Para a Susana
1.
Devíamos viver todos sozinhos.
Perto um dos outros, mas separados.
Começou assim.
Devíamos ter todos uma porta
onde mais ninguém pudesse entrar, um televisor só para nós, uma casa de banho
particular, um sítio onde receber visitas.
Pensou assim.
Uma pessoa tem o direito de
ouvir apenas o seu próprio barulho, a dispor de luz e de escuridão conforme
apetecer, a ligar ou desligar o aquecimento.
E só assim.
Devíamos viver todos sozinhos,
dizia ele, em casas pequenas e próximas, insonorizadas, com persianas
perfeitas.
Cada pessoa tem direito à
tristeza pequena de encontrar as coisas como as deixou. Os livros no mesmo sítio,
na mesma página, no mesmo lençol em que não mexeu. A tampa da pasta de dentes,
a tampa da caneta, a tampa da lata de bolachas, com as mesmas bolachas lá
dentro.
Mas é raro ser assim.
As pessoas deviam viver sozinhas
em casas parecidas umas com as outras. Ninguém merece encontrar ninguém num
corredor, numa casa de banho, ou na cama.
Devia ser assim, dizia ele,
danado. Não tinha nada a ver com a idade. Nem com a família. Dizia ele, deitado
na sua cama estreita, com a irmã pequena a dormir ao lado.
Só vivendo sozinhas é que as
pessoas podiam fazer, umas com as outras, durante toda a vida, as combinações
bonitas e bem pensadas com que sonham. Combinações de amor e sem ser de amor.
Tudo devia poder ser falado de
antemão. «Posso passar aqui à noite?»
Não. As pessoas precisam de casas próprias para onde possam regressar. Para
estarem perfeitamente à vontade quando pedem licença para vadiar. Moradas
sólidas. Casas bem definidas. De onde possam sair no dia seguinte. E perguntar
«E hoje, posso?» Hoje sim. As pessoas
precisam de casas que fiquem vazias enquanto vadiam.
Senão tem-se a impressão que as
pessoas ficam umas com as outras porque não têm para onde ir. Senão tem-se a
impressão que só pensam em ir-se embora. Mesmo nos momentos bons. Numa família
é assim. Era assim na família dele. A família falava e ria, mas ao primeiro
sinal de silêncio ficava-se com a impressão de se ouvirem passos, os passos
pequenos e mentais de quem já está a imaginar-se a milhas dali.
Não devia ser assim. Noite após
noite, ano após ano, deitado na cama, a ouvir a família a falar na sala, a
mexer-se na casa de banho, à procura dum copo limpo na cozinha. A olhar para as
estrelas que se viam, ansioso por aquela altura.
Tem de haver um território. Tem
de haver trespasse. Cada chão tem de ser, potencialmente, um local de invasão.
Tem de haver propriedade. Tem de ser possível distinguir entre uma visita e uma
ocupação. Tem de se poder imaginar um inimigo à porta, a bater num belo dia do
ano.
Um inimigo a sério e não este.
Como quando ouvia a família a discutir em voz baixa, como se estivesse a
zangar-se ainda mais por não poder gritar como lhe apetecia. Deitado na cama,
com a irmã a dormir ao lado, pensando em como devia ser.
Todo o processo de pedir e dar
licença tem de ser instituído e encorajado. Em casas mais pequenas, devia ser
proibido haver mais do que uma chave.
As pessoas precisam de perceber
que não podem mandar muito. Para cada centímetro do chão em que as pessoas
mandam, tem de haver pelo menos mil milhões de quilómetros quadrados em que
não.
É escusado dar ordens quando não
há ninguém que queira obedecer. As pessoas têm de aprender a pedir como deve
ser, e a pensar muito bem antes de dar uma resposta.
Para as pessoas serem boas umas
para as outras não podem ter muitas certezas. Tudo tem de ser muito bem
combinado. Frequentemente. Tendo o cuidado de deixar sempre uma dúvida, que
fica para a próxima vez.
Para a próxima noite, deitado ao
comprido, do outro lado da parede onde a família se juntava. Desejando fugir
sem ser descoberto, fugir sem magoar ninguém, levando consigo qualquer
lembrança que ele pudesse deixar. Mas mais nada.
