21 abril 2018

nydia bonetti / caminho






caminho arranhando meus pés sobre as pedras
quentes

gosto

do som das rodas que se arrastam sobre
concreto

fatídicas vias [de fato]

gosto
do som da vida em seu eterno arrastar-se
                                                                  sobre/tudo



nydia bonetti
& natália gregorini
de barro e pedra
editora urutau
2017






20 abril 2018

wislawa szymborska / crepúsculo do século




Devia ter sido melhor que os anteriores o nosso século XX.
Já não conseguirá sê-lo,
tem os anos contados,
o passo vacilante,
o fôlego curto.


Já demasiadas coisas se passaram
que se não deveriam ter passado
e não chegou
o que deveria ter chegado.

Devia ter-se tendido mais para a primavera
e para a felicidade, entre outras coisas.

O terror devia ter abandonado vales e montanhas.
E, mais rápida que a mentira,
Devia ter sido a verdade a primeira a chegar.

Houve desgraças
que já não deviam ter acontecido,
a guerra, por exemplo,
e a fome, e por aí fora.

Deveriam ter sido considerados
a capacidade de defesa dos indefesos,
a confiança e etc.

A quem quis alegrar-se com o mundo,
deparou-se-lhe um projecto
impossível de realizar.

A imbecilidade não é cómica.
A sensatez não é alegre.
A esperança não é já aquela rapariga fresca
e mais e mais, infelizmente.

Deus deveria finalmente ter confiado no homem
bom e forte,
mas o bom e o forte
continuam a ser duas pessoas.

Como viver, perguntou-me numa carta alguém
a quem eu tencionava perguntar
a mesma coisa.

Uma vez mais e como sempre,
como se vê no que acabei de dizer,
não há perguntas mais urgentes
que as ingénuas.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






19 abril 2018

luis muñoz / camisolas




Trocaram entre si a roupa
nos primeiros dias.

A T-shirt negra com os deuses astecas,
lembrança de um museu,
pelo pulôver fino e em bico
de listas amarelas com nervuras azuis.

O pólo anil gasto de há já cinco anos
pelo branco de seda, alado, com transparências,
de colarinho mole e grande.

Era como um abraço
apertado e ligeiro.
Acostumar a tua pele ao tacto da sua,
impô-lo ao sair, como uma carícia.

Ao descobrirem-se sós em encontros agridoces
com antigos amantes,
a doçura do outro soprava no tecido.
Ao descobrirem-se longe qual uma sombra débil
à beira das sombras,
o outro aparecia qual uma fortaleza.

Era a afirmação que sempre lhes faltava,
o toque permanente de alerta nos seus afectos.

E, isso sim, não escutaram
que ninguém lhes dissesse:
os fios da tarde tecem-se sem a tarde.


luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







18 abril 2018

daniel francoy / pássaros




Ando a falar de pássaros
como se não os tivesse afugentado
do quintal e do peitoril da janela,
como se soubesse que ave é aquela
– seria de rapina? – que vejo
em torno dos arranha-céus
há tantos anos.
Sempre a mesma criatura?
Alimenta-se do que lhe resta,
dorme na praça, entre as árvores
e a fonte de água escura
ou vejo toda uma descendência
alada, caída no desterro,
assinalando a distância da tarde?


daniel francoy
identidade
editora urutau
2016





17 abril 2018

t.s. eliot / o que disse o trovão



(…)

Quem é o terceiro que caminha sempre a teu lado?
Quando conto, só vejo nós dois
Mas quando olho adiante na estrada branca
Há sempre outro caminhando a teu lado,
Deslizando envolvido num manto castanho, embuçado,
Não sei se homem ou mulher
– Mas quem é que caminha a teu lado?

