14 outubro 2017

herberto helder / elegia múltipla




II
Sobre o meu coração ainda vibram seus pés: a alta
formosura do ouro. E se acordo e me agito,
minha mão entreabre o subtil arbusto
de fogo - e eu estou imensamente vivo.
Agora, nada sei. Se com a neve e o mosto dei ao tempo
a medida secreta, na minha vida tumultuam
os rostos mais antigos. Não sei
o que é a morte. Enchia com meu desejo
o vestíbulo da primavera, eu próprio me tornava uma árvore
abismada e cantante. E a beleza é uma chama
solitária, um dardo que atravessa
o sono doloroso. Dos mortos, nada sei.
E de mim - onde deixaram os pés sombrios, o súbito
fulgor da ausência - de mim, vivo e ofegante,
sei uma flor de coral: delicada e vermelha.

Porque morrem assim no interior do vinho, quando
cantam e se extasiam? Porque morrem seus ombros onde
se derramavam as videiras e as escadas subiam?
Um a um vão nascendo meus mudáveis
pensamentos, e eu digo: porque morrem
os que tinham a carne com seu peso e milagre e sorriam
sobre a mesa
como seres imortais?

E agora é a minha vida que se fecha - assombrada.
A vida funda e selvagem. Porque um dia,
como se depaupera e desfaz a presença de um cacho,
o brilho se apagará onde estava a minha letra.
Dançarei uma só vez, em redor da taça,
festejando a última estação. Hoje,
nada sei. Correm em mim os mortos, como água -
com o murmúrio gelado da sua incalculável ausência.


E eu digo: não refulgia a carne quando
a primavera inclinava a cabeça sobre a sua confusão?
Não dormiam junto ao mosto com lírios no pensamento?
Ei-los em mim, absurdos e puros, e digo: se havia
tanto ouro, dentro e à volta deles, porque
se extinguiram?


Agora, nada sei. Eu próprio serei uma espuma
absorta e casta, algures num coração,
e nesse coração se erguerá uma onda de púrpura,
um terrível amor.


 – Porque meu coração era firme e de ouro, e eu cantava.





herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996



13 outubro 2017

luís miguel nava / ao mínimo clarão




Talvez seja melhor não nos voltamos
a ver, ao mínimo clarão
das mãos a pele se desavém com a memória.
As mãos são de qualquer corpo a coroa.

Das dele já nem sequer o itinerário
sei hoje muito bem, onde o horizonte
se desata o mar agora
regressa ao coração de que faz parte.

Ainda é o mar contudo o que se vê
florir onde ele chegar. Chamando a esse
rapaz rebentação,
o céu rasga-se à volta dos seus ombros.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982






12 outubro 2017

fernando pinto do amaral / avisos



Teria amado o vento e a fala dos bosques,
as imagens da noite, os pequenos avisos
do coração. Iria regressar
por outros olhos às cores do inverno.



fernando pinto do amaral
acédia 1990
dominei
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000








11 outubro 2017

james wright / contra o surrealismo




Há alguns ínfimos detalhes óbvios na vida humana que sobrevivem ao propósito divino de aborrecer os idiotas até à morte. Em França, bem lá ao Sul, em Avallon, as pessoas gostam de bolos. Os pasteleiros locais amassam um pouco de farinha e chocolate com a forma de um pinguim. Nós voltámos várias vezes a uma certa montra para admirar um bando deles. Mas nunca comprámos nenhum.

Demos por nós a vaguear em Itália, com saudades dos pinguins.

Depois um fogo terrível e selvagem dos dias de canícula rugiu sobre o décimo quarto arrondissement: quer dizer, em Agosto: e três pinguins de chocolate apareceram atrás de uma montra, perto da Place Denfert-Rochereau. Tivemos medo que os parisienses os reconhecessem, por isso comprámo-los todos e esgueirámo-nos com eles para casa, disfarçados.

Pusemo-los numa mesinha acima de metade dos telhados de Paris. Eu fui espanejar uma ínfima, óbvia, partícula de pó na ponta de um bico. De repente o pó caiu uma polegada e ficou a baloiçar. Depois trepou de novo para o bico.

Era uma aranha azul.

Se eu fosse uma aranha azul, certamente apanharia um comboio de Avallon até Paris e montaria casa no nariz de um pinguim de chocolate. É só uma questão de senso comum.





james wright 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001






10 outubro 2017

sylvia plath / nódoa negra




A cor converge para esse sítio, de um arroxeado mortiço.
O resto do corpo fica todo descolorido,
De cor pérola.

Numa gruta cavada na rocha
O mar suga obsessivamente
Uma cavidade, o ponto central de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca
A marca do destino
Arrasta-se pela parede abaixo.

O coração fecha-se,
O mar recua,
Os espelhos são tapados.



sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




09 outubro 2017

tomas tranströmer / meados de inverno



Um rasto de luz azulada
irradia da minha roupa.
Decorrida está metade do inverno.
Música de choques de mil blocos de gelo.
Fecho os olhos.
Há um mundo sem ruídos,
uma fissura,
onde os mortos,
como contrabando, são passados para o além.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012




08 outubro 2017

álvaro de campos / faróis distantes



Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa,
De noite e ausência tão rapidamente volvida,
Na noite, no convés, que consequências aflitas!
Mágoa última dos despedidos ,
Ficção de pensar...
Faróis distantes...
Incerteza da vida...
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido...
Faróis distantes...
A vida de nada serve...
Pensar na vida de nada serve...
Pensar de pensar na vida de nada serve...
Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande,
Faróis distantes...

30-4-1926


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




07 outubro 2017

carlos poças falcão / um dia...