Devíamos viver todos um pouco
tristes. Ter manhãs. E outras manhãs diferentes. E às vezes não haver maneira
nenhuma de outra pessoa nos perceber.
Uma pessoa precisa de poder sair
sem mais nem menos para a rua e passar dia e noite sem noção de tempo ou de
espaço, passeando diante das portas das outras pessoas sem parar à frente de
nenhuma, à procura do que pense ter perdido. Uma pessoa precisa de vagabundear
sem tino, e levar grande parte do coração atrás.
Acordado na sua cama de rapaz,
com a roupa entalada e os braços corridos ao longo do corpo, navegando as
estrelas. O único a não dormir.
Devíamos poder estar acordados a
noite inteira sem que ninguém se incomodasse por causa disso, ou passar uma
semana inteira a dormir sem ninguém vir a saber. As campainhas e os telefones
deviam poder ligar-se e desligar-se como despertadores. Nem sequer deveria ser
forçoso o calendário continuar.
As pessoas precisam muito de não
se sentirem requeridas, ou pressentidas, ou culpadas.
Deitado sem dormir, a passear
nas casas da cidade que construiu. Assim usou o sono que a família lhe tirou ao
longo dos anos. A pôr pedra sobre pedra, a passear e a ver.
Se houvesse varandas perfeitas,
dariam umas para as outras, abrindo e fechando como os olhos de duas pessoas
com vergonha de olharem uma para a outra, abrindo e fechando, deixando entrar a
luz que as outras vão deixando.
Devíamos ter todos uma pequena
varanda para um mundo. Para que pudéssemos sair para o mundo, mas por onde o
mundo não pudesse entrar.
As pessoas precisam de casas
próprias onde a vida de cada um se possa tratar. Sem mais.
É necessário um reduto onde os
nossos últimos dias se possam imaginar facilmente. Não se podem correr riscos.
As pessoas têm de estar preparadas para o dom e para a estranheza de outras
pessoas, de alguém que nos venha a fazer companhia. Deixando uma casa vazia à
espera dela.
As pessoas têm de estar sozinhas
quando começam. Enquanto vivem e não vivem.
2.
Não é assim que as coisas se
passam. A economia do mundo vai contra.
Onde coexiste uma família de
solidões, nasce a solidão da família.
Os filhos só estão bem quando
são pequenos. Os pais só estão prontos quando ficam velhos.
Entretanto, a vida faz-se do que
vai ficando. O sangue assenta. As vozes levantam-se, doces ou furiosas, mas
sempre fora de vez. Os filhos são muito pequenos. É a única altura em que os
pais podem ser grandes.
Fala-se em voz alta de quem
há-de ser. De quem há-de pagar. Como, e a que horas, e porquê. De quem há-de ir
fechar a porta, desligar a luz, buscar o leite.
A parte de vida que uma família
pode partilhar é pequena. Não há vontade de repartir o que não é de ninguém. E
os filhos não podem desistir. E os pais não conseguem sossegar.
A solidão das famílias vem desta
estranha companhia em que metade dela é fácil e metade é forçada, em que metade
é por acaso e a outra metade é amor.
Numa família as pessoas haviam
de arranjar salas e maneiras de se poderem convidar, expulsar, e eventualmente
perder.
As famílias só funcionariam em
casas muito grandes com alas e anexos, onde nem pai nem mãe mandassem e tudo se
resolvesse através de recados, papéis deixados debaixo das portas um dos
outros, planos para expedições, jogos de escondidas, e governantas.
As famílias mostram o que as
pessoas têm de bruto. De besta e de bom. Nos corações que expõem e que todos à
sua maneira lêem e treslêem, vêem-se os sonhos mais bonitos que o mundo tem e
outras vontades que nunca hão-de conhecer descanso. Restos. Restos de carinhos
antigos que ficaram por completar. Promessas incumpridas, ameaças cruéis, as
traições inconsequentes de quem ama sem cuidar do seu amor, sabendo que nunca o
irá perder. De quem ama com um amor que se atira contra outro.
