Devia ter sido melhor que os anteriores o nosso século XX.
Já não conseguirá sê-lo,
tem os anos contados,
o passo vacilante,
o fôlego curto.
Já demasiadas coisas se passaram
que se não deveriam ter passado
e não chegou
o que deveria ter chegado.
Devia ter-se tendido mais para a primavera
e para a felicidade, entre outras coisas.
O terror devia ter abandonado vales e montanhas.
E, mais rápida que a mentira,
Devia ter sido a verdade a primeira a chegar.
Houve desgraças
que já não deviam ter acontecido,
a guerra, por exemplo,
e a fome, e por aí fora.
Deveriam ter sido considerados
a capacidade de defesa dos indefesos,
a confiança e etc.
A quem quis alegrar-se com o mundo,
deparou-se-lhe um projecto
impossível de realizar.
A imbecilidade não é cómica.
A sensatez não é alegre.
A esperança não é já aquela rapariga fresca
e mais e mais, infelizmente.
Deus deveria finalmente ter confiado no homem
bom e forte,
mas o bom e o forte
continuam a ser duas pessoas.
Como viver, perguntou-me numa carta alguém
a quem eu tencionava perguntar
a mesma coisa.
Uma vez mais e como sempre,
como se vê no que acabei de dizer,
não há perguntas mais urgentes
que as ingénuas.
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998