Um dia há um vulgar homem na falésia, um pássaro cantando na varanda, uma simples fissura na parede – e levantamos uma pedra, uma casa. Parecemos ratos se não estivermos atentos, porque é Deus a provocar as evidências, batendo no joelho com a Sua larga mão. “Até que enfim!” – e faculta-nos o dom de um vislumbre e lança-nos depois em novas trevas.



carlos poças falcão
sinais
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







06 outubro 2017

rené char / folhas de hipno



155
Amo estes seres de tal modo enamorados por aquilo que o seu coração imagina ser a liberdade que se imolam para evitar a morte do poucochinho de liberdade. Maravilhoso mérito do povo. (Crê-se que não existe o livre arbítrio e que o ser se define relativamente às suas células, à sua hereditariedade, ao decurso breve ou prolongado do seu destino… Todavia, entre tudo isso e o Homem existe um enclave de inesperados e de metamorfoses cujo acesso deve ser proibido e a manutenção assegurada.)


         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




05 outubro 2017

josé de almada negreiros / as quatro manhãs


Primeira Manhã



Quando cheguei devia ser tarde,
já tinham dividido tudo
pelos outros e seus descendentes.
Só havia o céu por cima dos telhados
lá muito alto
para eu respirar
e sonhar.
Tudo o mais
cá em baixo
era dos outros e seus descendentes.
A terra inteira
e o mar
e o ar
tudo medido
dividido a régua e compasso
pelos outros e seus descendentes.
No mundo inteiro
não faltava ninguém
depois dos outros e seus descendentes.
A terra inteira
era estrangeira
mais este pedaço onde nasci.
Não me deixaram nada
nada mais do que o sonhar.
Eu que sonhasse!
E eu que amo a vida mais do que o sonho
e o sonho e a vida juntos
mais do que ambos separados
e que não sei sonhar senão a vida
e que não sei viver senão o sonho
hei-de ficar aqui
entre os outros e seus descendentes?
Eram meus os caminhos
os caminhos murados
só os caminhos eram meus.
Só tinham fim os caminhos
ao começar outros caminhos.
As portas fechadas
as janelas cerradas
só os caminhos eram meus.
A minha viagem não tinha fim
no fim de todos os caminhos.
O fim que tinha era outro
bem perto de mim
em todos os caminhos.
Bem perto de mim andava
aquele que eu buscava,
aquele que não era nenhum dos outros e seus descendentes,
alguém cuja pessoa era eu
que não me achava.
Apenas uma voz me falava e sabia
que eu não era nenhum dos outros e seus descendentes.
E esse que a voz sabia que eu o era
me levava pelos caminhos
os meus olhos primeiro do que eu
e o coração no peito a contar.
A voz sabia-o bem
e eu para me encontrar.
Também vi pelos caminhos
lembro-me de quantos
também como eu
à procura de tantos como eles.
Perdidos vão
perdidos? não!
não achados
não achados ainda.
Perdidos não estão
vão perdidos por se acharem,
vão mortos por se verem a si próprios
como são.
Levam o sonho no ar
e o coração a contar
as idades que é preciso ter
até cada um ser
aquele que vai em si.
Nascer é vir a este mundo
não é ainda chegar a ser.
Nascer é o feito dos outros.
O nosso é depois de nascer
até chegarmos a ser
aquele que o sonho nos faz.

Já sei de cor os caminhos
já sei o que vale a promessa
já vejo perfeito no sonho
o que me há-de a vida imitar.
Mais além
e o sonho e a vida
libertar-se-ão um do outro em mim!



josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971




04 outubro 2017

adonis / movimento



Viajo para fora do meu corpo e dentro de mim há continentes
que não conheço. O meu corpo
é um eterno movimento no exterior de si.
Não pergunto: De onde? Ou onde estavas? Pergunto, para
                                                                      [onde vou?
A areia olha-me e transforma-me em areia,
E a água olha-me e irmana-me com ela.

Na verdade, não há nada para obscurecer a não ser a memória



adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




03 outubro 2017

david mourão-ferreira / e por vezes



E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos     E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos



david mourão-ferreira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




02 outubro 2017

luís veiga leitão / homem



É no silêncio do caminho aberto:

Quanto maior a alma maior o deserto
maior a sede e a miragem
do mundo à nossa imagem.



luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012




01 outubro 2017

bernardo soares / criemos a força calma



Criemos a força calma. Temo-nos mostrado capazes de a ter em muita coisa. Mostremos que a sabemos ter em todas as coisas.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990




30 setembro 2017

jorge de sena / requiem de mozart



I

Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.


II

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música da morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.


III

Além do falso ou verdadeiro, além
do abstracto e do concreto, além da forma
e do conceito, além do que transforma
contrários pares noutros par´s também,
além do que recorre ou nunca vem
ao que se pensa ou sente, além da norma
em que o não-ser se humilha e se conforma,
além do possuir-se, e para além
dessa certeza que outro ritmo dá
àquele de que as palavras têm sentido:
lá onde ouvir e não-ouvir se igualam
na mesma imagem virtual do na-
da – é que tu vais, ó musica, partido
o nó dos tempos que por ti se calam.


IV

Tudo se cala em ti como na vida
Tudo palpita e flui como no leito
em que se morre ou se ama, já desfeito
o abraço do momento em que, sustida
a sensação da posse conseguida,
a carne pára a ejacular-se atenta.
Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta
esta glória de existir, trazida
a cada instante só do instante ser-se,
reflui em ti, liberto, puro, afiante,
certeza e segurança de conter-se
na criação virtual o renascer-se
agora e sempre pelo tempo adiante,
mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se
deste possível é a paz do amante.




jorge de sena
arte de música  (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972