Uma família está condenada. Dura
um certo tempo, destrói-se num instante, e só finalmente se muda para onde
nunca mais acaba.
As pessoas ficam sozinhas, tal
como começaram, mas pesam mais. Fogem umas das outras, mas vão devagar. Uma
família, depois de feita, não se desfaz. As pessoas deixam-se envolver e ficar.
E de um dia a dia de peúgas e cascas de laranja, de folhas de papel e cartas de
jogar, acabam por apanhar a doença incurável da acomodação e da familiaridade.
Uma família presta para ensinar
duas coisas às pessoas: a dificuldade do amor e o desejo da liberdade. O resto
vem tarde de mais. Vem um dia, muito tarde, quando se está sozinho e o mundo
parece mais contrário do que é costume, e os conhecidos parecem estranhos, e a
vida parece ter parado aos nossos pés. Só num dia, muito tarde, é que a família
nos deixa a sua última e única flor, uma rosa suja, mas viva, em memória do
sangue e da sua lealdade.
Se calhar estes sacrifícios
somam-se para que percam todas as partes e seja só a soma a ganhar.
3.
Devíamos viver todos sozinhos
segundo uma ficção comum de semelhança e de liberdade. Cada um em sua casa, de
pés plantados em seu próprio chão. Deitados à sua janela, sob o efeito do
álcool e da luz, a cantar como crianças da mesma escola.
Cada um em casa de outro, com o
coração entregue, mãos dadas, medo de tudo.
A tristeza torna-nos vizinhos. O
nosso trabalho é não entristecer.
A alma feliz guarda o segredo de
se deixar enganar.
Sempre que pode, separa-se um
pouco da vida.
Em casas mornas as pessoas dormem,
acordam e cantam. Cantam para que outras pessoas ouçam. Alguém à janela. A uma
hora bonita. Para que outras casas saibam como.
As pessoas saem. Sabem, por
muito que demorem, que o sítio de onde se veio é o único onde se pode sempre
voltar.
4.
Os olhos enganam-se uns aos
outros. As coisas não são bem ditas. As estações demoram. As pessoas fogem das
famílias. Para casas. Casas só deles. E depois fogem de si mesmas. Para outras
pessoas. Que fazem felizes. Ou tornam tristes. A quem dão amor verdadeiro. E o
que podem de liberdade. Sem dar valor nem a uma coisa nem outra. Como fazem as
pessoas que se amam.
As casas ficam. Não deveriam
passar de mãos.
E depois é assim.
«Na minha casa», diz ele, «ficou
a minha alma vazia, as coisas de que pensei precisar, a vista alta sobre o rio
de que eu não me consigo lembrar desde o dia em que te vi…»
E fala da sua casa vazia, do
livro aberto no lençol, do risco de lápis nas paredes, no quarto onde dormia.
Fala na casa que deixou vazia,
na poeira nas páginas limpas, no vidro partido, na pedra fria da varanda.
O amor limpa-lhe os olhos e a
voz. Fala como se nunca tivesse feito outra coisa senão falar. O amor
protege-o. Não há nada que não possa dizer. Nada que possa enganar. Nada que
magoe. Nada que não se compreenda.
Fala exactamente como se
estivesse a respirar. Como se fosse ele que estivesse calado, deitado ao lado
do seu amor, muito quieto.
Fala; mas fala de si como se
falasse de outra pessoa. De alguém que um dia fugiu para ali, feito em fúria,
sozinho pela primeira vez na vida, feliz por se ver livre de um fardo de coisas
que não eram dele.
Fala; mas fala de si como se
falasse de outra pessoa. Sobre alguém que encontra a paz, o prazer de nada,
depois de uma vida inteira. Numa casa vazia, na primeira noite que lá passa, caído
um canto, fecha os olhos e adormece imediatamente, levado por um fio de sono,
para dentro de uma casa feliz.
Fala, mas fala de si como se
falasse de outra pessoa, de alguém que lá deixou. Na casa vazia, onde ele tinha
sido tão feliz. Vivo ou morto. Na casa ao pé das outras casas, à espera de
nunca mais ser descoberto. Mas à espera dele. Mas à espera dele, mesmo assim.
miguel
esteves cardoso
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991