo, continuamos a actuar com prepotência como ignorantes das nossas limitações. Triunfaram os valores liberais convenientes à economia de mercado. Fazemos declarações antirnodernidade, mas o direito de propriedade continua a ser a peça fundamental do credo liberal, tão intocável e prioritário como o foi para os liberais do século XVII.
Contudo, não deve satisfazer-nos por completo o credo individualista pois que o criticamos. Só a cegueira intelectual e o cinismo poderiam fazer derivar os valores individualistas realmente existentes do tronco dos direitos fundamentais. É outra ideologia na qual não lemos outro remédio senão confiar, a ideologia do mercado, a que converteu os valores individuais num individualismo estreito e perverso. É necessário dizê-lo: a ética tem que ser individualista, tem que preservar o indivíduo, mas essa preservação é, ao mesmo tempo, um direito e uma exigência: direito do indivíduo determinar o que quer e deve ser, exigência ao indivíduo de responsabilidade perante os outros como ser humano. Só assim, com essas exigências, pode construir-se uma ética, como propõe Fernando Savater, na base do «amor próprio». Só a partir da responsabilidade do humano se pode arvorar o princípio moral da «dissidência» que propõe Javier Muguerza.
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victoria camps
paradoxos do individualismo
trad. de manuel alberto
relógio d´água
1996
victoria camps
paradoxos do individualismo
trad. de manuel alberto
relógio d´água
1996
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