(…)




t.s. eliot
a terra sem vida
tradução maria amélia neto
edições ática
1972





16 abril 2018

rené char / evadne




O estio e a nossa vida éramos uma só coisa
O campo devorava a cor da tua saia perfumada
A avidez e o constrangimento tinham-se reconciliado
O castelo de Maubec enterrava-se na argila
Em breve soçobrariam os vaivéns da sua lira
A violência das plantas fazia-nos vacilar
Um corvo remador sombrio desviando-se da esquadra
Sobre o sílex mudo do meio-dia esquartejado
Acompanhava o nosso idílio com ternos movimentos
Em toda a parte a foice acedia ao repouso
A nossa raridade iniciava um reino
(O vento insone que nos enruga a pálpebra
Voltando noite após noite a página consentida
Quer que cada tua parte que eu retenho
Se estenda numa terra de idade faminta e de lacrimal gigante)

Era no início dos anos adoráveis
Lembro-me de que a terra nos amava um pouco.

         
rené char
furor e mistério
o rosto nupcial
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000







15 abril 2018

bernardo soares / apoteose do absurdo




Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.

Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.

E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990






14 abril 2018

tereza balté / as visões


  
Que poderias trazer de novo
que consolação tu ou outro
se o tempo nos dispersa a sombra se insinua
se o rosto permanece envolto em sua coroa
se a lua circunscreve o sonho em sua aura
não é outro deserto não é outra palavra
que apaga a nossa chama inspira a nossa ferida
o mistério persiste no astro que ilumina.



tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977









13 abril 2018

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores


  
51
um calendário sonegando o Verão
se por ele unicamente me guiasse inventaria
em segredo mais jubiloso almanaque

afastando-me do receio com que entregasse
dedicado o termo desta opereta


miguel-manso
persianas
tinta da china
2015








12 abril 2018

antónio reis / poemas quotidianos


  
52

Nascem
flores
dos beijos
nos teus ombros

e abelhas

E sombras


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017







11 abril 2018

narciso pinto / touché




Esta cidade é uma arca-congeladora!

A lua – decerto em aquário –
Resplandece-nos fingindo,
No lodaçal das pupilas
Dos que atentam sumidos;

Estreia inaugural
D´uma lindíssima ressaca a dois,
Após terrível bezana –
Trave mestra d´intimidades!

A morte é uma foco-de-presença,
Rondando sempre ambulatorial,
E sombreada – quando o convém –
Pela escuridão do amor;

Endomingados toda a vida,
(ançaimando ciúmes e medos)
Calibramos a voltagem do peito
Por meio d´um beijo que doma arritmias…

Ninguém faz caso!



narciso pinto
os deleites do tédio
pangolim
líricas & patuás
língua morta
2017






10 abril 2018

sophia de mello breyner andresen / pátria




Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra   rio   vento   casa
Pranto   dia   canto   alento
Espaço   raiz   e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo


sophia de mello breyner andresen
livro sexto
1962






09 abril 2018

carlos de oliveira / árvore



I
As raízes da árvore
rebentam
nesta página
inesperadamente,
por um motivo
obscuro
ou sem nenhum motivo,
invadem o poema
e estalam
monstruosas
buscando qualquer coisa
que está
em estratos
fundos,

II
talvez poços,
secretas
fontes primitivas,
depósitos, recessos
onde haja
um pouco de água
que as raízes
procuram
de página
em página
com a sua obsessão,
múltiplos filamentos
trespassando o papel,

III
seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor:

como podem
crescer
de tal modo

IV
no poema,
se a árvore
foi dispersa
em pranchas de soalho,
em móveis e baús
que fecham
para sempre
coisas
tão esquecidas,
como podem
romper
de súbito impetuosas
na aridez
do livro

V
e perseguir-me
assim,
se a areia
donde vêm
já vitrificada
pelo tempo
oculta
a árvore que morreu:

procuram
instalar-se
no interior da linguagem
ou substituí-la
por uma
infiltração

VI
quase
mortalizante:
mas
de repente
como apareceram
as raízes sossegam
[que terão
encontrado?]
e retiram
com o mesmo fluxo
do mar que se retraie deixa
atrás de si
silêncio:

VII
é então que vejo
no halo mais antigo
a árvore desolada,
os ramos em que poisam
as aves
doutros livros,
e pressinto
as raízes
através da sílica
onde a família dorme
com os ossos dispostos
nessa arquitectura
duvidosa
de símbolos

VIII
que chegaram
aqui
de mão em mão
para caberem todos
na constelação
exígua
que fulgura
ao canto do quarto:
o baú ponteado
como o céu
por tachas amarelas,
por estrelas
pregadas na madeira
da árvore.


carlos de oliveira
micropaisagem
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998